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Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues

by Lucas Gomes

Análise da obra

Boca de ouro

é uma tragédia carioca em
três atos escrita por Nelson Rodrigues em 1959.

O chofer de um ônibus que Nelson Rodrigues pegava para
ir almoçar na casa mãe tinha todos os 27 dentes de ouro. Orgulhoso
de seu xodó, dizia sempre que os dentes eram de ouro maciço, 24
quilates. Impressionado com a história, o dramaturgo resolveu escrever
uma peça que combinasse a dentadura dourada do motorista com uma personagem
real do submundo carioca, o bicheiro Arlindo Pimenta.

Assim nasceu Boca de Ouro, o bicheiro de Madureira
que mandou trocar todos os dentes brancos e perfeitos de sua boca por pivôs
de ouro puro. Malandro e cheio da legítima ginga carioca, Boca de Ouro
nasceu numa pia de gafieira e seu primeiro banho foi com água de bica.
Morre de complexo por causa da sua origem.

Apesar da história tipicamente brasileira, a estréia
de Boca de Ouro, em 19 de outubro de 60, não fez muito sucesso.
Os motivos são muitos, mas certamente o principal deles foi a atuação
do diretor, Ziembinski, no papel-título. Era praticamente impossível
para a platéia enxergar no polonês a figura de um malandro banqueiro
do bicho, repleto de swing e malícia.

Outro problema enfrentado pela produção da peça
foi a estréia em São Paulo, pela primeira e única vez em
toda a carreira do dramaturgo. O público paulista não era o mais
apropriado para assistir, pela primeira vez, àquela tragédia tipicamente
carioca. O marasmo foi tanto que a terceira tragédia de Nelson Rodrigues
não segurou nem três semanas no Teatro Federação,
chamado depois de Cacilda Becker.

Em janeiro de 61, Boca de Ouro ressuscitou com pompa
e circunstância no Rio de Janeiro. Depois da interdição
da censura, trancando por alguns meses a peça, e da estréia frustrada
em São Paulo, a história do bicheiro ganhou nova dimensão
pelas mãos do diretor José Renato e do ator Milton Morais, no
papel de título.

Nelson Rodrigues, em Boca de Ouro, faz implicitamente
o processo metafísico da violência, da vontade de poder, e sua
lição é construtiva. Ele mostra a impossibilidade do homem
de, pelo furor destrutivo, chegar a salvar-se. O ressentimento, como paixão
existencial, e a raiva cega que dele decorre arrastam o ser humano para o abismo
do aniquilamento da morte. O homem, sem dúvida, traz consigo, no mais
íntimo de sua substância ontológica, a vocação
da alquimia, a sede de transfiguração, o instinto que o leva a
tentar a transformação do barro em ouro. Mas este milagre só
se opera na medida em que o homem se aceita e se ama na sua fragilidade, na
argila perecível e corruptível que ele também é,
para além de qualquer ressentimento. Nesse instante, sem o saber, eis
que encontra em suas mãos a pedra filosofal que o transfigura e lhe abre
as portas da luz que não se apaga.

Classificação da peça

O crítico de teatro Sábato Magaldi classificou
a peça Boca de Ouro como tragédia carioca. O próprio
crítico, porém, ressalva que essa classificação
tem caráter didático, não pode ser considerada rigidamente,
sob pena de empobrecer o universo do ficcionista, já que as características
nunca se mostram isoladas.

Sábato conclui: “Poucos dramaturgos revelam,
como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e original, e com
um espectro tão amplo de preocupações psicológicas,
existenciais, sociais e estilísticas.”

Características

O comportamento obsessivo, paroxístico do protagonista.
Nelson Rodrigues não teme o exagero: seus personagens são prisioneiros
de paixões avassaladoras. Tornam-se protótipos, já que
o autor ultrapassa as conveniências realistas e os constrói com
um vigor desmedido.

