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A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós

by Lucas Gomes

O romance A correspondência de Fradique Mendes, de Eça
de Queirós, aborda o contexto de Portugal.

Fradique é um verdadeiro heterônimo de Eça, sendo óbvias
as semelhanças ideológicas com o seu criador, é um documento
de própria trajetória existencial e psicológica de Eça.

Tal como descreve Eça, Fradique era um aventureiro, atormentado diante
das injustiças sociais e da decadência da sociedade lusitana causada
pelas constantes
transformações sociais, políticas e econômicas. Fradique
foi um veemente crítico da sociedade lusitana, que não se deixou
abater pela força das formas totalitárias, um incansável
reconstrutor de um Portugal novo. Esse ser que Eça disse ter feito com
pedaços de seus amigos é um ser plasmado com os anseios e ideais
de uma geração de escritores que representava a vanguarda intelectual
portuguesa do final do século XIX.

Era um grande homem, uma idealização de um conceito de humanidade
cosmopolita, ainda que de raiz provinciana. Nasceu na Ilha Terceira, possivelmente
por volta de 1867, tendo à data das cartas 33 anos. Por morte prematura
dos pais, Fradique foi educado pela avô – D. Angelina Fradique, com a
presença constante de um frade beneditino, de um coronel francês
e um alemão que lhe fala de Kant. Aos 16 anos entra para a Universidade,
sendo colega (virtual) de Antero e Eça. Em 1867 já era um homem
viajado e experiente, um modelo para os demais intelectuais da Geração
de 70. Fradique tem preocupações de ordem social e política.

Carácter enigmático e um pouco controverso, interessado e observador.
Romântico pela primeira educação, orientalista, trotamundos,
“touriste” da inteligência, «homem que passa, infinitamente
curioso e atento», «superiormente apetrechado para triunfar na Arte
e na Vida, ele constitui um juiz do mundo e da sociedade portuguesa. Um revolucionário,
educado, robusto, culto, de bom gosto, mas também um desiludido, um pessimista.

Em rigor, Fradique Mendes pode ser considerado 3 personagens: a primeira é
um heterônimo coletivo criado entre 1868 e 1869, por Jaime Batalha Reis,
Antero de Quental e Eça, no tempo do Cenáculo de Lisboa. A segunda,
surge episodicamente em O Mistério da Estrada de Sintra, em
1870, e finalmente a que Eça retoma individualmente com a publicação
de Correspondência de Fradique Mendes, em 1888-1900.

Eça: “Este novo Fradique que eu relevo é diferente – verdadeiro
grande homem, pensador original. Temperamento indicado às ações
fortes, alma requintada e sensível”.

Aristocrata rico, descendente de antigos navegadores, de uma “velha e
rica família dos Açores”. Estudara em Coimbra e em Paris.
Acompanhou Garibaldi na conquista da duas Sicílias. Com 34 anos, fez
parte do Estado-Maior de Napier, na campanha de Abissínia. Era “o
português mais interessante do século XIX”, com “curiosas
parecências com Descartes”. Mas faltava-lhe um objectivo definido
na vida. Lia Sófocles, conhecedor de muitas línguas, entre as
quais francês, alemão, inglês e até um pouco de árabe.

Expressão de uma incontida admiração pela figura do gentleman,
personificação simbólica de uma elite intelectual que se
opunha à vulgaridade e à chateza de um país em declínio,
Eça, através de Fradique, tornou evidente também essa oposição
pela sátira e pela critica: às liturgias que atravancavam e contrariavam
o puro espírito com que as religiões se deveriam exprimir, à
vacuidade de certos políticos do parlamento (carta ao Sr. Mollinet, onde
retracta Pacheco), a um certo tipo de capitalistas (carta a Mme de Jouarre,
onde retracta o Comendador Pinho) e ainda à classe eclesiástica
portuguesa, inteiramente vinculada e dependente do estado, personificada genericamente
no “horrendo” Padre Salgueiro – carta a Mme de Jouarre.

Fradique Mendes é uma personagem realista de Eça de Queirós
que, descontente com a decadência de Portugal nas três últimas
décadas do século XIX, saiu em incursão pelo mundo em busca
não só do seu próprio reconhecimento como, também,
da sua própria nação. Era, acima de tudo, um nacionalista
que não suportava ver a sua pátria relegada a um limbo sem precedente.
Diante de tal situação, Fradique voltou-se para o Portugal das
grandes navegações com o objetivo de resgatar as raízes
nacionais autênticas. Fradique, então, retomou o passado distante
na expectativa de recuperar a verdadeira identidade portuguesa que outrora impulsionou
outras civilizações a conquistar o mundo e a colonizar outras
nações.

