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O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos

by Lucas Gomes

Análise da obra

Podemos situar a obra
O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, publicado em 1937, entre as produções
dos anos 30/50, portanto pertencente à segunda e terceira gerações do modernismo.
Porém, deve-se observá-la como uma linha introspectiva que começa a nascer,
às vezes contrastando com o romance regionalista e, em outras, englobando o
interior deste ser frente a todo um processo de evolução e decadência de uma
sociedade para dar prosseguimento a outra.

Pertence ao que se poderia chamar o Lado B do Segundo Tempo do Modernismo Brasileiro (1930-45), pois não segue o filão principal desse período, que é o romance regionalista de preocupação política, como Vidas Secas, São Bernardo e Fogo Morto. É, de fato, uma obra dotada de extremo lirismo, retirado de cenas simples do cotidiano do protagonista. Lirismo de funcionário público (amanuense), profissão mergulhada no pequeno, no simples, no cotidiano. O político, quando aparece, é de forma tangencial, principalmente no que se refere aos desenlaces de Redelvim, amigo comunista de Belmiro.De linhagem psicológica, revelando profunda influência machadiana, porta-se como observador perspicaz e contido, utiliza-se freqüentemente de uma fina ironia, do pessimismo amargo e revela-se continuador da tradição memorialista que foi comum no romance do século XIX. O crítico português Adolfo Casais Monteiro, sobre O Amanuense Belmiro diz: “uma melodia como raramente o romance no-la dá, um bafo de vida a tal ponto real que desperta imediatamente tudo o que há de mais íntimo e secreto em cada um.”  A primeira edição do livro data de 1936 e já consagra Ciro dos Anjos como um dos grandes prosadores da Literatura Brasileira, sendo essa sua principal obra, embora tenha escrito mais um outro romance, que recebeu o título de
Abdias.

Sua pesquisa
psicológica em O Amanuense Belmiro trabalha com vidas que se realizam
mais na imaginação e menos na realidade: ao lado dos sonhos humildes que não
chegam a se concretizar, a frustração imensa e impressentida dos pobres diabos.
Romance de tensão interiorizada, isto é, o herói não se dispõe a enfrentar a
antinomia eu / mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito, consideremos
ainda O Amanuense Belmiro, como um romance de educação sentimental, pois
o escritor mineiro narra, em primeira pessoa, menos a vida que as suas
ressonâncias na alma de homens voltados para si mesmos, refratários à ação,
flutuantes entre o desejo e a inércia, entre o projeto veleitário e a melancolia
da impotência. O diário é a estrutura latente desse tipo de narração. E o enredo
tende a perder os contornos, as divisões nítidas, e a diluir-se no fluxo da
memória que vai evocando os acontecimentos. Para configurar essa realidade
aparentemente em mudança, mas, no fundo, estática e repetitiva, Cyro dos Anjos
não privilegiou o monólogo interior: preferiu trabalhar com os recursos
tradicionais do diálogo, do relato irônico, da análise sentimental; processos a
que se ajusta com perfeição a prosa que elegeu para toda a sua obra: de uma
elegância simples e clássica.”

Estrutura da obra

O romance está dividido em 94 capítulos curtos, que são
numerados e têm cada número precedido do sinal de
parágrafo. Acontece que cada capítulo desse é
dividido em vários parágrafos, então o que quererá significar
com isso o narrador pseudo-autor? Parece-nos que quer chamar a atenção para o
caráter episódico e para a pouca extensão de cada unidade
dessas.

Foco
narrativo

O narrador emprega foco narrativo em primeira pessoa por
Belmiro Borba, personagem central, registrando de modo subjetivo
e confidencial os acontecimentos e suas reflexões como que em um diário,
em capítulos breves, que funcionam como crônicas. “Quem escreve um
diário (afinal, estou escrevendo um…) não se
pode furtar á sua própria contemplação. É
um narcisismo a que ninguém escapa.”
(p.55)


Belmiro
é dotado de uma narrativa solta, esgarçada. Além disso, seu protagonista-narrador é uma figura dominada pela inércia – apaixona-se por Jandira, mas nunca teve coragem de confessar seus sentimentos, mesmo depois da perigosa declaração desta de que “precisava de um homem”. Essa estaticidade o faz mero espectador, acompanhando as desventuras de Redelvim, Glicério (jovem de grande agitação social), Jandira (que defende a liberação feminina, mas não se faz liberada), Florêncio, Silviano (mentiroso compulsivo e filósofo que só enxerga as alturas). O narrador só obtém colorido em sua existência quando começa a compor um diário. A literatura dá-lhe vida.