A morbidez que, no seu teatro, serve para
aguçar a sensibilidade, abrindo desvãos psicológicos que
de outra forma continuariam vedados, escondidos. Ele é “nosso primeiro
dramaturgo a sublinhar de forma sistemática os comportamentos mórbidos
da personalidade, coexistindo com as facetas consideradas normais”.

Mais um traço que acompanha a obra inteira: a
ironia feroz
(…) Os prazeres são sempre efêmeros, as
alegrias escondem apenas uma realidade que não se desvendou ainda. Os
desfechos irônicos e trágicos das peças remetem biograficamente
às tragédias familiares, de que Nelson nunca se recuperou (por
exemplo: o assassinato de seu irmão Roberto).

Nelson Rodrigues é um mestre do “diálogo”.
Isento de literatice, seu diálogo é direto, enxuto, preciso, funcional.
A linguagem é predominantemente coloquial.

Família e sexo: o que é socialmente
transmitido como proibição, na esfera sexual e das relações
afetivas, é sistematicamente violado. Neste sentido, o seu teatro constitui
uma abordagem crítica à estrutura social brasileira, cujo sistema
de relações e cujos valores de base têm sua aparente segurança
abalada. Neste contexto se inserem os comportamentos de incesto (relação
sexual entre parentes) e outras formas de relacionamento sexual culturalmente
proibidas (entre pessoas do mesmo sexo, entre pessoas de raças ou classes
sociais diferentes…) Na família, predomina uma aura de pudor e de repressão
na esfera sexual, e o autor vai explicando a quebra de tabus familiares e sexuais,
tais como a virgindade, a fidelidade, a intocabilidade entre os membros da família,
o papel do pai e da mãe, e assim por diante.

A violência marca as relações
inter-pessoais através de três situações típicas:
a traição, o antagonismo e a exploração.

Crítica à imprensa: O teatro
rodriguiano apresenta forte crítica às instâncias formadoras
da opinião pública, sobretudo a imprensa, mostrando como e por
que são construídos os fatos supervalorizados socialmente e como
é falsa a neutralidade desses órgãos.

Estrutura

Por ser praticamente toda embasada nas lembranças de
dona Guigui, Boca de Ouro dá margem a muitas interpretações.
A desunidade da peça, porém, é apenas aparente; em essência
não há nenhuma contradição. As três versões
para um mesmo assunto, o bicheiro, podem ter vários significados, mas
certamente estão ligadas à própria condição
psicológica da narradora no momento.

Por causa da mágoa de ter sido abandonada, dona Guigui
constrói, de início, um Boca de Ouro fascínora. Capaz de
matar só porque lhe lembraram sua origem, numa pia de gafieira. Assim
que fica sabendo da morte dele, pelos próprios repórteres que
foram entrevistá-la, a paixão de dona Guigui explode novamente
e ela chega a omitir que Boca de Ouro assassinou Leleco, na segunda versão.
Seu atual marido, porém, fica chocado com a coragem da mulher em declarar
segredos do homem mais poderoso da região e ameaça ir embora de
casa se ela continuar falando. Para preservar o casamento, dona Guigui dita
ao repórter a última versão sobre o bicheiro, agora retratado
como um “assassino de mulheres” que sacrificou Celeste. A narrativa
de dona Guigui se interrompe quando Maria Luísa e Boca de Ouro vão
para o quarto, e se passou bastante tempo, no qual aconteceu o assassinato do
bicheiro, até a hora em que a grã-fina relatou a história
para os jornalistas.

Se no 1° ato Boca mata Leleco ao ouvir o insulto contra
a mãe e no 2° é Celeste quem assassina o marido, no 3°
o crime volta a ser praticado pelo bicheiro, com a cumplicidade da amante, que
usa um punhal. A dúvida fica com a platéia no final da peça.
Dona Guigui mentiu sempre, nunca, por causa das circunstâncias? Qual a
verdadeira versão? Pelas questões sem resposta que suscita nos
espectadores, Boca de Ouro pode ser caracterizada como uma obra aberta.

