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Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

by Lucas Gomes

Com o romance Cinzas do Norte, Milton Hatoum cumpriu seu objetivo de escrever
a “história moral de sua geração”.

Cinzas do norte, o romance mais abertamente político de Hatoum, inicia-se no
mesmo registro desencantado que termina Dois irmãos. É um romance com uma
linguagem seca e objetiva, que conta uma das possíveis estórias de uma geração que
sonhou um mundo mais justo apenas para encontrá-lo em cinzas na sua maturidade.
Estamos diante de um mundo onde nada resta. O título é emblemático; é praticamente
um programa para a narrativa.

O “Norte” do título não indica direção possível, capaz de guiar alguém por caminhos
incertos, mas um fim, cinzas de um projeto pessoal interrompido, caso do artista
Raimundo. O título é uma metáfora de muitas coisas, de personagens que acabam em
cinzas, da cidade que é destruída e reconstruída várias vezes, como são as cidades
latino-americanas, desse Norte de um itinerário que é a própria definição clássica
do romance, uma trajetória de vida que termina em cinzas, tragada pelas adversidades,
pelos desencontros, pelo destino que também se torna cinzas.

A própria história do autor serve como base, ainda que, diga-se, o romance não
seja autobiográfico. Mesmo assim, o escritor parte de fundações reais para erguer
sua ficção. Os dois protagonistas são contemporâneos de Hatoum, nascidos no início
dos anos 50. Ao longo da trama, acompanham o que ele mesmo viu: o golpe de 1964,
os Anos de Chumbo, o milagre econômico e a abertura. O colégio Pedro II de Manaus,
por onde passam Lavo e Mundo, teve como aluno o autor.

A ditadura militar não exerce um papel central no romance; não há digressões humanitárias
ou políticas e nem um panorama artístico e cultural do período. Os elementos que
compõem o cenário para a trama estão lá e têm, é verdade, um propósito, mas o
fundamental está mais naquilo que não se diz diretamente: há em Cinzas do Norte
uma atmosfera que cerca os personagens, mas que só pode ser apreendida na própria
narrativa, à medida que se avança no romance.

Para além dos elementos “cenográficos”, de contexto, da arquitetura de paisagens
e tipos humanos, é preciso que se saiba captar os ecos de uma época e de um lugar,
para traduzi-los em palavras que expressem a relação de seus personagens com o
mundo e com a vida, que, no fim das contas, é tudo o que importa.

A narrativa se passa na capital amazonense, Manaus, cidade natal de Hatoum. É um
enredo aflito e amargo. Ao final, o livro deixa o gosto do passado que assombra
o presente, difícil de digerir.

A história contrapõe duas famílias, uma rica e a outra pobre, e os pontos de vista
se multiplicam à medida que a história vai revelando hiatos e reversões. Se o
romance anterior, Dois irmãos, tinha o poder intrínseco ao drama do núcleo
familiar, este seduz o leitor pela costura oculta, pelo mosaico de desencontros.
Em Cinzas do Norte mal entramos, e a sensação fragmentária se instala;
não estamos diante de uma ordem que passo a passo implodirá, e sim de uma desarmonia
vigente. À trama de Cinzas do Norte, Hatoum deu mais vazão à ironia e à
amargura.

Os personagens são patéticos, desgraçados, úmidos e viscosos como a natureza amazônica;
nem por isso deixamos de nos sentir em suas peles, de partilhar sua dor e impotência.
Isso é o que só grandes escritores podem fazer. Hatoum também abre mais espaço
para a descrição de exteriores, embora seja por excelência um escritor intimista,
e tal combinação reafirma sua qualidade rara na literatura brasileira, tradicionalmente
polarizada em tais abordagens. Ele capta o clima e a topografia de sua região,
mas não é um regionalista; ao mesmo tempo, cria uma galeria de personagens com
profundidade psicológica, sem fazer literatura urbana. Seu quadro vai do meio
ambiente ao vazio da alma, fundindo o social e o existencial.

A obra tem uma abundância de personagens completos, com passado,
presente e futuro.

Como já vimos, Cinzas do Norte traz uma história que se passa entre os primeiros anos
do Golpe Militar de 1964 até a abertura democrática dos anos 1980. Nesse período,
acompanham-se principalmente as trajetórias paralelas de dois amigos, Lavo (o narrador)
e Mundo (o protagonista central), da infância à idade adulta.

