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Essa terra, de Antônio Torres

by Lucas Gomes

Essa terra

, obra de Antônio Torres, primeiramente publicado
em 1976, é uma obra quase autobiográfica. Um relato emocionante
do impacto da “cidade grande” sobre o retirante, o imigrante nordestino.
O próprio autor – nascido na pequena cidade de Junco, interior da Bahia
– percorreu os mesmos caminhos dos seus personagens, deixando o Nordeste para
procurar a sorte nas metrópoles do Sudeste.

A caracterização sertaneja do Junco não é um mero
retorno à temática regional. O autor salienta que o romance Essa
Terra
está em confronto com o regionalismo considerado como espaço
da tradição, problematizando o regionalismo também enquanto
tradição estética. O que poderia ser uma volta ao regionalismo
tradicionalista, é na verdade um discurso narrativo de desinvenção,
de desconstrução de um espaço regional identitário,
coloca-se assim em questão o próprio mito de autenticidade regional.
Desse modo, o romance rompe com a vertente mítico-nostálgica do
regionalismo para retomar e atualizar sua vertente mais crítica.

Desde o início da narrativa de Essa Terra, pode-se verificar
como o processo de duplicação da identidade influencia tanto o
autor, que também viveu a experiência diaspórica – como
já citado, como os personagens criados por ele. Essa Terra poderia
perfeitamente ser considerado um romance de autoficção por narrar
a precariedade e o desconforto do autor, que coincide, em certo sentido, com
o desconforto do personagem submerso na parafernália apresentada pela
modernidade da cidade paulistana. Torres traduz de forma instigante as inquietações
ligadas aos problemas de natureza identitária, surgidos pela convivência
do eu com o estranho outro.

Nesse sentido, o sujeito (autor/personagem) se expõe para o outro em
busca de afirmação e de reconhecimento identitário. A maneira
como o autor descreve a condição em que surge as primeiras linhas
do romance nos fornece as pistas para verificar o quanto a narrativa acaba sendo
orientada através da política do reconhecimento.

Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse”.
(TORRES, 1976, p. 7 ) Com a criação dessa frase está iniciada
a narrativa do romance Essa Terra.

Essa Terra narra a história de Nelo, um sujeito que trilha
o caminho de volta da grande São Paulo (uma cidade devoradora), para
o antigo lar, no povoado do Junco, situado no interior da Bahia. Contrariando
as expectativas depositadas pela família, a trajetória vivida
por Nelo traça o percurso dos fracassos e dos dilemas que lhe acompanharam
desde a partida da terra natal à cidade grande, culminando com o suicídio
por enforcamento.

Nelo, ao deixar o povoado do Junco leva consigo o sonho de uma vida melhor.
A esperança por melhores roupas, maior desempenho linguístico-cultural
e de um grande sucesso com as mulheres. Sonhos projetados a partir do contato
com os “estrangeiros”, e de um olhar que pretende se reconhecer
através da leitura do “outro”.

Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe.
Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do
cós das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites
com a fala e as roupas daqueles bancários ? a fala e a roupa de quem,
com toda certeza, dava muita sorte com mulheres.
(TORRES, 1976, p. 11)

Já o narrador-personagem Totonhim, na tentativa de avaliar a causa
da migração do irmão Nelo, do Junco rumo à cidade
de São Paulo, faz ao mesmo tempo, uma retrospectiva da partida como uma
espécie de justificativa:

(…) um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar,
como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu
terno folgado e diferente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha?faladorzinho
como um corno?e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento,
em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar
grandes homens
. (TORRES, 1976, p.14)

O fragmento textual mostra como a projeção de uma vida bem sucedida
encontra-se no romance apropriada pela efetivação do poder de
aquisição de bens materiais. A narrativa coloca em evidência
a relação do sujeito, da sua construção identitária,
a partir da realização do consumo desses bens, a exemplo da identificação
do próprio indivíduo com “um monumento, em carne e osso”,
que seria “reconhecido” e valorizado como grande homem.

A relação dos indivíduos com os bens materiais, com o
consumo desses bens, orientam a vida das personagens do romance e justificam
suas atividades no decorrer da narrativa. Nesse sentido, a projeção
está voltada mais para a noção de identidade (da construção
da identidade através do olhar do outro), do que a uma política
de reconhecimento que integra a alteridade, ou seja, que possibilite a dialética
do mesmo e do outro, o que permitiria entender as razões de cada um e
a estrutura dos conflitos e das negociações.

Nelo é descrito como um filho maravilhoso pelo olhar da mãe,
a qual lembra-se dos envelopes gordos, que chegavam todo “mês com
dinheiro vivo, paulista, rico”. Totonhim, o pai e toda a parentada do
Junco também viam em Nelo a personificação de um indivíduo
bem sucedido na vida. E a projeção da identidade de Nelo segue
na narrativa sendo formada a partir do julgamento do meio exterior.

Enquanto Nelo é visto como aquele que migra para se salvar, como aquele
que fugiu das limitações impostas pelo lugarejo interiorano, a
experiência da migração vivida pela personagem é
narrada mostrando o intenso sentimento de estranhamento da experiência
diaspórica enfrentada pelo sujeito, que parte de um ambiente interiorano
miserável, mas ainda conservador de certos valores humanos, “para
uma São Paulo sem rosto e sem forma”. É esse sentimento
de estranheza, experimentado pelo personagem principal do romance Essa Terra,
o grande responsável pelo conflito existencial vivido pelo indivíduo.
Ao investir num descentramento do sujeito, que não consegue mais se identificar
com a cidade grande, muito menos com o ex-familiar espaço nordestino/
interiorano, a narrativa acaba produzindo no personagem a sensação
de não pertencimento a lugar algum. Nelo conheceu e viveu no Junco e
em São Paulo, mas não se sente pertencente a estes lugares. São
Paulo representa ao mesmo tempo o exílio e a perda:

Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para São Paulo.

Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco
”. (TORRES,1976,
p. 63)

Na experiência vivida por Nelo coexiste o enigma de uma “chegada”
sempre adiada, como se fosse uma espécie de pressentimento, uma consciência
de que o seu desenraizamento já não lhe permitiria a re-integração
à terra natal.

A fragmentação da estrutura do romance igualmente refrata e reflete
a identidade fragmentada dos personagens e a relação que eles
estabelecem entre eles e a terra: o romance está dividido em quatro partes:
“Essa Terra Me Chama”, “Essa Terra Me Enxota”, “Essa
Terra Me Enlouquece” e “Essa Terra Me Ama”, cada parte subdividida
em capítulos.