Tempo /
Espaço / Ação

Predomina a ação interior, de andamento moroso. Essa
morosidade ocorre principalmente por causa das
interrupções provocadas por digressões e pela quebra da
linearidade, com fatos presentes e lembranças de fatos passados se interpenetrando
constantemente. Essas indas e vindas do texto colocam o narrador seu estilo numa
tradição que vem de Laurence Sterne, Almeida Garret, Machado e Assis a Hilário
Tácito.

Em O Amanuense Belmiro, há o predomínio do tempo
psicológico, ou seja, os fatos da história são subordinados às impressões
subjetivas do narrador-protagonista, Belmiro. Logo, haverá uma constante
oscilação entre o passado e o presente, de modo que suas fronteiras se tornam
cada vez mais tênues. Além disso, os fatos registrados no Diário são feitos de
acordo com sua importância para Belmiro, nem tudo é registrado. Apesar desse
predomínio do tempo psicológico, é possível reconhecer que o enredo é contado
linearmente: o romance inicia-se no Natal de 1934 e vai até meados de 1936,
seguindo uma progressão cronológica.

Vinculado ao tempo, o espaço também estará dividido entre o
passado e o presente. As lembranças de Belmiro estarão sempre associadas à vida
rural, na qual passou a infância, sob o jugo da ordem familiar, na fazenda de
seu pai. Esse será um mundo perdido, repleto de lirismo, no qual o narrador
coletou suas primeiras impressões da vida, que hoje o ajudam a compreender o
presente. Em outras palavras, memórias de Vila Caraíbas filtrarão sua percepção
da realidade em que vive: a vida urbana na cidade de Belo Horizonte, o trabalho
burocrático, o círculo de amigos.

Para Belmiro, sua vida em Belo Horizonte divide-se entre dois
ambientes: o doméstico, compartilhado com as duas irmãs e que lhe evocam a vida
antiga, na Vila Caraíbas: “Ainda assim, tão distantes de mim, encheram minha
vida, e Emilia é, nesta casa, uma presença vigorosa e viril, que restabelece a
atmosfera moral da fazenda”; e o do trabalho, povoado pelos amigos e marcado
pela situação histórico-social do país.


Personagens

Belmiro Borba, amanuense, trinta e oito anos, alto,
magro, funcionário público, protagonista e narrador. Usa pince-nez
e se veste à
antiga. Ousado nas brincadeiras e conversas maliciosas com as donzelas, mas na
verdade é um tímido e incompetente para conquistas amorosas efetivas: “Não
lhes contei que é um dos meus fracos dar certo tom picante às conversações com
moças donzelas. Dificilmente isso se concilia com as minhas inclinações líricas,
mas a contradição é da vida.”
(p.6l) Não tem partido, nem religião, cuida
das irmãs e procura conservar os amigos. Passa pela vida como quem observa e não
como quem vive. Ideologicamente assim se define: “Escreverei também que não
me falta simpatia humana e muito me preocupam os males do mundo. A injustiça
social me dilacera a sensibilidade. Mas há, em mim, escrúpulos de espírito e de
sentimento que não aceitam radicalismos revolucionários.”
(p.l09)

Jandira, amiga do protagonista, vive com sua tia
Hortênsia e participa do grupo de homens como mulher liberada, socialista e
intelectual. Tem vinte e cinco anos, mas apresenta um corpo de dezenove: “aos
vinte e cinco anos, tem a mesma graça leve e a mesma carne ágil dos dezenove”.
(p.108) Há, no capítulo 26, dois fragmentos que definem bem a estrutura
psicológica da personagem: “Jandira desnorteia a gente. Em palestra, tem
admitido que abordemos temas perturbadores e, de boa vontade, ouve anedotas
fortemente temperadas. (…) Entretanto, não suporta um olhar de desejo.
Ruboriza-se, compõe-se, reage, se for preciso. Certa vez Silviano, a pretexto de
despedir-se, tentou abraçá-la e levou carão. E partidária do amor livre e de
todas as outras liberdades, mas defende-se como leoa, sempre que está em xeque.»

(p.6l)

Emilia, irmã do protagonista, a quem tem a mania de
chamar de excomungado. Quando toma refeições com ele, põe entre ambos um
anteparo de papelão para não ter que vê-lo. E é a Francisquinha que é louca! É
dura, áspera, mas garante o narrador que é tudo couraça, pois no fundo deve ter
um coração mole e amoroso, como seu pai, o velho Borba.


Francisquinha,
irmã louca, que dá muito trabalho a Belmiro e Emilia, mas
ambos têm por ela muito carinho e dedicam-lhe muitos cuidados e atenções, quando
em suas crises nervosas.

Glicério, é o mais recente dos amigos de Belmiro, também
colega do serviço público. É conhecido da família de Carmélia. Moço fino, de
tendências aristocráticas, é apresentado pelo narrador como um janota.