Mundo, ou Raimundo, sonha ser artista. É apaixonado por desenho desde pequeno e
ignora qualquer educação formal. Nascido numa família rica e decadente, vive numa
contenda cruel com o pai, o milionário Jano, amigo dos militares, que não aceita
que o filho troque os negócios da família pela arte, e tenta esmigalhar seu sonho.
Ele despreza a rebeldia e os talentos artísticos do filho, com quem disputa o amor
da mulher, Alícia, mãe do garoto, que por outro lado, estimula o talento do filho.
No correr das páginas, vão surgindo intrigas e vínculos mal resolvidos entre os
dois núcleos, e tudo é desvendado com sutileza, às vezes apenas sugerido. Outros
narradores somam-se a Lavo, e as diferentes versões da história acabam por formar
um círculo que se fecha apenas nas linhas finais.

Lavo, que narra tudo em primeira pessoa, é um órfão, perdeu os pais em um naufrágio
e foi criado por tia Ramira e tio Ranulfo, ambos irmãos de sua falecida mãe. Ramira
era costureira e apaixonada por Jano, e Ranulfo, ex-namorado, ex-cunhado e eterno
amante de Alícia, mãe de Mundo, que o trocou pelo dinheiro e o status de Jano.

Lavo é um narrador observador: ainda que todos os fatos narrados estejam diretamente
ligados a sua vida, conta a história do lado de fora. Torna-se ao fim advogado de
detentos esquecidos nas prisões.

Ranulfo é um típico boêmio errante, e também instigava Mundo a levar a sério seus
desejos artísticos.

Nesta história, Lavo apresenta e relata a vida do seu tio Ran, Ranulfo,
um artista perdido nas terras, nas ruas que nasciam, na grande Manaus; conhecedor
das águas, dos rios de águas em que se derrete a imensa Amazônia, serpenteando,
ondulando, para os caboclos que, de tanto ver, apenas os acompanham, levados pelo
banzeiro dos rios, dos paranás, dos furos. Tio Ran, que ao final da sua vida,
quando cansado de tudo perder, menos a sua liberdade, se embalava na rede emprestada
por um amigo, lendo um romance. Ramira, sua irmã, sempre incomodada com a vida
estranha que levava seu irmão, e que Lavo ouviu, ainda na meninice: “Estou
trabalhando, mana”. Mais tarde, Lavo entenderia que esta era uma das definições
de literatura.

O amor de Ranulfo por Alícia foi a grande causa da sua vida. Alícia, mãe de Mundo,
retrato da cabocla amazonense, inconfundível na sua beleza e nos seus conflitos;
miscigenação da riqueza e da miséria; conflito da ancestralidade e da confusão
de raças, culturas e sangues; incompatibilidade necessária e busca da unidade
humana no outro. Tudo isto nela se confunde. Ela que não sabia, que nunca soube
quem era seu pai, talvez um francês que só deixou um vestígio nas Cinzas do
Norte
. A mulher pobre que um dia aportou na beira do rio Negro, acompanhada
por sua irmã Algisa e uma índia, mantenedora de exóticos costumes, casou-se com
um descendente de portugueses. Este, homem rico e mesquinho, dono da Vila Amazônia,
próxima de Parintins, meu berço, a Ilha Encantada, terra do Garantido e do Caprichoso,
deveria ser o pai de Mundo, o filho que nunca foi seu filho, porque era filho
de Aranda, falso artista da Manaus que se abria para o mundo, e porque Jano queria
um herdeiro e não um filho para a sua imensa fortuna. O nascimento deste menino
marcou o distanciamento entre Alícia e Jano, abreviatura de Trajano.

Hatoum constrói assim aos poucos a dúvida sobre a paternidade de Mundo. Cartas de
tio Ran para Mundo recheiam o livro, intercaladas com os capítulos.

Mundo e Lavo são dois opostos que representam os caminhos que marcaram a juventude
daquela geração: ser artista e/ou engajado e lutar pelas mudanças, ou se conformar
e virar um engravatado, quieto e com o salário garantido no fim do mês. Como diz
Mundo, “ou a obediência estúpida ou a revolta”, sem saber, em sua radicalidade
ingênua, o quanto esses dois caminhos, apesar de todas as diferenças, terminam
parecidos (“neste mundo, quem vive é que vê o pior”, diz o chofer de Jano). Terminam
na desilusão, implacável.