O estar “entre-lugares” é também uma expressão
viva nas linhas do romance Essa Terra. Os personagens principais vivenciam
a relação consigo próprios, com os outros e com a terra
de certa forma transculturamente: as relações possuem um movimento
de “síntese e simbiose”, “um diálogo (uma harmonia)
incômodo” entre a “continuidade e a ruptura”, “a
coerência e a fragmentação”. Observe:

— Qualquer pessoa deste lugar pode servir de testemunha. Qualquer
pessoa com memória na cabeça e vergonha na cara. Eu vivia dizendo:
um dia ele vem. Pois não foi que ele veio?
— O senhor está com razão.
— Ele mudou muito? Espero que ao menos não tenha esquecido o caminho
lá de casa. Somos do mesmo sangue.
— Não esqueceu, não, tio — respondi, convencido de
que estava fazendo um esclarecimento necessário não apenas a um
homem, mas a uma população inteira, para quem a volta do meu irmão
parecia ter mais significado do que quando dr. Dantas Júnior veio anunciar
que havíamos entrado no mapa do mundo, graças a seu empenho e
à sua palavra de deputado federal bem votado.
(ET, p. 10)

No trecho acima, retirado do primeiro capítulo da primeira parte do
romance — “Essa Terra Me Chama”, o narrador-personagem Totonhim
leva o tio ao encontro do sobrinho Nelo, que retorna após vinte anos.
Interessante notar que a volta dele é esperada não só pelo
parente, mas também pela população da cidade. Espera compreendida
entendendo-se que a figura de Nelo está relacionada a um monumento valorativo
da cidade, ou melhor, das próprias pessoas do Junco. Ao comparar a peculiaridade
do significado da vinda do irmão com o dia em que a cidade festejou seu
ingresso no mapa do mundo, fica claro que a ida de Nelo para São Paulo
não foi esquecida, no decorrer dos anos, ela estava ativa na memória
dos familiares e da comunidade do lugarejo como retorno triunfal. O dia em que
o deputado discursou foi, embora o povo tenha festejado, apagando-se de suas
memórias, diz Totonhim, “apesar de nada mais ter acontecido
daí por diante
” (ET, p. 10). A saída de Nelo do Junco,
entretanto, não foi apagada, tornou-se uma expectativa de retorno, um
acontecimento sempre em suspenso, à beira de uma efetivação:

Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro,
telha e cal, mas a questão agora é saber se meu irmão ainda
lembra de cada parente que deixou nestas brenhas, um a um, ele que, não
tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um
caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento,
num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de
casimira, seus Ray-bans, seu rádio de pilha — faladorzinho como
um corno — e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um
monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também
podia gerar grandes homens — e eu, que nem havia nascido quando ele foi
embora, ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono, porque
o grande homem parecia ter voltado apenas para dormir
. (ET, p.10)

Se a cidade não mudou, a chegada de Nelo é sinal de mudança
para os habitantes da cidade. O esperado retorno concretiza-se, fica-se então
sabendo que o homem que deixou sua terra natal foi em busca de fortuna e melhores
condições de vida. São Paulo transformaria Nelo num monumento
vivo, em carne e osso, com dentes de ouro e óculos Ray-bans. Todavia,
o irmão, segundo Totonhim, retornara apenas para dormir, pois duas décadas
de sono (leia-se: de ausência) não foram suficientes para realizar
um desfastio pela cidade. Junco o faz adormecer, o sono de Nelo é mórbido
e Totonhim o pressente. O narrador-personagem continua caminhando com o tio
em direção à casa onde Nelo se encontra, sentindo que algo
de ruim estaria acontecendo.

A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado
e calado, como se não existisse mais vento no mundo. Talvez fosse um
agouro. Alguma coisa ruim, muito ruim, podia estar acontecendo.
—Nelo — gritei da calçada. […] Não ouvi o que ele respondeu, quer dizer, não houve resposta.
Não houve e houve. Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado,
que vinha perturbar uma moça, toda vez que ela saía ao terreiro,
a qualquer hora da noite. Podia ser meu irmão quem acabava de piar no
meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, no
qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma
única batida para que ela se abrisse — e para que eu fosse o primeiro
a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da
rede.
(ET, p. 12)

O tempo parado e calado, uma voz que não responde, o piar da morte,
a porta que revela o monumento pendurado por uma corda, monumento que não
transmitirá à posteridade a memória de uma pessoa notável,
a volta triunfal era uma fantasia. Nelo retorna para fincar definitivamente
suas raízes na cidade onde nasceu — do Junco saiu, ao Junco em
pó retorna. A morte de Nelo é o fecho do primeiro capítulo,
e o acordar de uma cidade: “E foi assim que um lugar esquecido nos
confins do tempo despertou de sua velha preguiça para fazer o sinal-da-cruz

(ET, p.13); diz Totonhim no inicio do segundo capítulo, revelando-nos
uma cidade que despertada pela morte evidencia sua vida sem pulso.

Junco, cidade preguiçosa de sopapo, caibro, telha e cal é ainda
desnudada nos seus mais íntimos sofrimentos: no segundo capítulo,
temos um panorama do lugarejo esquecido pelo tempo e castigado pela natureza
do sertão baiano. Terra sofrida que faz sofrer seus filhos.

O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a
cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a
esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno,
sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais
longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca
vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando
as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do
fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas
e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer:
— Hei de te amar até morrer.
Essa é a terra que me pariu.
— Lampião passou por aqui.
— Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas
não veio.
— Por que Lampião não passou por aqui?
— Ora, ele lá ia ter tempo de passar neste fim de mundo?
(ET,
p. 14)

Se a morte do irmão faz Totonhim descrever sua terra, é, na verdade,
para ele próprio e para família que se volta. O Junco é
o fumo de sua mãe, a queixa de seu pai, as rosas de sua avó…
a terra — lembranças, memória que envolve Totonhim. Entretanto,
Junco é uma cidade esquecida. Na venda de Pedro Infante, alguém
profere amor eterno a terra, outro revela que a cidade é um fim de mundo,
nem Lampião teve tempo de visitá-la. A morte de Nelo desperta
Junco e atiça Totonhim a caminhar pelos contornos de sua cidade. O narrador-personagem
continua ainda a falar sobre o seu lugar natal, fica-se sabendo que Junco é
uma terra em que seus filhos não fincam raízes profundas, a pobreza
do lugarejo é sinal de abandono:

Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto
aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram
para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando
os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão
esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. […] — Até as casadas enlouqueceram, e arrastaram os seus homens e suas
filhas para as cidades — reclama-se na venda de Pedro Infante, o abrigo
de todas as queixas. — Muitos maridos vão e voltam, sozinhos, com
uma mão adiante e outra atrás. Sina de roceiro é roça.
Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias
mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda
assim continua de pé, para contar como foi.
(ET, p. 14)

A migração é fato comum em Junco. A cidade grande torna-se
a panaceia das moléstias de uma terra situada nos confins do mundo. Os
habitantes do Junco aventuram-se em busca de melhores condições
de vida, entretanto, sua sina de roceiro já está traçada
e possui mão de via única — a roça. Vão embora
com as mãos vazias e da mesma maneira retornam.