Fradique é a típica personagem representante de uma narrativa
que rompe com a forma autoritária e fixa e, em vez disso, instaura-se
a polifonia da narrativa contemporânea, que abre espaço a múltiplas
vozes narradoras e – desafiando a estabilidade ilusória do romance
realista – revela o sujeito textual como processo contraditório,
lugar de contradição. É nesse espaço de contradição
que Fradique dialoga com os grandes homens do seu tempo, onde várias
vozes plenivalentes emergem acerca do mesmo problema. Através do diálogo
que Fradique estabelece com os grandes homens do seu tempo, é possível
saber, não só o que pensava Fradique, mas também o que
pensavam todos os grandes homens do seu tempo sobre a crise pela qual passava
Portugal. Fradique era um homem apegado à tradição de sua
terra, sobretudo, à tradição desfigurada no decorrer do
tempo.

Através de Fradique, Eça exprimiu também um amargo ceticismo
perante angústias sociais para as quais não encontrou remédio.

Contexto histórico

É uma narrativa escrita nas últimas décadas do século
XIX e abarca um conturbado momento histórico da sociedade portuguesa,
sobretudo, no que se refere ao modelo liberal. A depressão que se instaurou
no país causou a instabilidade e a rotatividade do poder. As contradições
da monarquia constitucional começavam a se tornar evidentes para a nação.
Esta situação acarretou transformações sociais,
políticas e econômicas no país como a marginalização
das camadas populares, o anticlericalismo como catalisador de descontentamento
e de oposição às instituições vigentes, descrença
nos governantes. Essas contradições terminam acentuando as diferenças
de Portugal em relação aos demais países europeus. Portugal
estava distante dos demais países da Europa.

Observa-se o esforço da personagem-narrador, Fradique Mendes, em firmar
os valores de Portugal relacionados à cultura e aos costumes como valores
sociais iguais enquanto nação que ocupa um espaço potencialmente
privilegiado. As carências e as incertezas são decorrentes dessa
contradição que, por sua vez, é o ponto central da obra
A correspondência de Fradique Mendes. Elas acabam por acentuar
as diferenças. Por conta disso, a consciência da marginalidade
e da diferença constitui o principal foco de tensão, uma vez que
acentua o sentimento de pessimismo4 no imaginário do povo, solapando
a consciência de nacionalidade.

Um outro problema abordado na obra e que contribui, negativamente, para a consolidação
da consciência nacional é a ausência de dirigentes com idéias
originais e com aspirações voltadas para o povo. Tratam-se de
questionamentos centrados nas motivações ideológicas que
levaram a personagem-narrador a investir na desconstrução de mitos.
Estamos, portanto, diante de textos dialéticos, nos quais a personagem-narrador
revolve criticamente os problemas da realidade, vislumbrando através
deles a razão de ser dos problemas do seu tempo. Desse modo, desvenda-se
a situação contraditória.

Em A correspondência de Fradique Mendes, no espaço social
de Portugal, a cultura e os fragmentos do passado permanecem vivos. A realidade
do país, com seus costumes, suas normas, suas verdades essenciais é
uma realidade carregada de episódios dramáticos, como se pode
observar em carta de Fradique escrita a Madame de Jouarre.

Em meio à realidade rústica, os elementos próprios da
terra são ressaltados, evidenciando o empenho de Fradique em deixar transparecer
os valores firmados na cultura, na tradição, num realismo nacional.
No plano da ficção, o rompimento dessa realidade banal se dá
através da parodização da realidade histórica. O
método dialógico é estabelecido através das estruturas
ambivalentes. A ambigüidade se instaura pela associação metafórica.
Dessa forma, rompe-se com as formas institucionalizadas e, em contrapartida,
põe-se à mostra a luta pelos valores nacionais autênticos.
A “densa treva” marca o obscurantismo daquela racionalidade, enquanto
as “lanternas de faluas dormindo no rio”, os fragmentos da realidade
nacional. Essas remetem, por associação, às antigas embarcações
usadas para transportar mercadorias e pessoal. No entanto, já não
existia mais o transporte de mercadorias e de pessoal, havia apenas por entre
a densa treva “luzinhas remotas e vagas” remanescentes do Portugal
antigo. Daí o fato de Fradique deixar entrever o ceticismo apreendido
na história e o realiza, ocupando-se da ironia, do sarcasmo e do pessimismo.

A obra

A correspondência de Fradique Mendes compõe-se de duas
partes distintas: uma narrativa e outra epistolar (cartas). A primeira parte,
à guisa de “Notas e Memórias”, faz a apresentação
biográfica de um suposto intelectual português Fradique Mendes.

Um narrador, que se presume ser Eça de Queirós, conta como, quando
e onde conheceu “esse homem admirável”, com quem partilhou
momentos de intimidade e por quem nutria a mais viva admiração.
Mal se inicia o texto, atém-se o narrador à apreciação
das LAPIDÁRIAS – cerca de cinco ou seis poesias, reunidas em folhetim,
e sob esse título publicadas na Revolução de Setembro como
da autoria de Fradique.