A amizade de Lavo e Mundo não é óbvia. Mais do que afeto, o que sentem um pelo
outro é uma espécie de necessidade, uma inveja mútua. Lavo inveja a coragem, a
ousadia, o talento e o inconformismo de Mundo. E este se ressente da suposta liberdade
do amigo, que não tem um pai ou alguém para o impedir de realizar seus sonhos,
mesmo porque Lavo não tem sonhos. Falta-lhe a obstinação. Torna-se advogado por
falta de vontade de decidir qualquer outra coisa.

A dissolução familiar ainda é um tema forte para o autor, o ódio entre pai e filho
é ainda mais assombroso. A literatura de Hatoum nutre-se de conflitos. Conflito
cultural, com o ocidental e o oriental que se fundem, mas que mantêm sua obra
sempre universal, nunca regionalista. Conflito entre a tradição familiar, geracional,
e a modernidade industrial que sufoca, oprime, desvirtua Manaus, expulsa os moradores
da beira do rio. Conflito entre a natureza dos rios e igarapés, além da floresta
amazônica, e a concretude urbana, as praças rasgadas por avenidas. Conflito entre
a linguagem culta, elegante, e a coloquial, herdada da oralidade e presente na
segunda pessoa utilizada nos diálogos. O adjetivo mais adequado à prosa de Hatoum:
hipnótica.

Cinzas do Norte instaura ainda uma discussão interessante sobre a função
da arte. Engajada ou comercial? Experimental ou convencional? Mundo acredita que
o artista verdadeiro é o da obra destruída. Enxerga uma função social em sua arte,
uma discussão que vem desde Sartre e Glauber. Arana, seu guru, contrasta as
vertentes; tem vontade de soar artístico, mas faz trabalhos por encomenda e
exibições para turistas. No fim, torna-se exportador de objetos feitos com
madeira nobre, valiosos lá fora, e ganha muito dinheiro. Já sobre a literatura,
Lavo aprende com seu tio, escrever é trabalhar com a imaginação dos outros e
com a sua própria.

O desejo de pertencer a algum lugar e a sensação permanente de deslocamento, onde
quer que se esteja, são outros dilemas comuns aos personagens. Manaus, com seu
calor opressivo e suas fronteiras ilhadas por braços de rio, é uma espécie de
clausura para os protagonistas de Cinzas do Norte. Mas sair de lá não representa
liberdade. Mundo circula pelo Rio de Janeiro, por Berlim e Londres, apenas para
se perceber preso ao passado que sua cidade de origem representa: “Minha
reclusão não é atributo da geografia”, conclui ele, numa carta a Lavo.

É assim que, nas trajetórias de Lavo e Mundo, reencontramos, ao mesmo tempo com
surpresa e familiaridade, a história de vidas que ficaram pelo caminho, os amores
irrealizados pelo medo, as esperanças que se perderam no tempo. É quando escritor e
leitor, reunidos no pacto silencioso da palavra que aponta para um mundo em que nada
lhes é estranho, recolhem, cada um a seu modo, os restos calcinados em um lugar não
tão distante.

Trecho do livro

Caminhavam juntos, sob o sol ou nos dias de chuva, Fogo e Jano, seu dono. O
cachorro se adiantava, virava o focinho para o lado, esperava, se empinava um pouco,
farejava o cheiro do homem, escutava os sons roucos da voz: “Vamos logo, Fogo… Vai,
vai andando”.

Eram inseparáveis: Fogo dormia perto da cama do casal, e Alícia não suportava isso.
Quando o cão trazia carrapatos para a cama, ela o enxotava, Jano protestava, o bicho
soltava ganidos, ninguém dormia. Então Fogo voltava, quieto e mudo, e se aninhava
no cantinho dele, forrado com uma pele de jaguatirica. Ela ia dormir no quarto do
filho. Nos últimos meses da vida de Jano foi assim: Fogo e seu dono num quarto, e
a mulher, sozinha, no quarto do filho ausente. O cachorro tinha na pelagem umas
manchas amareladas que o menino detestava porque um dia o pai dissera: “Manchas que
brilham que nem ouro. Aliás, Fogo é um dos meus tesouros”.

Antes de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da praça
São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado nas pedras que desenham ondas
pretas e brancas. Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa;
olhava o barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e
movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o desenho:
um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o
Amazonas. Além do mar, uma faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me
encarou como se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão, me oferecendo
o papel dobrado.