A descrição do Junco, a morte do irmão e o processo migratório
narrados nos trechos acima pelo narrador-personagem, não iniciam apenas
uma história a ser desenvolvida, mas revelam o olhar de quem ao se encontrar
num lugarejo situado nos confins do mundo, vê na realidade que o circunda
um espaço de desolação, pobreza e esquecimento. Um lugar
em que o tempo parado e sem vento permite que se escute o piar da morte. A cidade
não mudou, nos diz Totonhim, uma terra que acorda de sua preguiça
para fazer o sinal da cruz e que vagarosa e solitária sobrevive. A personificação
do Junco parece ser um correlato das pessoas da própria cidade. Entretanto,
há algo mais nas palavras proferidas por Totonhim, São Paulo é
o lado inverso do lugarejo. Se verá mais adiante como a relação
entre as duas cidades é estabelecida. Apenas observe-se aqui que a descrição
do lugar feita pelo narrador-personagem poderia ser vista apenas como mais uma
paisagem sertaneja da seca, da miséria que, de certo modo, justificaria
a ida dos “rapazes” para São Paulo. O panorama do lugar,
contudo, vai além da imagem de uma terra nordestina, mais que uma simples
descrição, o olhar de Totonhim sobre sua terra é de crítica
e distanciamento.

Se os habitantes insistem em sair dos limites do Junco, este continua sobrevivendo
para contar os sofrimentos pelos quais já passou. Fica-se então
sabendo por Totonhim que o Junco havia passado, em 1932, pela pior seca que
já havia vivenciado, o lugar “esteve para ser trocado do Estado
da Bahia para o mapa do inferno
” (ET, p.15). Porém, continuou
em pé assim como seus habitantes. Em 1933, as primeiras chuvas pareciam
anunciar dias melhores, mas a morte parecia não querer deixar a terra:
O que se viu mais tarde foi o dilúvio, a sezão e o
impaludismo: desta vez o povo caía e morria tremendo, de frio

(ET, p. 15).

Ao lado da seca e do dilúvio, o narrador-personagem passa então
a falar de um cidadão do Junco. É-nos apresentado então
Caetano Jabá, que lutou junto com Antônio Conselheiro, o único
sobrevivente da guerra pela qual, em vez de uma medalha, deram-lhe um apelido
e uma enxada: instrumento de seu sustento. Caetano Jabá profere que no
ano dois mil o velho mundo será queimado por uma bola de fogo, restando
apenas o “dia do juízo”, ensinando as Sagradas Profecias,
ele nos revela um Junco bíblico. Totonhim parece entender o que significaria
na realidade esse juízo final:

— E eu sei que esse dia está perto. Ora vejam bem: nossos
avós tinham muitos pastos, nossos pais tinham poucos pastos e nós
não temos nenhum […] Isso também está nas Sagradas Escrituras.
Muitos pastos e poucos rastos. Poucas cabeças, muitos chapéus.
Um só rebanho para um só pastor.
[…] — Qualquer dia o Anticristo aparece. Será o primeiro aviso. Depois
o sol vai crescer, vai virar uma bola do tamanho de uma roda de carro de boi
e aí — dizia papai, dizia mamãe, dizia todo mundo.
Ninguém disse, porém, se a vinda da Ancar estava nas Sagradas
Escrituras. Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar
dinheiro a quem tivesse umas poucas braças de terra.
(ET, p. 16-17)

Se a escassez dos pastos estava profetizada nas Sagradas Escrituras, Totonhim
indaga porque então a vinda da Ancar não foi prevista. Banco que
foi a ruína do pai, acreditando nos bancários, fez o empréstimo
e ainda acatou a sugestão deles: plantou sisal. O investimento foi negativo
e as dívidas cobradas. O pai perde tudo. Foi nesta época que Nelo,
aos dezessete anos, decide ir embora, mas espera mais três anos para efetivar
sua decisão de deixar o Junco, três anos “sonhando todas
as noites com a fala e as roupas daqueles bancários — a fala e
roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com as mulheres

(ET, p. 18).

Pode-se então dizer que o Junco é, assim, desnudado pelo narrador-personagem.
O curioso de seu relato não é o desnudamento em si do lugar, mas
o que esse desnudamento afeta e revela de Totonhim e dos outros personagens
principais. O distanciamento do olhar de Totonhim é de alguém
que vê através da própria narração as deficiências
de um lugar esquecido nos confins do mundo. Ora, totonhim salienta que ninguém
previu nas Sagradas Escrituras que a Ancar viria, desse modo, o olhar crítico
do narrador personagem vai além, repetimos, de uma simples descrição.
É preciso, então, observar nas palavras de Totonhim o distanciamento
que ele próprio opera na representação do lugar que descreve
e a que pertence.

Totonhim, na verdade, firma-se como narrador-personagem ou como o autor prefere
utilizar — narrador-protagonista, desde do início do romance, com
paralelo valor expressivo. O fato de Totonhim narrar a volta e morte do irmão,
de delinear sua cidade, assim como falar dos outros personagens ou destes tomarem
a voz narrativa etc., não torna menor, evidentemente, sua expressividade.
Além de que, é preciso salientar, o romance apresenta diferentes
nuances de narrador.

