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Anjo Negro, de Nelson Rodrigues

by Lucas Gomes

Anjo Negro

, peça teatral de Nelson Rodrigues, foi escrita em
1946. O autor ao perceber o preconceito de que o negro é alvo na sociedade
brasileira e a existência de preconceito no negro em relação
a outro da mesma cor, resolveu escrevê-la. Naquela época, o Brasil
encontrava-se em um período de grandes modificações na
organização do estado brasileiro, saindo de um período
de bastante restrição ideológica e entrando num período
onde reinava a esperança em um país desenvolvido e livre. Tem-se
uma modificação evidente, um período conturbado na esfera
social, modificações na maneira de governar.

Um outra razão de Nelson Rodrigues escrever Anjo Negro foi
porque achava um absurdo o negro ser representando no teatro apenas como o “moleque
gaiato” das comédias de costumes ou por tipos folclorizados. Por
isso, criou um personagem – Ismael – de classe média, inteligente,
mas também com paixões e ódios, ou seja, “um homem,
com dignidade dramática”, enredado em situações proféticas
e míticas. O autor, em várias ocasiões, afirma ter escrito
o personagem para seu amigo Abdias representar, pois, segundo ele, era o “único
negro do Brasil”.

O protagonista de Anjo negro, Ismael, é audacioso, Nelson não
faz concessões. Sem paternalismo, concebe um personagem na contramão
dos personagens negros que geralmente se conhece: não é moleque,
malandro ou empregado subalterno, trata-se aqui de um homem cheio de ressentimentos
e paixões, mas também de orgulho e sensibilidade, um vencedor,
bem-sucedido, arquiteto do seu destino.

A questão racial é tratada de forma radical. Numa sociedade dominada
pelo branco, a única estratégia possível de inserção
é a adoção da ética branca, dominadora e autoritária.
Repudiando sua cor e origem, Ismael desfruta dos privilégios do branco:
dinheiro, status, prestígio e uma mulher também branca.

A peça é apresentada em três atos. Em sua primeira
encenação o cenário apresentou-se sem nenhum caráter
realista: um pequeno caixão de seda branca ocupava o andar térreo
da casa onde dez senhoras pretas se postaram em semicírculo e formaram
um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada,
ajudavam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa
o anjo, vestia um terno branco, engomadíssimo, e calçava sapatos
de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, trajava luto.
A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir
os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta
a solidão do negro
” (p.125). É nesse cenário
que se inscreve o drama, que também reproduziu cenas da infância
do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança,
Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso
por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora
curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam
a morte dos maridos.

O espaço onde, concetradamente, desenrola-se Anjo Negro é,
pois, um espaço marcadamente diferenciado. A entrada de pessoas no lar
é completamente restrita e coordenada pelo dono, o negro, o anjo negro,
Ismael. Brancos não podiam se aproximar.

Na trama de Anjo Negro, pulula a violência, nas suas mais diversas
formas, das mais variadas naturezas, em constantes situações.
As personagens são violentas entre si, sofrem a violência, vivem-na.
Há vinganças recíprocas e intermináveis. Há
ódio dissimulado no amor. Amor dissimulado no ódio. Ou somente
um desejo, que gera violência. A história de Anjo Negro
apresenta-se, assim, como uma rede truncada de muita violência.

Apesar de ser formalmente bem mais semelhante à tragédia clássica,
é difícil organizar Anjo Negro dentro dos padrões
trágicos. Ismael também é movido por amor, e esse exagero
de amor o faz incorrer em erros ainda mais graves, como o assassinato da filha;
mas seu maior erro é o preconceito com sua cor. Se tratar-se Virgínia
como heroína, teríamos uma estrutura semelhante à de seu
marido; seu erro seria o mesmo, é o preconceito da cor, mas depois do
casamento, ele se torna repugnante a ela que, por ódio, mata seus filhos.
Mas eles não cometem seus erros sem ter consciência de que os estão
cometendo, é eticamente inadequado discriminar alguém por sua
cor e eles sabem disso; contudo é difícil considerá-los
personagens maus, por que a sociedade em que estão inseridos é
fortemente racista o que quase os impele para o erro. Então volta-se
a ter o dilaceramento entre o individual e o social. O indivíduo, no
caso Ismael, sabe que tem a mesma capacidade que os brancos, mas a sociedade
não acredita nisso. Ismael se embate nesse conflito e para provar que
é capaz, se forma em medicina, mas para se valorizar não busca
a valorização de sua cor, mas a negação dela; ele
passa a sentir branco e agir como tal discriminando os negros; desta forma ele
nega o individual para dar lugar ao social.