Carmélia, jovem muito clara, muito fina, órfã de pai.
Mora com a mãe e um irmão menor. É quem coloca em turbilhão as fantasias do
narrador a partir de um baile de carnaval.

Silviano, casado com Joana, tem mania de trocar o nome de
todo mundo, adora mentiras e armações. E intelectual, professor, caça as
menininhas, mas paradoxalmente defende a ascese como modo de vida atual. Belmiro
o classifica como “homem da hierarquia intelectual e da torre de marfim”.

Florêncio, amigo do círculo de Belmiro, definido por este
como “tranqüilo pequeno burguês, de alma
simples, que não opina”
, mas que gosta muito de um chope.


Temática

O tema maior de quase toda narrativa em primeira pessoa é a
tentativa de se conhecer, é a resposta à pergunta “quem sou eu?”.
Pergunta essa, aliás, formulada de modo explícito por Belmiro em um dos momentos
de suas anotações. No final de seu diário, questiona-se ainda ele: “que vim
fazer neste mundo?”
. Não encontrando resposta, compara-se a certos arbustos
da caatinga nordestina que parecem de nada servir a não ser compor a paisagem.
Outro tema que reaparece insistentemente é o da passagem inexorável do tempo:
“Nada mais depressivo que sentir outras gerações surgirem depois da nossa e nos
disputarem espaço.”
(p.42)

A temática de que o essencial é invisível aos olhos também se
apresenta nas reflexões de Belmiro. A vida é feita de aparência e o essencial é
difícil ou inacessível: “A realidade é a aparência, e o que é
no fundo –
não o é para nós”. Podemos
encontrar, também, uma crítica à vida ociosa do funcionalismo público: “‘O
Secretário está fora, e temos pouco serviço.’ (Na verdade nunca tivemos serviço,
e jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção do Fomento…)”

(p.23)

Percebe-se ainda o tema da sincronicidade, segundo a qual,
muitas vezes, fatos e situações, aparentemente acidentais, estão combinados para
um determinado acontecimento posterior: “Há, sem dúvida, uma trama secreta
que, encadeando os acontecimentos, envolve uma química, uma física e uma
economia social extremamente sutis para que a ciência humana possa penetrá-las.”

(p.25) Sob esse ponto de vista, o acaso ou acidente deixa de existir, e tudo o
que nos acontece passa a fazer parte de um plano, ou trama, em que todos os
elementos se encaixam, embora nós não consigamos perceber.

Após o término da leitura de O amanuense Belmiro, ficamos
com a impressão de que Cyro dos Anjos impôs a si próprio outro desafio, mais
instigante, escrever sobre o nada, sobre o vazio Belmiro não tem sequer uma ação
concreta, vital. Não, a única aventura que se lhe apresenta é recuperar o mundo
caraibano, coisa que ele abandona logo no início, porque percebe que o presente
interfere a todo momento. Resolve escrever sobre o seu presente mas ele “se
entrega ao presente; mas não o vive”
. (p.XV) O que se segue é um
muito carinho e dedicam-lhe muitos cuidados e atenções, quando
em suas crises nervosas.

Enredo

Belmiro
Borba, solteirão tímido e sonhador, dotado de grande capacidade de analisar a si
e aos outros, que vive modestamente em Belo Horizonte com duas irmãs,
Emilia e Francisquinha, “as
velhas”, numa noite de Natal resolve escrever uma espécie
de diário, para registrar o cotidiano e evocar a infância e com
o qual pretende resgatar o mundo
de Vila Caraíbas, onde nasceu, cuja saudade o persegue como doce
obsessão. Vive atualmente como funcionário público.

Vemos
então o desenrolar de suas meditações, o seu convício com os amigos
Redelvim, Silviano, Glicério e Florêncio,
além de Jandira, uma mulher liberada. Com o passar do tempo
e das anotações, o narrador-protagonista deixa de lado sua intenção inicial
converte o caderno de anotações em um diário em que vai registrando não o
passado, mas o presente, com seu grande vazio existencial.

Durante o ano de 1935, o narrador vai registrando os
acontecimentos que se relacionam com sua vida, a loucura
de Francisquinha, os achaques de Emilia, os problemas da
amiga Jandira, suas fantasias com a moça da Rua Paraibuna, Carmélia,
com quem imagina casar-se. A moça, no entanto, casa-se com Jorge.

Em tudo se
nota que Belmiro foge à ação por meio do sonho e da reflexão, dissolvendo de
certo modo a realidade pela excessiva aplicação da inteligência.

O
círculo de amigos vai se rompendo, Francisquinha falece e a vida do amanuense
vai se fechando sem perspectiva de melhoria ou de mudança.
Assim, ele encerra seu
diário
porque não vê mais nada que lhe pareça digno de ser anotado.

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