Vê-se que a migração é um fato comum em Junco.
A miséria do lugar abala as raízes de seus habitantes que lançam
um olhar para as grandes cidades e enxergam nelas o solo que acreditam ser mais
nutritivo para suas necessidades e sonhos. Nelo vai em busca dessa nova terra
— São Paulo —, mas lá ele encontrará do mesmo
modo um terreno seco e arenoso. A metrópole, a cidade urbana é
sempre imaginada como modelo de progresso, desenvolvimento: “[…] gente se amontoando na janela do sargento, para ver a novela das oito, na televisão
— esse milagre que só um homem da capital poderia nos ter revelado

(ET, p. 53). O Sul é o arcabouço da modernidade, da tecnologia,
do avanço, as metrópoles são atrativas e cobiçadas
pela miséria da vida sertaneja que é representada como pobreza,
desolação, isolamento. E da cidade grande vem os bancários,
os homens da Petrobrás, e o homem da capital traz milagres tecnológicos
(a televisão) para o Junco, como não se deixar seduzir? Nelo caiu
nas malhas da sedução metropolitana. Entretanto, ele não
consegue a vida que desejava e nem se torna um paulista rico. Primeiro neto
e primeiro filho, o preferido da mãe:

A mala me fez pensar no correio e nos envelopes gordos de antigamente,
que chegava de mês em mês. Dinheiro vivo, paulista, rico. Também
me lembrei de mamãe: — Tomara eu tivesse mais um filho igual a
ele. Bastava um.
Nelo, Nelo, Nelo.
Um acalanto, uma toada, uma canção.
Nelo, Nelo, Nelo.
Miragens sobre o poente, nosso sol atrás da montanha, sumindo no fim
do mundo.
Nelo, Nelo, Nelo.
São Paulo está lá para trás da montanha, siga o
exemplo do seu irmão.
Nelo, Nelo, Nelo.
Éramos doze, contando uma irmã que já morreu. Só
ele contava.
Nelo, Nelo, Nelo. — Bastava mais um
. (ET, p. 20)

No trecho acima, retirado do terceiro capítulo da primeira parte do
romance, Totonhim relata o seu encontro com Nelo, no dia em que este chega ao
Junco. A presença da mala do irmão o faz relembrar das cartas
que Nelo enviava para a mãe. É interessante notar que os “envelopes
gordos” foram recebidos apenas num determinado período, o “antigamente”
revela a perda de peso dos envelopes com o passar do tempo. Havia uma ilusão
de que o primogênito era um paulista rico, mesmo quando o dinheiro diminui,
a ilusão persiste, mas ela é ferida quando Nelo se mata. Ele também
é um exemplo a ser seguido, para a mãe, diz Totonhim, apenas o
irmão contava. Nelo tinha ido atrás do sol atrás da montanha,
São Paulo.

A linguagem da obra chama atenção por sua singularidade. O que
envolve Essa Terra de um valor estético-literário. A
personificação do lugar que acorda e é vagaroso e solitário,
o pássaro Sofrê, a galinha Sofraco, o boi Sofrido — o desnudamento
do lugar é envolto numa metaforicidade. São Paulo transforma-se
num elemento natural, Nelo em música que acalma, tranquiliza —
imagens são criadas. O que poderia ser apenas um simples relato, configura-se
numa nova dimensão de sentido.

Nelo vai embora, entretanto, o sol não foi generoso com ele, pois retorna
sem riqueza: “— Não se esqueça que eu dei conselho
a seu pai, para ele deixar você ir embora — o primeiro visitante
vinha cobrar os juros de um empréstimo a longo prazo
” (ET,
p. 24); Totonhim salienta a cobrança de um conhecido, a ilusão
da riqueza de Nelo continua viva na esperança do povo. O primogênito
é cercado pelos familiares e conhecidos que desejam ver concretamente
o dinheiro da metrópole, o lugarejo recebe Nelo com cobranças
que há vinte anos esperam por quitação: “
Paga uma? Quero ver a cor do dinheiro de São Paulo — parentes afoitos
correm os olhos em busca da mala
” (ET, p. 25); procuram por “lembrancinhas”,
não há nada para ninguém. A imagem do monumento vivo começa
a apresentar rasuras: “— Ah, Nelo. Tu tá rico como o
cão, não é? — Dá para ir vivendo — ele
disse —, mas suas palavras não destruíam toda a nossa ilusão

(ET, p. 25). Ilusão ainda em parte mantida, até o momento que
a morte do irmão se concretiza. Totonhim então percebe que, na
verdade, Nelo não ficara rico, os bilhetes de loteria vencidos encontrados
em sua carteira, depois do suicídio, evidenciam a busca da fortuna pela
sorte.

São Paulo não foi realmente generoso com Nelo, na cidade grande
ele também encontrou terreno sertanejo para seus objetivos, uma vida
melhor não conseguiu vivenciar. A sua ida a São Paulo significava
também o seu oposto — a volta, imaginada como retorno triunfal,
libertador da pobreza. Todavia, seu retorno não foi redentor, mas conflituoso.
Ao chegar em Junco, Nelo vivencia uma experiência transcultural: ele parece
estar ao mesmo tempo em Junco e em São Paulo.

No quinto capítulo de — “Essa Terra Me Chama”, o
narrador-personagem Totonhim relata o momento em que ele e o irmão caminham
juntos em direção à casa onde haviam nascido. Nelo, Totonhim
salienta, estava bêbado. Em determinado momento da caminhada, Nelo quer
ir à casa da sua mulher, pede que o irmão mude de rumo e o leve
até ela. Totonhim admira-se, pois não sabia que o irmão
era casado. Explica que não sabe onde fica, mas Nelo insiste: “
Deve ser um Itaquera. Ou no Itaim. — Onde diabo fica isso? — Perto
de São Miguel Paulista
” (ET, p. 35). Nelo pensa estar em São
Paulo. O narrador-personagem descobre ainda que o irmão tem dois filhos,
Nelo diz estar com saudades deles, pois não os vê faz mais de um
ano. Totonhim responde que ele só está ali há três
semanas, não sabe que a mulher havia deixado o irmão por um conterrâneo
e levado consigo os filhos. O narrador-personagem tenta situá-lo: “
Nós estamos no Junco, homem. Quantas vezes na vida você passou
por essa estrada? Lembra?
” (ET, p. 35). Nelo então recorda
das vezes que passava por aquele caminho com uma lata de leite na cabeça
e os sapatos no pescoço. Mas, em seguida, pede novamente ao irmão
que o leve até a mulher. Voltar ao lugar onde nasceu, às ruínas
da casa natalícia, o remete à ruína da casa paulista: a
perda da mulher e dos filhos. Nos dois lugares fracassou.

