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Morangos Mofados (Livro), de Caio Fernando Abreu

by Lucas Gomes

Morangos Mofados

, autoria de Caio Fernando Abreu, foi publicado em
1982, período caracterizado pela abertura política e pelo início
de um processo de democratização em conseqüência do
fim da Ditadura Militar no Brasil. Trata-se de um livro de contos onde, em quase
todos eles, o escritor aborda seus temas preferidos: o estranhamento, a solidão,
a dor e o sentimento de marginalização.

Mergulhada no espaço contaminado da pós-modernidade, sua narrativa
representa seres degradados pelas drogas, paranóias, AIDS, esquizofrenia,
desencanto, muita procura e muito desamparo. São vitimas de uma sociedade
massificada, dominada pelos símbolos de sua indústria cultural.

A cidade é o cenário preferido dos seus personagens, que embora
tratem de narrativas onde a temática social predomina, esta é
filtrada pela interioridade das figuras humanas, que reagem de várias
maneiras aos fatos. Por isso a literatura de tema urbano tende a aprofundar
a análise da vida interior das personagens. Assim, sua narrativa pode
ser classificada de psicológica, porque enfatiza o prisma intimista com
que os eventos externos são percebidos; e estes deixam de ter sentidos
predominantemente social, para se confundirem com problemas do inconsciente,
produtos de traumas pessoais e de relações insatisfatórias
na infância ou em determinado momento da vida.

A literatura urbana de Caio incorpora ao espaço urbano novos significados,
ampliando o repertório e o alcance da literatura, representando seres
diversificados ou muitas vezes melancólicos.

Morangos Mofados é estruturado em três partes: “O
Mofo”, constituída de nove contos; “Morangos”, de oito;
e um último conto que dá título ao livro: “Morangos
Mofados”. Na primeira parte está representada ainda a ditadura
militar, o processo de desumanização e asfixiamento da liberdade
que foi tema do livro anterior, tudo isso revestido de uma ótica esvaziada
e nauseabunda. Esta parte contém narrativas mais sombrias e de caráter
crítico elevado. Na segunda parte, “Morangos”, e no último
conto, as sementes que frutificam no asfalto, o fiapo de esperança que
diferencia Morangos Mofados dos livros anteriores e posteriores. A
obra consegue traduzir a atmosfera tensa, de incerteza e agonia vivida na época
– entre o fim da ditadura e o início da reabertura política.
Este livro de contos pode ser lido como um romance não-linear.

Um dos contos, “Os sobreviventes”, que no encadeamento geral dos
contos do livro é um dos principais contos de Morangos Mofados,
representa toda uma geração que saiu do desbunde lisérgico
da contracultura com aquele gosto amargo, angustiantemente azedo, dos morangos
de “Strawberry Fields” (música dos Beatles) na garganta, agora
já esverdeados de podres, e que não conseguiam cuspi-los, nem
os engolir de forma alguma. Morangos Mofados, nesse sentido, se caracteriza
por ser ao mesmo tempo um balanço desse percurso e um rompimento com
elementos que nele se fizeram presentes. Leia
mais…

Em contos como “Além do Ponto” esta mescla de sentimentos
ambíguos se faz bastante clara. O personagem do conto desprende uma louca
jornada em busca de um amante que nunca é encontrado. A narrativa representa
bem a desilusão sentida pelos jovens da época, que não
sabiam para que lado olhar. O futuro era uma incógnita e Caio sabia disso.
Não tinha a resposta para as perguntas, mas sabia quais eram as indagações
que cada um deveria fazer a si mesmo.

Nascido em meio à revolução sexual e ao desbunde do final
dos anos 60, o escritor deixou em seu trabalho a marca das mudanças radicais
que o mundo vivia. O cinema, a TV e a cultura de massa são influências
bastante perceptíveis em sua prosa. As referências à música
pop estão lado a lado com os elementos cósmicos, que o autor estudou
profundamente durante muitos anos. A isso se junta ainda à obsessão
pela morte, o sombrio e o nebuloso. A esperança da desesperança.

“Transformações”, conto da segunda parte do livro,
traz tal desesperança em uma narrativa introspectiva. Nela um sentimento
que o autor chama de “A grande falta” persegue de modo implacável
o personagem que, em um exercício existencialista, tenta achar a razão
de seu eterno estado depressivo.

Em Morangos Mofados o tema homossexualidade está presente de
forma aberta no conto “Sargento Garcia”, um dos melhores do livro.
Ali se narra a iniciação sexual de um menino homossexual com um
oficial do exército, o Sargento Garcia do título.

