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A Hora e Vez de Augusto Matraga (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

Análise da obra

A Hora e Vez de Augusto Matraga faz parte de Sagarana que é uma coletânea de novelas e novelas, nove no total. Todos os textos apresentam a tendência de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da linguagem regional, mantendo-se ligados ao instrumentalismo. Todos os novelas se passam , como pode ser comprovado pelo cenário, no interior de Minas, existindo farta nomeação de lugares e regiões. Essa verossimilhança serve de primeiro elemento catalisador das narrativas. Mas há outras formas de agruparmos as narrativas.

Estilo

Sagarana, na qual se encontra a novela A hora e vez de Augusto Matraga, não apenas está inserida nas perspectivas instrumentalistas (linguagem como instrumento constante de pesquisas), bem como é uma das obras iniciadoras da terceira fase.  A hora e vez de Augusto Matraga aponta para a tendência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, uma vez que sua leitura do mundo regional faz-se a partir da projeção para um prisma universal.

Tempo e espaço

O tempo da narrativa está mais voltado ao psicológico, ou seja, indeterminado. O espaço é Minas Gerais, mais especificamente o Norte de Minas, destacando-se nomes de vilarejos (Rala-Coco, Murici, Pindaíbas, Tombador) e lugares do sertão (rios, serras, etc.).

Foco narrativo

A novela é narrada em terceira pessoa. O narrador é onisciente, penetrando nos pensamentos de Augusto Matraga como se fosse sua consciência.

O novela mostra a linguagem regional aliando ao mais puro poético para criar efeitos inusitados e da mas sublime perfeição. O casamento entre o regional e o erudito parece surpreender o leitor, maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal que, ora prende, ora espanta, criando dificuldades de entendimentos para muitos.

Problemática e principais temas

A novela A Hora e Vez de Augusto Matraga ocupa um lugar de destaque dentro da antologia de Sagarana, uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em O Burrinho Pedrês de que um único momento pode valer por toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o sítio montado num burrinho. Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (“… porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzínho assim meio sagrado, muito misturado às pas­sagens da vida de Jesus”), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os homens.

Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!…”

A força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena.

A trajetória heróica de Augusto Matraga que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as grandes epopéias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas também o mal, está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco com suas dualidades e ambigüidades do que do clássico. As verdadeiras epopéias modernas, como podemos considerar A hora e vez de Augusto Matraga, são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente através de seus corpos e de suas almas à espera de que surja a sua hora e vez.

Personagens

Augusto Esteves Matraga – é o protagonista da obra. Muda de nome de acordo com as passagens significativas de sua vida, o que nos permite enxergar nele uma projeção dos heróis míticos. Matraga transforma-se num homem bom e abnegado, trabalhador e rezador, depois de ter sido mau, mulherengo e violento. Seu comportamento desregrado levou-o a perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo quase perdido a vida. Depois de uma surra aplicada pelos capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renascer como outro homem. Foi obrigado a esconder-se dos inimigos num sítio com um casal de pretos velhos que o salvou. Terminou sua trajetória matando o famoso chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem para salvar uma família inocente, e morrendo.

Joãozinho Bem-Bem – Famoso chefe de jagunços. Homem temido e destemido no sertão. Faz justiça com as próprias mãos ou armas, defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos. Pressente em Nhô Augusto uma força oculta que os aproxima.

Quim Recadeiro Era empregado de Nhô Augusto, tendo a função, como o próprio nome indica, de levar recados. Entretanto, quando o patrão é morto, vai em busca de justiça e acaba sendo assassinado pelos capangas do Major Consilva.

Dona Dionóra: Era mulher de Nhô Augusto. Acabou não agüentando mais as judiações do marido e seu descaso e fugiu com Ovídio.

Mitinha: é filha de Nhô Augusto. Percebe, ainda menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se tomando prostituta.

Major Consilva – Era inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do avô do protagonista. Homem mau e rico, tem todo o poder depois da suposta morte de Nhô Augusto.

Tião da Thereza – Conterrâneo de Nhô Augusto. encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos acontecimentos posteriores à sua suposta morte.

Outros personagens: Angélica. Sariema, mãe Quitéria, preto velho, Juruminho, Teófilo Sussuarana, etc.

Enredo

A hora e vez de Augusto Matraga recria uma verdadeira saga do homem na travessia por este mundo. Matraga é, de um modo mais amplo, o homem no sentido universal. Sua trajetória recria a passagem evolutiva em busca do aprendizado do viver e da ascensão espiritual em plenitude. Seu objetivo será ter sua hora e vez de entrar no céu, “mesmo que seja a porrete”. É uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão. Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do mal ao bem, da perdição à salvação.

Augusto Matraga, foi criado por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso, enveredou para o mal. A narrativa inicia-se em meio a uma festa de santo, em que, num leilão, Matraga arrebata por 50.000 réis uma prostituta, desagradando um sertanejo rude, grosseiro que estava interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia. Ele, de fato era pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento, tratava com pouco caso sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil. No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia de que seus capangas, com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major Consilva. Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.

Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados de Matraga. Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior, atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto.Mas é resgatado e cuidado. Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a morte.

Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem que seja a porrete. Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua perdida e distante. Mostra-se trabalhador, misto de louco e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos. Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido passa por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, ainda mais, mudado. Traz notícias muito inconvenientes. Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta. É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança. Não percebe: já estava salvo. E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas, opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a elevação.

É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe o desarma. O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos. Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por ele.

Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador. Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá estava, prestes a realizar um crime hediondo. Um dos capangas do facínora o havia abandonado, ação que fora considerada traição. Joãozinho resolve se vingar em cima da família deste, querendo assassiná-la. No momento em que Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida de inocentes. A fúria do criminoso parecia não ter limite, pois já estava prestes a se derramar sobre o idoso. É nesse instante que Augusto Matraga intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus. O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas. Augusto Matraga estava morrendo, mas contente.

Aclamado como santo e salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem dignamente. Ainda teve tempo, além disso, de abençoar sua filha perdida. Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão, cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o Céu.

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