Ora, Nelo está em Junco, porém pensa estar em São Paulo.
Poderíamos pensar que a sua confusão se deve ao fato de Nelo estar
bêbado. Entretanto, num determinado momento ele recorda do caminho que
percorre. Na verdade, os dois lugares passam a ser vivenciados de forma transcultural.
A destruição de uma casa evoca a ruína da outra: há
um “diálogo (uma harmonia) incômodo” entre a casa natalícia
e a casa paulista, entre sentimentos de perda e de encontro. Os dois lugares,
dessa forma, parecem semelhantes, embora sejam diferentes.

A caminhada dos irmãos continua. Nelo pede a Totonhim para se esconderem
numa moita, pois estava chovendo e a chuva era verde. Totonhim responde dizendo
que, na verdade, estava fazendo um sol muito forte. Nelo insiste e diz que chove
verde em seus olhos. Totonhim então olha entre o olho e a lente verde
dos óculos do irmão, fala que ele tinha razão, mas que
era uma chuva fininha. Chuva no sertão, em terra seca, é sinal
de esperança, de colheita, de matar a sede. Entretanto, a chuva é
escassa, fininha, não é o bastante para acarretar uma mudança.
Totonhim, então, aponta a casa. Nelo pára, dá alguns passos
à frente para que o irmão não o visse limpando os óculos
e diz:

— Você está certo Totonhim. Não teve chuva nenhuma.
Ele agora contemplava a casa e os pastos como se estivesse diante do túmulo
de alguém que tivesse amado muito — e o efeito do que estava vendo
devia ser muito forte, porque já não parecia tão bêbado
como antes.
— Vamos voltar?
(ET, p. 38)

Nelo não quer ir mais adiante e volta, como salienta o narrador-personagem,
“calado, fechado, trancado”. A sobriedade repentina de Nelo é
a consciência de seu fracasso: o túmulo — a casa, é
ele próprio e a família que não conseguiu ajudar. A chuva
verde não é suficiente para reverter a situação.

Junco e São Paulo estão adornados na memória de Nelo
e ligados entre si pela desilusão, pelo fracasso e sofrimento. As duas
cidades tornam-se uma terceira: de configuração sertaneja-metropolitana:

Eles me agarraram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram a minha
cabeça no meio-fio da calçada. Berrei. Que meu berro enchesse
a rua deserta, subisse pelas paredes dos edifícios […], rachassem as
nuvens pesadas e negras da cidade de São Paulo e fosse infernizar o sono
de Deus: — Socorro. Estão me matando.
Uma luz se acendeu ao meu terceiro grito e um homem chegou à janela.
Ficou olhando. Eles continuaram batendo minha cabeça no meio-fio. A luz
entrou no meu olho, dura e penetrante, como a dor. […]. Foi nesse momento
que a mão de papai apareceu, me oferecendo um chapéu. —
Cubra a cabeça. Assim dói menos.Tentei esticar o braço
mas, quando a minha mão já estava quase agarrando o chapéu
levei nova pancada.
— Você me denunciou, Totonhim. Olhe o resultado. Fuxiqueiro de merda.
[…] Papai desapareceu sob as águas. O chapéu boiava na correnteza.
Às margens plácidas, águas turvas.
Tietetânicas.
[…] Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando banho no riacho lá
de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de
Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu, para
não me afogar, bato com as pernas na água, devagar, sem pressa,
para não me afogar, o tronco escorrega e escapole, desço ao fundo,
enfio a cara na lama, volto à tona, estou me afogando: — socorro
.(ET,
p. 55-60)

Confundido com um ladrão, Nelo sofre uma surra da polícia de
São Paulo. Neste décimo capítulo, ainda da primeira parte
— “Essa Terra Me Ama”, é o próprio Nelo que
passa a narrar o evento. O capítulo já inicia com a descrição
da sova, mas é interessante observar que a rememoração
do fato se faz provavelmente em Junco, pois Nelo não sabia da existência
de Totonhim até voltar ao lugarejo onde nasceu. Como então acusá-lo
pelo mal que estava sofrendo? Subjetivamente Nelo interliga pessoas a fatos
de espaço–tempo diferentes. As duas cidades e a família
passam a co-existir nas suas lembranças de forma simbiótica. A
confusão de Nelo denuncia o estado de quem viveu a experiência
de estar “entre-lugares”, de vivenciar o contanto intercultural.
A confusão entre as duas cidades é a fragmentação
da sua própria identidade.

Durante a agressão Nelo vê o pai tentando dar a ele um chapéu,
que representa a sanidade. O pai já havia ensinado que o chapéu
fora inventado “nos tempos de Deus Nosso Senhor” (ET, p.
122), para que o homem não andasse com a cabeça no tempo, já
que assim perderia o juízo. O pai, no passado, havia lhe dado um chapéu
que Nelo esquecera ao sair de casa. E naquele momento tentava novamente dar
outro, mas não para salvá-lo de perder o juízo, pois já
era tarde. O tempo em São Paulo andava perdido no juízo de Nelo.

O pai também ensinou Nelo a nadar utilizando um tronco de mulungu,
que nas águas do rio Tietê reaparece como ponto de apoio, de salvação.
O riacho onde aprendera a nadar em Junco é o mesmo que deságua
nas margens plácidas, turvas, “tietetânicas” do rio
em São Paulo. Todavia, de suas margens não se escuta “o
brado retumbante” de um “povo heróico”, e sim o grito
de um homem fracassado e sendo torturado ao ser confundido com um ladrão.

A surra de Nelo não é apenas uma tortura física, mas
também de conflito psicológico. O momento da agressão é
lembrança confusa da terra natal:

O mijo corre quente e fedido, é a chuva que Deus mandou na hora
certa, viram como foi bom a gente plantar no dia de São José?
Ajudei papai a plantar o feijão e o milho, eu, mamãe, as meninas
e os trabalhadores, e todo dia eu acordava mais cedo, para ver se a plantação
nascia […] — Aonde você escondeu o dinheiro, ladrão?
Não, não, não.
Papai, tomara que tudo melhore, eu penso nisso o tempo todo, tomara que tudo
melhore.
Nossos pastos já foram verdes, eu sei. Já não temos mais
pastos.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa
que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
Faço fé na loteria, toda semana. Jogo, perco, jogo, perco, nunca
acerto.
Trabalho duro, tento me regenerar, até parei de roubar, digo, parei de
beber.
[…] Zé está me matando. Eles estão me matando. Devem ser uma
dúzia de homens, fardados e armados. Aqui no meio da rua. Na grande capital.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para são Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco.
(ET, p. 61-62)

Nelo recorda-se da família, do Junco. Denuncia seu fracasso, a loteria
seria sua salvação e de seus familiares. Confunde-se, por um momento,
parecia acreditar que de fato era um ladrão, e assim fica-se sabendo
do seu problema com a bebida. Zé do Pistom é o seu agressor, conterrâneo
a quem ajudou conseguir um emprego em São Paulo, e que, como gratidão,
roubou sua mulher e seus filhos. Nelo relembra em suas palavras a vontade da
mãe, realizou seu desejo e agora confuso não sabe o que fazer:
vai embora, retorna, é São Paulo ou Junco?