Essa estrutura formal provoca um estranhamento grande, pois não se formam
duas forças de igual valor moral; uma é o funcionamento normal
e equivocado da sociedade; outro é a valorização de uma
cor tão boa quanto todas as outras. O destaque que Ismael recebe também
reforça esse estranhamento, mostra o quanto ele é capaz, mas mesmo
assim discriminado por ser negro. A presença do coro de mulheres negras
que amaldiçoam o negro que casou com a branca também mostra que
há discriminação pelos dois lados, as duas cores tentam
desvalorizar a outra a fim de valorizar a sua, isso fica evidente quando o coro
afirma que Virgínia tem o útero fraco.

Todavia, Nelson Rodrigues usa muitos aspectos formais clássicos, como
o uso do coro, com a função de trazer para o palco a opinião
do senso comum sobre a situação apresentada; nesta peça
ele é feito por um grupo de senhoras negras, como já visto, que
rezam no velório dos filhos do casal. Também tem-se a perfeita
unidade de espaço, só existe a casa de Ismael e Virgínia,
não há mundo exterior. O tempo já é mais extenso,
tem-se o nascimento e crescimento de Ana Maria, que não é totalmente
apresentado, isso faz com que se perca também a unidade de ação;
obviamente, sem que isso prejudique a qualidade da peça.

A condição de Ismael enquanto homem superior é bastante
delicada, ele é um excelente médico o que lhe garante grande prestígio
social, também é esforçado, venceu por meio de seus próprios
esforços às adversidades que a vida lhe trouxe, mas renegou a
família e faz de sua esposa uma prisioneira, além de ser cruel
com todos à sua volta. Também não tem uma posição
de liderança, ele só se impõe à esposa. Mas o seu
erro também foi o motivo que lhe trouxe prestígio. Ele erra por
ter vergonha de sua cor, mas ele também se esforça e vence na
vida por isso mesmo. Ele quer compensar sua cor com qualidades que quase só
os brancos têm neste momento histórico. Ele tem a trajetória
do herói trágico, durante a peça, passa da fortuna ao infortúnio.
Na morte do filho, no primeiro ato, ele é um homem de prestígio
apesar de marcado pela tristeza da perda de todos os filhos. Já no final
acabam só ele e a esposa partindo para uma morte em vida, após
os dois terem matado seus filhos; ela, os meninos e ele, a menina.

Virgínia, sua esposa, assassina por afogamento, um a um os filhos que
trazem em si a marca da mestiçagem e odeia a filha, fruto do adultério
com o cunhado Elias. Ela não quer que haja descendência do negro,
seu marido. Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que
esses crimes os uniam ainda mais. Isso fica claro quando, próximo ao
final da peça, Ismael diz a Virgínia saber ser ela a assassina
dos filhos e que, mesmo assim, nada fez para impedir o ato. Ambos recusavam
a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia
grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de
Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e ele
a culpa por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico
competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir
o fato de ter a pele negra.

Ismael, por sua vez, rejeita sua cor. A inveja que sentia de seu irmão
branco, de criação, Elias, leva-o a cegar Elias, ainda na infância,
através de uma engendrada troca de remédios. É também
pelas mãos de Ismael que Elias morre, num ato de vingança pela
traição sofrida, uma vez que Elias cedeu à sedução
de Virginia. A singularidade Ismael contrasta com a grande galeria de homens
e mulheres rodriguianos, onde, em determinado momento da ação,
os personagens retiram as máscaras e se apresentam, inesperadamente,
na mais completa nudez psíquica. O que faz uma pessoa renegar a própria
cor? Este é o questionamento rodrigueano expresso pela voz de Elias.