“Mundo?”, perguntei, antes de agradecer.

Sorriu com o canto da boca, os olhos escuros ainda assustados.

“Naiá, esse aí é o sobrinho do Ranulfo?”

A moça o agarrou pela cintura, e os dois se afastaram, o rosto de Mundo voltado
para mim e em seguida para o monumento.

Foi o primeiro desenho que ganhei dele: um barco adernado, rumando para um espaço
vazio, e toda vez que passava perto da nau Europa, lembrava do desenho de Mundo.

Só fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964, quando as aulas do ginásio
Pedro II iam recomeçar depois do golpe militar. Os bedéis pareciam mais arrogantes
e ferozes, cumpriam a disciplina à risca, nos tratavam com escárnio. Bombom de Aço,
o chefe deles, mexia com as alunas, zombava dos mais tímidos, engrossava a voz antes
de fazer a vistoria da farda: “Bora logo, seus idiotas: calados e em fila indiana”.

Naquela manhã, o portão do colégio estava fechado durante o recreio, e a chuva
confinava os ginasianos sob os pórticos revestidos de mármore. Antes de soar a
sirene, apareceu uma mulher segurando uma sombrinha vermelha que protegia apenas
o corpo do estudante que a acompanhava; tinham quase a mesma altura. Bombom se
precipitou para abrir o portão para os dois, que subiram lentamente a escadaria.
Os alunos se dispersaram para que eles atravessassem o saguão; não olharam para
ninguém, foram observados por todos. O bedel os conduziu à sala do diretor, e quando
a sirene disparou, a mulher reapareceu, sozinha, o cabelo ondulado úmido; a blusa
de seda, molhada, provocou assobios dos veteranos. A morena de cerca de trinta anos
desceu com pressa a escadaria; na calçada, abriu a sombrinha e aproximou o rosto
das grades de ferro. Viu-me encostado a uma coluna e me chamou: era um absurdo não
ir visitá-la, mas de agora em diante eu não teria mais desculpas, seu filho ia
estudar no Pedro II. Concordei com um gesto tímido, e ela ainda disse: “Penso na
tua mãe como se estivesse viva”. Era Alícia, a mãe de Mundo.

No começo ele foi apenas um colega de sala. Esquivo, o mais estranho de todos, e
dono de certas regalias. Nas manhãs chuvosas, um dkv preto vinha pela Rui Barbosa e
estacionava no pátio lateral. Mundo subia a escada, protegido por um guarda-chuva
que o chofer segurava. Este dizia ao bedel: “Aí está o menino”. Mas, quando Mundo
chegava atrasado, tinha que esperar o intervalo seguinte. Nós o víamos rondar o
coreto da praça das Acácias, depois sentar num banco e desenhar um bicho-preguiça,
uma garça, o rosto de um transeunte. As regras disciplinares o transtornavam; mesmo
assim, o desleixo da farda e do corpo crescia, enraivecendo os bedéis: cabelo
despenteado, rosto sonolento, mãos sujas de tinta; a insígnia dourada inclinada na
gravata, o nó frouxo no colarinho, ombreiras desabotoadas. Ele usava uma meia de
cada cor, arregaçava as mangas, não polia a fivela do cinturão. Bombom o barrava
e ameaçava: preguiçoso, displicente, pensava que filhote de papai tinha vez ali?
Mundo não respondia: sentava atrás da última fila, isolado, perto da janela aberta
para a praça. Nos dias de chuva forte, passava o recreio em pé, diante dessa janela,
observando as árvores que a tempestade derrubara, os jacarés entre as pedras, as
aves aninhadas à beira do pequeno lago, alguém sentado num banco, solitário, à mercê
das rajadas, e, mais longe — naquela época o horizonte ainda era visível —, as
casinhas de madeira inundadas ou submersas e os barcos e canoas emborcados ou à
deriva nos igarapés do centro de Manaus.

Nos intervalos, caminhava sem medo no meio dos veteranos valentões, ignorando as
ameaças, arriscando-se a levar um empurrão ou tapa. No silêncio nervoso de uma prova
de matemática, ouvíamos o ruído da ponta do lápis no papel, rabiscando seres e
objetos; mesmo assim, ele respondia às questões e era o primeiro a terminar a prova.
No fim do ano, Mundo nos surpreendeu: aprovado em todas as disciplinas.

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