No quarto capítulo da terceira parte do romance — “Essa
Terra Me Enlouquece”, Nelo expressa a mesma dúvida. Neste pequeno
capítulo, a casa do avô, onde fica hospedado quando volta ao Junco,
o faz refletir sobre o passado numa noite de insônia. O avô retorna
para reclamar de sua fraqueza que antes já havia delatado: “
o pai vendeu a roça, para seguir a cabeça da mulher. O filho é
um fraco igual ao pai
” (ET, p. 121). Lembra também do conselho
do pai: usar o chapéu, pois quem anda com a cabeça no tempo perde
o juízo. Sonhava quase todas as noites com o pai lhe dizendo o mesmo
conselho, mas Nelo foi embora e esqueceu de levar o seu chapéu. Ele passa
então a achar que passara a vida com a cabeça no tempo porque
esquecera de levá-lo. E a saudade invade Nelo, a mulher encena em seus
desejos, ele a deseja de volta junto com os filhos: “Uma confusão
de desejos, arrependimentos e dúvidas. Estragado pelos anos, esbagaçado
pelo álcool, já não via por onde recomeçar

(ET, p. 121); o narrador-personagem Totonhim resume o estado do irmão.
Noite de insônia reveladora, Nelo continua pensando sobre sua terra, terra
que diz ser selvagem, onde tudo já está condenado desde do começo.
Terra de sol e chuva selvagens, sol que queima o juízo e chuva que arranca
as cercas “deixando apenas o arame farpado, para que os homens tenham
de novo todo o trabalho de fazer outra cerca, no mesmo arame farpado. E mal
acabam de fazer a cerca têm de arrancar o mata-pasto, desde a raiz. A
erva daninha que nasceu com a chuva, que eles tanto pediram a Deus

(ET, p. 124). Junco está condenado ao ciclo da erva daninha, entretanto,
ela não é aqui apenas a representação da miséria
de um lugar, mas é também a erva daninha da lembrança que
invade Nelo arrancando-lhe também a cerca de sua estabilidade subjetiva.
A insônia é o balanço de sua vida.

Junco e São Paulo possuem a mesma medida de conflito, o tempo devorou
o lugar de Nelo em ambas as cidades, fincar raízes parece ser agora utopia.
Na verdade, as raízes de Nelo estavam no ar, no terceiro espaço
entre São Paulo e Junco: “— É por isso que não
sei se volto ou se fico. Acho que tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu
chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São
Paulo
” (ET, p. 124). O “parentesco” entre Junco e São
Paulo não é uma identificação arbitrária.
A semelhança entre os dois lugares coloca em suspenso suas diferenças:
entre uma cidade considerada como o cerne do progresso e a outra como atraso,
uma ponte interseciona a metrópole e o sertão: a pobreza, a desilusão,
o sofrimento, a falta de oportunidades.

Em ambas as partes “Essa Terra Me chama” e “Essa Terra Me
enlouquece”, a dúvida de Nelo é expressa da mesma forma,
porém gerando uma ambiguidade: não sabe se fica (em Junco, São
Paulo?) ou vai embora (de Junco, São Paulo?). Essa terra que chama e
enlouquece é Junco, é São Paulo. O demonstrativo “Essa”,
neste caso, mais do que indicar um distanciamento de Nelo em relação
as duas terras, marca a ambiguidade de referência.

Citou-se aqui que a confusão de Nelo no que concerne as duas cidades
é a fragmentação da sua própria identidade. Ora,
se o contato intercultural propicia viver processos de identificação
num sentido transcultural, Nelo não foge ao padrão. Ele retorna
com “costumes de outras terras”, como observa Totonhim, ao vê-lo
pela primeira vez: “Chego e interrompo a velha e sincera conversa
do hoteleiro. Também foi sincero o sorriso do recém-chegado, ao
apertar a minha mão. — Muito prazer — ele diz. Costumes de
outras terras, eu penso, balançando a cabeça de um lado para o
outro abismado
” (ET, p 19). No mesmo capítulo em que estão
indo juntos rever a casa onde haviam nascido, o narrador-personagem ainda ressalta
a fala paulista do irmão: “— Totonhim… você não
é o Totonhim? Maneiras paulistas: o fulano, a fulana. Tive vontade de
lhe dizer que povo daqui não gosta de quem fala assim. Na frente, louva-se
o sotaque novo do cidadão. Por trás —
“ (ET, p.
34). É evidente que morando vinte anos em São Paulo, Nelo teve
que se adaptar, que renegociar seus valores e costumes. Em suma, o processo
de transculturação se fez presente em sua vida. Contudo, tal processo,
como viu-se, não envolve um movimento linear, tranquilo; mas um “diálogo
(uma harmonia) incômodo” entre “fragmentação
e coerência”, “construção e desconstrução”,
“síntese e simbiose”. Isto é, torna evidente as semelhanças
e diferenças de forma a problematizar as relações entre
forças antagônicas que se entrelaçam e ao mesmo tempo são
justapostas e contestadas, sem que de fato haja uma hierarquização
absoluta.

Desenvolvimento e subdesenvolvimento são os dois lados do mesmo Brasil,
o sul não é o redentor e o nordeste a simples vítima de
uma natureza devastadora. Nelo é a representação dessas
duas faces, ele evidencia a contradição de um espaço nacional
pensado em termos dicotômicos, como se a “falta de sorte”
que viveu não estivesse relacionada aos aspectos sócio-econômicos
mais amplos do país. Todavia, as faces que ele revela não estão
apenas ligadas a uma questão material, a dúvida de “ir ou
ficar” revela uma identidade fragmentada. Não estar em Junco ou
em São Paulo significa que não tornou-se nem paulista, nem baiano:
o que se tornou então? E aqui amplia-se a questão para além
de uma problemática de pertencimento: tornou-se um baiano-paulista pobre?
Tornou-se uma desilusão? O suicídio de Nelo é indício
de confusão subjetiva, desilusão de retorno triunfal, não
alcançado, o desconforto de saber que fracassou, é a demonstração
da trajetória de alguém que viveu “entre-lugares”.