Nelson Rodrigues, na estrutura de sua peca, mostra, sem qualquer
dúvida, a sua intenção de universalizar certas realidades
inconsciente fundamentais, que Boca de Ouro representa. Tanto é assim
que o personagem só aparece, como presença autônoma, na
primeira cena, no dentista, quando manda arrancar todos os dentes sadios para
substituí-los por uma dentadura de ouro. Neste gesto o personagem define,
desde logo, com um vigor absoluto, o cerne de seu projeto existencial. Boca
de Ouro escolhe aí o caminho da potência onipotente da força
desmesurada e agressiva através da qual espera agarrar a invulnerabilidade
a que aspira. Os dentes naturais são perecíveis, envelhecem e
morrem. Seu poder de domínio triturador está limitado pelas travas
insuperáveis da condição humana. Boca de Ouro, ao optar
pela dentadura que lhe deu o nome, busca transfigurar-se e imortalizar-se pelo
caminho da agressão primitiva, aquém ou além do bem e do
mal. Nesta medida, coroado rei por si mesmo (corado nos dentes), sentado no
trono de seu despotismo sem limite, o personagem transcende o subúrbio
e se configura como herói da espécie, violento e terrível.

Em virtude desta dimensão mítica é que
Boca de Ouro, como ser autônomo, individual e individuado, já não
mais aparece na peça. Ele existirá pelos olhos dos outros, terá
as múltiplas faces que os outros lhe atribuem, será, além
de si próprio, a encarnação das fantasias de onipotência
que os outros, através dele, buscam exprimir. Esta é a linha psicológica
pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma vez que os personagens:
D.Guigui, Agenor, os jornalistas, a comparsaria que faz fila no necrotério,
o locutor de rádio ao falar de Boca de Ouro, falam também de si
e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam nos seus sonhos de poder
e despotismo. Os demais personagens ligados ao Boca de Ouro, e trazidos à
cena pela narrativa de D. Guigui ao repórter, participam deste mesmo,
desdobramento de planos psicológicos e, sendo vivos e autônomos,
também representam focos de clarificação que iluminam o
herói da peça e são por ele iluminado, desvendando, por
último, a realidade interna da narradora que os faz viver.

Qual será, por fim, o significado profundo da peça
de Nelson Rodrigues, e que alcance ético poderá ter? A chave da
pergunta nos é dada pelo próprio autor, através da força
intuitiva dos símbolos que cria. Boca de Ouro, nascido de mãe
pândega, parido num reservado de gafieira, tendo perdido o paraíso
uterino para defrontar-se com uma realidade hostil e inóspita, sentiu-se
condenado à condição de excremento. Seu primeiro berço
foi a pia de gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o abandonou num
batismo cruel e pagão. Esta é a situação simbólica
pela qual o autor, com um vigor de mestre, expressa o exílio e a angústia
humana do nascimento, o traumatismo que nos causa, a todos, o fato de sermos
expulsos do Éden e rojados ao mundo, para a aventura do medo, do risco
e da morte. Boca de Ouro, frente a esta angústia existencial básica,
escolheu o caminho da violência e do ressentimento para superá-la.
Ele, excremento da mãe, desprezando-se na sua imensa inercidade de rejeitado,
incapaz de curar-se desta ferida inaugural, pretendeu a transmutação
das fezes em ouro, isto é, da sua própria humilhação
e fraqueza em força e potência. Esta alquimia sublimatória
ele a quis realizar através da violência, da embriaguez do poder
destrutivo pelo qual chegaria à condição de deus pagão,
cego no seu furor, belo e inviolável na pujança de sua fúria
desencadeada. Ao útero materno mau, que o expulsou e o lançou
na abjeção, preferiu ele, na sua fantasia onipotente, o caixão
de ouro, o novo útero eterno e incorruptível onde, sem morrer,
repousaria. Acabou mal esse Boca de Ouro, esse belo sinistro, terrível
e ingênuo herói, tão grande e tão miserável
na sua revolta contra a condição humana. Ele que, pela violência
homicida, pretendeu realizar o velho sonho da alquimia, de transmutação
dos elementos, transformando-se a si próprio em ouro imperecível,
acabou lançado à sarjeta, com a cabeça no ralo, crivado
de punhaladas, reduzido à matéria de que tinha horror.

Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei
destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais
fraco e mais pobre dos seres.

Diálogos e personagens

“Mais uma vez, Nelson atribui pouca importância
à realidade, mero respaldo da aventura interior. Além de fundamentar
a figura mítica de Boca de Ouro, o dramaturgo empenha-se em seguir as
flutuações da subjetividade. Em Pirandello, a personagem é
múltipla, porque emite imagens diferentes para cada interlocutor. Mas,
para o mesmo interlocutor, essa imagem se mantém inalterada. Nelson vai
mais longe no processo de sondagem: dependendo sobretudo do estado emocional
do contemplador, a personagens adquire para ele fisionomias diversas, freqüentemente
contraditórias. A dimensão psicológica se enriquece, assim,
até o infinito. Engrossando as fileiras de importante vertente da ficção
contemporânea, Nelson traz à tona o sutil jogo de intersubjetividades”.

(Sábato Magaldi)

Boca de Ouro traz de volta à obra do dramaturgo
alguns elementos de Vestido de Noiva. Nesta sua célebre peça,
a ação dramática é, na verdade, a projeção
exterior da mente de Alaíde, mulher que foi atropelada por um carro e
acaba morrendo. O público fica informado dessa “aventura da subjetividade”,
nas palavras do crítico Sábato Magaldi, a partir da comunicação
do acidente ao jornal e, depois, ao ouvir as manchetes gritadas pelos jornaleiros.
Em Boca de Ouro, a ação é projeção
da mente contraditória de dona Guigui, antiga amante do bicheiro. Os
flashbacks, matéria dramática da peça, são frutos
da confusão mental de dona Guigui e servem para desnudar Boca de
Ouro
aos olhos do público. A ação é toda manipulada
por ela.

Enredo

Há, na obra de Nelson Rodrigues, duas fases distintas,
embora complementares. em primeiro lugar, existe a fase mítica, em que
o autor trabalha predominantemente com realidades arquetípicas, sem qualquer
compromisso substancial com o mundo objetivo.

Já na sua segunda fase, balzaquiana, por assim por dizer,
Nelson Rodrigues faz com que seus personagens desçam do Olimpo e se plantem
no chão do mundo, no chão do subúrbio carioca, de onde
passam a brotar com um vigor e uma autenticidade admiráveis. Esta transição
se processa, no entanto, sem prejuízo dos aspectos míticos da
obra, que continuam encravados no coração do teatro de Nelson
Rodrigues e lhe conferem a sua grandeza poética e a sua universalidade.

Em Boca de Ouro, esse casamento entre o particular e o universal, entre
o subúrbio, no que dele tem de mais peculiar, e a simbologia arcaica do
inconsciente, no que esta possui de mais genérico, se faz de maneira psicológica
e artisticamente perfeita. É claro que tal inserção de planos
pode confundir e desorientar a crítica, mesmo avisada e experiente. Daí,
por exemplo, a impressão de “salada”, de desunidade, que um crítico
da lucidez e da experiência de Paulo Francis denuncia em seu contato com
a obra. Esta desunidade é, porém, aparente e não essencial.
Ela decorre da perplexidade do espectador ante o encontro entre o mito e o subúrbio,
e das surpresas e desdobramentos que surgem deste conúbio. Boca de Ouro,
sendo um autêntico rei do jogo do bicho, brasileiríssimo e suburbano,
é, ao mesmo tempo, o fulvo felino imemorial que nos habita a todos, o leão
de Judo onipotente que cada um alimenta nas testas de sua fantasia profunda, todo
músculo e toda força, além da morte, além do risco,
além da solidão e do abandono.

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