Decidido a “se tornar branco”, Ismael executa, com êxito e
sem remorso, sua estratégia. Com formação superior, era
um “médico de mão cheia, de muita competência, o melhor
de todos”; casou-se com uma mulher branca e muita linda e renegou a mãe
negra, causadora de sua desgraça.Vestia-se sempre de branco, impecável.
Quando a peça começa,Virgínia e Ismael estão casados,
tiveram três filhos negros, mas todos foram mortos por ela. Tendo sido
violentada por Ismael, obrigada a se casar com ele e encarcerada dentro de casa,
Virgínia aguarda o momento da vingança definitiva, gerar um filho
branco. Enquanto transcorre o velório do terceiro filho, chega à
casa Elias, o irmão de criação de Ismael, branco e cego,
trazendo a maldição da mãe negra. Seduzido por Virgínia,
Elias é em seguida morto por Ismael. Ela engravida e dá a luz
uma menina branca. Ismael, durante meses, se debruça sobre o berço
para que a menina não esqueça sua cor e, completando seu plano,
um dia pinga ácido nos olhos dela, cegando-a. Assim, Ana Maria jamais
saberia que o pai é negro. Pai e filha desenvolvem uma paixão
desmedida. Ela acredita que o pai é branco e que todos os outros homens
são negros e perversos.

Dezessete anos depois, Ismael constrói um mausoléu para viver
com a filha, onde nenhum desejo de branco pudesse alcançá-la,
mas Virgínia enlouquece vendo-se substituída pela filha e consegue
convencer Ismael a abandonar Ana Maria sozinha no túmulo de vidro. Juntos
continuam, Virgínia e Ismael, a gerar filhos negros que serão
mortos.

O negro também cega, em bebê, Ana Maria, filha do único
relacionamento entre Virginia e Elias, para que ela, impossibilitada de comprovar
a “verdade”, acredite ser Ismael o único branco do mundo.
Com isso, fomenta na enteada o amor e a admiração não alcançados
com a esposa. Os três infanticídios, os dois cegamentos, o assassinato,
a impressão de Virginia de estar sendo violentada ao ter relações
sexuais com o marido, além do confinamento de Ana Maria num mausoléu
– engendrado por Virginia e Ismael ao final da peça – delineiam
a trama de Anjo Negro.

Ismael não consegue disfarçar nem superar as contradições
de um corpo marcado insistentemente pelo efeito da voz que, em seu ato complexo
de vocação e invocação, reproduz o efeito do olhar,
inscrito historicamente por um passado escravista. Paralisado, ele não
consegue alçar à condição de desejante, sujeito
este capaz de sustentar suas escolhas, com todas as particularidades que uma
posição assim nos revela e nos exige em termos de renúncia.

O que, na peça, é fadado ao silêncio? O que não
pode ser mostrado e, ao mesmo tempo, é explicitado no texto? Nelson aponta
para a problemática racial em que, certamente, se articulam os subsídios
para uma teoria social do Brasil, onde se destaca a violência como fator
de base dos fundamentos estruturais do modelo étnico-social brasileiro.
A peça explicita a vivência de amor/ódio num casal inter-racial
e a ambigüidade diante de sua linhagem mestiça. O estilo poético-realista
de Nelson Rodrigues revela, de maneira perturbadora, temas adormecidos no inconsciente.
Ele revolve esse universo profundo do espectador trazendo à consciência
o recalcado e utiliza-se da tragédia para falar do racismo. Assim, remete-nos
ao drama grego: a tragédia, pois somente o trágico daria conta
de desvendar essa realidade brasileira relegada às trevas – o racismo.
Algo da ordem do trágico, tal qual é explicitado no drama grego,
pode estar muito próximo de nós, se considerarmos que, enquanto
humanos, vivenciamos as emoções que o perpassam.

Créditos: Liliane Negrão Pinto, Mestranda (Instituto
de Estudos da Linguagem), UNICAMP | Eliana Maria Delfino, José
Tiago Reis Filho
, Sílvia Regina Gomes Foscarini, Wanda
Avelino
– Círculo Psicanalítico de Minas Gerais | Seleste
Michels da Rosa
, formada em Letras (UFRGS), especialista em Literatura
Brasileira (PUCRS) e mestranda em Literatura Brasileira (UFRGS)

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