A migração da família tinha se tornado fato corriqueiro,
Nelo foi o primeiro, os outros seguiram seu exemplo, embora não tenham
ido como ele além das fronteiras do estado. Nelo continua a fazer perguntas
sobre a família, indaga se o pai não ajuda em nada e Totonhim
silenciosamente pensa dizer-lhe “— Me fale de coisas boas. Chegue
à frente e me fale de você. Conte tudo de bom, todas as belas aventuras
que você já viveu: palha e lenha dos meus sonhos. Mas ele insistia
e perguntava e remoía, enquanto estalava os dedos e se agitava, me agitando.
— E os outros? Também não dão nada?
” (ET,
p. 23). Totonhim não queria falar sobre a família, sobre o passado.
Ele estava interessado na história de Nelo, queria mais lenha e palha
para seus sonhos, agora com a presença do irmão estes poderiam
ser concretos. Passa-se a observar, então, que Nelo seria para Totonhim
a personificação de São Paulo, ou melhor, do diferente,
da novidade. Mas Nelo insiste nas perguntas, Totonhim só tem desilusão
para contar. Totonhim pensa em dizer que de fato os irmãos não
dão nada, eles mal conseguem ter o que comer, e ele próprio abandonara
a casa em Feira de Santana, pois não aguentava mais a vida que levava,
a sua insignificância perante a mãe:
Entre nós só uma estrela brilhou. Está tudo gravado na
minha memória. Ouça:

— Ninguém faz nada por mim. Ninguém me ajuda em nada.
Reconhece esta voz? Continue ouvindo. Continue:
— Tenho doze filhos e me sinto tão sozinha. Se não fosse
Nelo.
Espere mais um pouco:
— Não vou passar sua roupa. Não sou sua empregada.
E agora atenção:
— Os incomodados que se retirem.
Eis porque me retirei. Quer um conselho? Vá lá. Viva uns tempos
com eles. Assim você não precisará de minhas explicações.
Tente saber o que é passar a vida dentro de um saco de gatos, com um
rombo no fundo. Os gatos entram, se arranham e vão descendo pelo fundo
do saco. Comi os farelos enquanto pude suportar, agora…
(ET, p. 24)

Totonhim pensa em dizer ao irmão tudo o que havia registrado em sua
memória. Para a mãe, só Nelo importava. A casa, porém,
se enche de gente atrás do monumento vivo, e as palavras de Totonhim
ficam mais uma vez reservadas na memória. A fala dele ainda revela sua
relação conflituosa com a família, enquanto o irmão
estava longe e sendo venerado pelos parentes, ele suportou comer os poucos farelos
de vida que lhe ofereciam. Nelo estava longe e nem sabia da atual situação
da família, perdido da manada, a realidade das respostas de Totonhim
o incomodava. Entretanto, Totonhim estava perto da manada, vivenciou os problemas
da família, cresceu escutando a mãe venerando o irmão.
A presença e morte de Nelo, portanto, significam a rememoração
e reflexão de Totonhim sobre sua história, família e Junco.

Através do narrador-personagem Totonhim observa-se Junco como figura
de crise, instabilidade, de pobreza; por ele, vê-se também uma
família em crise, instável, pobre. Seriam Junco e família
a mesma coisa? Parece que sim, ambas sofrem pela seca, em ambas a migração
se faz presente. Não há como separar bem o sofrimento da terra
do sofrimento das pessoas. Totonhim é o narrador-personagem que evidencia
uma distância crítica em relação aos problemas do
Junco, que se posiciona de modo reflexivo em relação à
terra e aos outros.

Totonhim projeta-se em Nelo, palha e lenha dos seus sonhos, o irmão
é também o entendimento de si mesmo. Ora, Totonhim era abafado
pela imagem modelo do irmão, a mãe só conseguia enxergar
Nelo, embora este estivesse longe. Quando o irmão morre, entre o rádio,
o relógio e os óculos do irmão, Totonhim prefere ficar
com o último. A escolha suscita algumas questões: com os óculos
ele poderia então ver as coisas como Nelo, ou ser como ele? Vendo o mundo
como Nelo, a mãe passaria a enxergá-lo? A escolha talvez tenha
sido inconsciente, mas ela revela uma crise identitária.

Em relação ao pai e à mãe, ambos representam de
um certo modo o próprio Junco. A mãe é a terra que faz
os filhos irem embora de casa; o pai é a terra no sentido de territorialidade,
ele é o único a querer ficar em seu espaço e foi o único
a não concordar que Nelo fosse para São Paulo. A mãe queria
que os filhos estudassem, via na cidade a resolução de seus problemas,
não desejava que o passado dela se repetisse com as filhas, então
deixa a roça e vai para Feira de Santana:

— Meu pai me tirou da escola quando escrevi o primeiro bilhete da
minha vida para um namorado. Não posso deixar que aconteça a mesma
coisa com as minhas filhas. De fato não deixou. Justiça se lhe
faça. Acabamos todos nos arranchando numa casinha pobre de uma rua pobre
de um bairro pobre, sem luz, sem água, sem esgoto, sem banheiro. Mamãe
alugou a casa fiando-se no dinheiro que mandavas todo mês e, quando atrasavas
a remessa, era um deus-nos-acuda. Vivíamos permanentemente debaixo do
medo de sermos postos da rua. Ela passou a se desdobrar em trinta numa máquina
de costura, enquanto esperava o feijão e a farinha que o velho mandava
da roça. De vez em quando ele vinha, para reclamar de tudo
(ET,
p. 156).

Entretanto, a ida da família para a cidade de Feira de Santana não
trouxe grandes transformações, pelo contrário, a pobreza
era ainda mais significativa. A própria roça abandonada era ainda
uma ajuda. Nesse trecho da última parte do romance — “Essa
Terra Me Ama”, Totonhim leva a mãe para o hospital, que após
ver o filho morto, passa por um surto de loucura, no caminho, ela fala de fatos
passados, a loucura é a rememoração de sua vida.