Como as notas musicais de uma canção, os contos de Caio estão
sempre em constante mudança. O linear é sempre abortado. Quando
se está acostumando com a narrativa, o autor nos surpreende ao recortar
o texto, colocar um poema ou uma letra de música para surpreender o leitor.
É assim com “O dia que Júpiter encontrou Saturno”,
uma das últimas histórias do livro. Entre diálogos alucinantes
e pensamentos incoerentes, um casal divaga sobre coisas aparentemente insignificantes,
sem chegar a lugar algum.

O conto “Diálogo” (título irônico) é
uma conversa entre duas personagens, A e B, na qual uma pergunta insinua um
comprometimento que tanto pode ser ideológico quanto afetivo, ficando
pautados o medo e a insegurança de ser denunciado ou ser amado, sem abdicar
do desejo de ver-se como um igual e sem a coragem de assumir-se como tal. Os
personagens revelam a total incapacidade de entendimento e compreensão
entre duas pessoas, mesmo quando o objetivo de ambos aparentemente é
o mesmo. A multiplicidade de sentidos da mensagem torna impossível a
comunicação entre as personagens, que, sem serem um nome, podem
ser qualquer um, homem contemporâneo. Estes vazios prenunciados no conto
de abertura, o dito e o não-dito, marcarão as personagens dos
contos seguintes. Ressaltando a dificuldade de entendimento através da
linguagem, Caio Fernando Abreu trás à tona o processo de escrita,
reconhecendo o leitor como um parceiro que vai ajudar a preencher os vazios
do texto.

Um dos melhores contos do livro é “Além do Ponto”. Nele
é narrada a incursão de um homem rumo ao seu amor ou ao encontro
de alguém que ele julga ser o seu amor, expondo toda a sua fragilidade
e o desejo de proteção oriundo de todos nós, desde que
deixamos o ventre materno. A beleza deste conto é comovedora. A linguagem
toma forma do fluxo de pensamento e não sabemos se a personagem é
louca ou incrivelmente sincera na sua consciência do ser.

E, finalmente no conto que dá título ao livro, Caio sinaliza uma
esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam
o frescor de sua essência. É como diz o próprio Caio no
livro, é como se o personagem se rebelasse, libertando-se do autor e
decidindo o final da obra à revelia dele.

Morangos Mofados atravessou o tempo contingente de sua criação
para perpetuar-se nas dobras da memória, fertilizando o pensamento, estimulando
sucessivas releituras, ato criativo de resignação da obra original.
E desta forma tornou-se um clássico, um objeto da história e da
reflexão do autor.

Seus contos estão recheados de poesia, lirismo e sonhos. Entretanto,
esses elementos estão presentes como pano de fundo, como recheios que
ajudam a enriquecer a narrativa. O elemento predominante que ocupa a maior parte
dos contos é a dor. Seja através da repressão política,
ou através da repressão sexual, onde o homoerotismo se sobressai
como grito de reação que clama por liberdade, as personagens centrais
estão condicionadas ao julgamento de valores da sociedade, que, numa
postura maniqueísta, determina o comportamento a ser seguido, condenando
às transgressões essa forma engessada de ver o mundo.

Os contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”
têm como mote central a discriminação a personagens marginalizados,
social e sexualmente, e revelam situações, onde a intolerância
se sobrepõe à liberdade de amar.

O homoerotismo é a temática dos dois contos, embora o desenvolvimento
das relações seja feito por pinceladas diferentes. Num, a atração
sexual explícita, com a relação carnal sendo a mola propulsora
do desenvolvimento do drama. No outro, a atração sexual está
em segundo plano, com o afeto e o carinho entre dois homens, questionando os
padrões vigentes de uma sociedade preconceituosa e implacável
na defesa de sua moral.

Em Terça-feira gorda, o autor põe em destaque a voz
de um personagem masculino que vivencia uma experiência erótica
com um homem. Leia
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O conto “Aqueles dois” não explicita a relação
homoerótica. Ela é apenas sugerida, mas a intolerância e
crueldade são os mesmos agentes, em defesa dos bons costumes. Leia
mais…

Viu-se, portanto, que a obra tem em sua estrutura uma narrativa fragmentada,
que aparentemente não aponta para unidades de sentido e de significado
totalizantes. O autor apresenta uma obra rica em sua estrutura de formas, estilos
e linguagem diferentes, onde o contraponto entre a ditadura militar e o desejo
de liberdade serve como pano de fundo para questões que, se por um lado
são muito representativas de uma época, por outro lado são
questões inerentes a toda sociedade contemporânea.

Fontes: Marcelo de Araújo Sant’anna, Universidade Estácio
de Sá | Grazielle Katyane dos Santos Silva, UNESP | Luana
Teixeira Porto
, Departamento de Letras, UFRS

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