Segue-se um minucioso e completo relato sobre as LAPIDÁRIAS, com a
introdução de duas personagens de apoio: J. Teixeira de Azevedo
(Jaime Batalha Reis) e Marcos Vidigal, este, personagem ficcional, aquele, amigo
e camarada de Eça desde a época do Cenáculo (1867). A essa
altura do texto, sai de cena o narrador em primeira pessoa e entra outro narrador,
agora em terceira pessoa onisciente, para contar a vida pregressa de Fradique.
É com apoio no testemunho daquele último (Marcos Vidigal, que
se confessa parente, patrício e parceiro de Fradique) que o narrador
recompõe o passado do seu biografado. Finda a narrativa retrospectiva,
é retomada em primeira pessoa a narrativa progressiva, dentro de um novo
estatuto de narração em que se misturam os discursos indireto,
direto e indireto livre, e assim até o final da primeira parte.

A segunda parte consta do epistolário (cartas) atribuído a Fradique,
o qual se correspondia com vários amigos e eminentes intelectuais da
época. Entre estes,
pessoas leais (como Antero de Quental, Oliveira Martins, etc.) e personagens
fictícias. Como ensaiado na primeira parte, realidade e fantasia se alternam
e
misturam, figurando o jogo entre o real e o irreal, jogo esse contido, pois,
também na pretensa Correspondência.

São 16 cartas ao todo, coligidas sem qualquer critério aparente,
com indicação apenas do lugar de procedência e do mês
(“Londres, maio”, “Paris, dezembro”; etc.). Constituem
“um conjunto de crônicas em forma epistolar”, na apreciação
de Antônio J. Saraiva.1 Estas “cartas-crônicas” trazem
o repertório das opiniões queirosianas acerca de arte, literatura,
política, filosofia e religião. A propósito, afirma Feliciano
Ramos que “na criação de A correspondência de Fradique
Mendes, manifesta-se, não o paisagista ou crítico social, mas
sim principalmente o ‘ensaísta’ com seu riquíssimo
ideário”.

Efetivamente, nenhuma das cartas, nem mesmo as mais breves e despretensiosas
(como a primeira, dirigida “Ao Visconde de A.-T”, recomendando-lhe
o alfaiate Tomaz Cook) deixa de servir ao interesse maior de expressar uma opinião
ou um gosto estético. No jogo que se estabelece entre a primeira e a
segunda parte da obra, o leitor acaba por descobrir que o fingimento biográfico
e o epistolar servem menos à fantasia do que à oportunidade de
um debate sobre os diferentes temas aí versados. Entre estes, com destaque,
o da criação literária.

Pela amostragem até aqui, pode-se verificar que o jogo ideológico
se reflete na escrita, e deduz-se que Eça revela consciência do
processo de construção desta sua obra, ao mesmo tempo que trabalha
a linguagem com percepção de sua fragilidade como estabelecedora
de sentido. A intenção metaliterária subjaz sob os aspectos
meramente lúdicos, através dos quais Eça simula biografar
“um grande homem”), documentando suas “Notas e Memórias”
com depoimentos de amigos e uma coletânea de cartas atribuídas
à excêntrica personagem biografada. Em conseqüência,
A correspondência de Fradique Mendes se insere no conjunto daquelas
obras em que Eça inscreve o legado de seu “testamento literário”.

Do exposto se deduz que A correspondência de Fradique Mendes
não pode ser lida sem a percepção da malha irônica
de que se entretecem as suas duas partes.

O próprio título já é irônico, tendo Eça
hesitado entre (primeiro título) e Correspondência (título
definitivo). Inicia-se, desse modo, a partir do título, a colocação
do estatuto da palavra reversível e a perplexidade semântica como
um pacto de jogo irônico.

A primeira parte contém várias incongruências (por ex.:
o parentesco com Vidigal, o problema alfandegário com a múmia,
etc.) que induzem o leitor à ironia, fazendo pensar que o autor não
está falando sério, mas simulando um teatro de enganos. Além
do mais, um intróito biográfico que já de início
se põe a falar digressivamente de literatura (e as digressões
literárias se repetem de tempo em tempo interferindo no andamento da
narração) presta-se a informar o leitor de que Eça tenciona
falar é de literatura, ou também de literatura. Em verdade o apresentador
de Fradique simula biografar quando de fato intenta teorizar, e não apenas
sobre arte, porém ainda sobre filosofia, política e religião.

O leitor mais atento, ou antes, interessado na problemática poética,
com pouco percebe que o autor não só teoriza mas faz experimento,
transformando sua narração em texto que se auto-exemplifica. Daí
termos selecionado esse filete da metalinguagem de Eça para campo de
nosso estudo e descobertas comparativas.

A correspondência de Fradique Mendes encerra um projeto metaliterário
de singular importância para o entendimento do fenômeno da produção
de textos e, mais significativo ainda, para a recepção da obra
queirosiana, sobretudo a partir de Os Maias. As colocações
e alusões contidas na primeira parte (à guisa de “Memórias
e Notas”) mais a teorização literária, explícita
e implícita nas Cartas de Fradique, produzidas já na maturidade
de Eça, representam uma síntese expositiva e crítica das
teorias vigentes, questionadas ou nascentes, a partir da segunda metade do Século
XIX.

Fontes: Iara Regina Franco Rodrigues, Mestre em Letras (UFRGS) | Onofre
de Freitas, Doutor em Letras: Estudos Literários (Área de concentração:
Literatura Comparada) – UFMG.

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