No romance, a mãe é uma figura importante da história.
Há na relação que ela estabelece com os filhos e o marido
questões que perpassam pelo papel da mulher na família, na sociedade.
Verificar, por exemplo, a posição que ela exerce no romance, talvez
revele sua função como mãe, esposa e mulher numa outra
ordem representativa.

O pai havia relutado, por um tempo, em sair do seu lugar. Até resolver
ir também para Feira de Santana, onde sua mulher e filhos já estavam.
Ele culpava a mulher por sua ruína. Se ela não tivesse a ideia
fixa de ir para cidade, os filhos teriam ficado e ele não teria tido
a necessidade de contratar trabalhadores, nem fazer o empréstimo no banco.
Para ele, escola não enchia barriga de ninguém, mal sabia assinar
seu nome, pois sua “Escrita era outra e essa ele tinha orgulho de
fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia,
generosa o ano inteiro, desde que Deus mandasse chuva o ano inteiro. A melhor
caneta do mundo é o cabo da enxada
” (ET, p. 68). A melhor
caneta do mundo, entretanto, havia produzido uma dívida no banco. O pai
então decide vender tudo para saldar a dívida e ir embora. Antes
de ir para Feira de Santana, pensa, por um momento, em ir para São Paulo
ou Paraná, acha que em um desses lugares encontraria uma roça
para cuidar, como se fosse o dono. A ideia do pai foi muitas vezes recebida
por Nelo que, também repetidas vezes, não respondeu. Até
o dia em que a mãe recebeu uma carta em que o primogênito avisa
que a metrópole não era lugar para o velho pai, ele não
ia se acostumar com a cidade, e que, portanto, desistisse da ideia. O pai compreende
a atitude do filho como vergonha, Nelo não o queria “no meio
das suas civilidades. Eu sou da roça e não tenho as novidades
dele. É por isso
” (ET, p. 69). Em suma, o pai é o sentimento
de territorialidade, de pertencimento, de fincar raízes, de continuidade
do passado; a mãe de desterritorialidade, de dispersão, de soltar
as raízes, de ruptura com o passado; ambos são Junco, ambos tornam
ambígua a terra.

Há no romance Essa Terra uma visão problematizadora
e crítica não só da vida, do lugar — das condições
da região, como também das relações que os personagens
estabelecem entre si e com a terra, relações que estão
ligadas a um contexto sócio-econômico mais amplo. Por isso, o romance
atualiza a vertente critica e rompe com a vertente mítico-nostálgica,
uma vez que o espaço regional em Essa Terra é dilacerado no que
ele tem de “crise”, é colocada à vista a “espoliação
econômica” que se escondia num discurso que buscava num espaço
nordestino a expressão de uma identidade nacional. Além de que
o romance não possui, como veremos adiante, um “caráter
pitoresco e folclorizante”. A abordagem da temática sertaneja em
Essa Terra se afasta seja de uma metonímica glorificação
do País, característica do Romantismo, seja de uma crítica
externa de raízes sulinas ou litorâneas e de bases positivistas
e deterministas, que, expressa sobretudo nas últimas décadas do
século XIX e nas primeiras do século XX, atribuía a miséria
da região às condições mesológicas e/ou à
formação étnica da sua população.

De fato, no romance a miséria da região não advém
de “condições mesológicas” ou da “formação
étnica” dos habitantes do Junco, nem os elementos que representam
um espaço nordestino, e que estão presentes no regionalismo tradicional
(a seca, a religiosidade etc.), não estão em primeiro plano no
romance, mas são secundários e circunstanciais: o foco de interesse,
agora, é o processo político e sua repercussão na atividade
e na consciência do indivíduo; é o processo econômico
e sua interferência na vida familiar e comunitária. O processo
migratório que ocorre em Junco, a ruína do pai, a ida de Nelo
para São Paulo, o desejo e a luta da mãe para que os filhos estudassem
estão, de fato, relacionados e abarcados por um processo econômico
(que passa a ter outras configurações, é o que veremos
também no próximo tópico) que afeta suas vidas e relações.

A relação entre Totonhim e a mãe parece refratar bem essa
ambiguidade do processo de identificação. Ambos têm
entre si a “expressão de um laço emocional”, todavia,
um laço emocional expresso pelo afastamento. Ao contrário da relação
de aproximação entre a mãe e Nelo, havia entre os dois
um certo tipo de identificação, a mãe uma vez disse a Totonhim:
Eu queria ser homem para poder mandar no meu destino. Ir para onde
bem entendesse, sem ter que dar satisfações a ninguém

(ET, p. 152). A partir desta fala, se pode observar que Nelo, na verdade, é
ela própria, isto é, ele representa aquilo que ela desejava para
si, pois o primogênito foi embora para onde queria, tornou-se dono de
seu destino. Entendemos então a predileção da mãe
pelo filho mais velho. Totonhim, de modo diferente, aos olhos da mãe
é a imagem inversa de Nelo, Totonhim é o “ficar”,
é a terra de vida difícil, ele representa o que a mãe não
deseja. Há, entretanto, uma identificação da mãe
com Totonhim, visto que ele torna visível aquilo que a mãe não
queria para ela. É possível então compreender porque a
relação de Totonhim com a mãe é de afastamento,
era como se ele não existisse, apenas Nelo importava. Diz-se, desse modo,
que Totonhim era invisível perante a mãe, sua invisibilidade,
porém, será paradoxalmente sua reapresentação diante
dela.

Quem sou eu?” (ET, p. 105); assim inicia o primeiro
capítulo da terceira parte — “Essa Terra Me Enlouquece”.
A mãe que não suportando ver o filho Nelo morto, passa a vivenciar
um surto de loucura, a sua pergunta é direcionada a Totonhim e feita
corpo a corpo:

Uma coisa eu acabava de descobrir: éramos do mesmo tamanho. Eu
e ela, ali, corpo a corpo. Como dois namorados que se reencontram depois de
uma longa ausência e se apertam, se apalpam, antes de um longo e apaixonado
abraço. Pela primeira vez na vida tive vontade de abraçá-la.
Só não o fiz porque não pude. Ela estava apertando o meu
pescoço com toda a força que ainda restava em suas duas calejadas
e ásperas mãos […] — Você se lembra de mim? Quem sou eu?
Ia dizendo: — A senhora é a filha mais velha daquele homem que
está ali, pregado na parede. E a mãe daquele outro que está
ali, estirado no chão dormindo pra sempre. Eu queria falar mas não
conseguia. Enquanto el

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