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Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles

by Lucas Gomes

A obra Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, foi publicado em 1953, e escrito na década de 1940 quando sua autora, então jornalista, chegou a Ouro Preto, com a finalidade de documentar os eventos de uma Semana Santa. Assim, envolvida pela “voz irreprimível dos fantasmas”, conforme
dissera, passou a reescrever, de forma poética, os episódios marcantes da Inconfidência Mineira, destacando, evidentemente, o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem principal da obra.

O Romanceiro é formado por um conjunto de romances , poemas curtos de caráter narrativo e/ou lírico, destinados ao canto e transmitidos oralmente por trovadores e que permaneceram na memória coletiva popular. Expressão poética específica do passado ibérico: saída técnica para dar maior autenticidade e força evocativa ao episódio histórico.

Seus autores, em regra geral, ficaram anônimos. Os romanceiros eram conhecidos na Espanha e em Portugal desde o século XV e tinham várias funções: informação, diversão, estímulo agrícola, doutrinamento político e religioso.

A temática remete o leitor à época da Inconfidência Mineira (1789), daí o caráter nacionalista e histórico da obra. Associando verdade histórica, tradições e lendas, e utilizando a técnica ibérica dos romances populares, a poetisa recria a atmosfera da Vila Rica (hoje Ouro Preto) dos Inconfidentes. A mineração, as rivalidades e contendas, os altos impostos cobrados pela Coroa, a conscientização de alguns intelectuais e letrados, os ideais de liberdade, as Academias e as tendências arcádicas renascem, ao mesmo tempo em que se faz a defesa dos oprimidos. A autora conta a história da tentativa de libertação do Brasil ocorrida em Minas Gerais no século XVIII. O título obedece a uma terminologia própria dos romances espanhóis medievais – época em que a palavra “romance” aplicava-se também a obras em verso.

No Romanceiro, o elemento histórico é bastante forte, como já citado. Contudo, o que a autora tenta recuperar é menos os fatos históricos em si, e mais o ambiente e as sensações envolvidas na revolta. Assim, cada elemento histórico adquire um valor simbólico: a busca do ouro representa a ambição e a cobiça; a conspiração esconde a esperança e o fracasso; as prisões dos envolvidos são focalizadas como situações de medo; o degredo é visto como momento de perda e saudade; e as punições finais mostram todo o desengano da derrota política.

Portanto, não há essa preocupação de focalizar essencialmente o fato histórico que envolveu os inconfidentes, a obra vai muito além do próprio tempo que tematiza. A poetisa não se afastou do seu conhecido estilo, composto de atmosferas fugidias e imprecisas, e preocupada com o registro das sensações, com o clima predominante no momento da revolta, de incertezas e de medo. É o que está além da realidade, invisível e, quase sempre, intransponível para aqueles que não são dotados de sensibilidade poética.

A obra caracteriza-se como uma obra lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico. Em 1789, inspirados pelas idéias iluministas européias e pela independência dos Estados Unidos (1776), alguns homens tentam organizar um movimento para libertar a colônia brasileira de sua metrópole portuguesa. A colônia sofria pesada carga tributária sobre o ouro extraído das Minas Gerais deixava os que viviam dessa renda cada vez mais descontentes. Assim, donos de minas, profissionais liberais – entre os quais alguns poetas árcades – e outros começaram a conspirar contra Portugal. Contudo, o movimento é delatado (Joaquim Silvério dos Reis e outros) e os envolvidos, presos. Alguns são condenados ao exílio (Moçambique e Angola), e o único a ser executado, na forca, e depois esquartejado, é Tiradentes, em 21 de abril de 1792.

COMPOSIÇÃO DA OBRA

Há um fio narrativo que passa através dos vários romances que compõem o Romanceiro, sem que a ação se sobreponha à reflexão. Alguns cortes permitem a mudança de ambientes ou de figuras que permitem ao narrador surgir diante do público e anunciar-lhe nova situação dramática.

Há três estruturas que se alternam no poema:

  • Romances – a obra apresenta-se estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os que retratam os cenários. Total de 95 textos. Em sua composição, é utilizada principalmente a medida velha, ou seja, a redondilha menor, verso de cinco sílabas poéticas (pentassílabo) e, predominantemente, a redondilha maior, verso de sete sílabas (heptassílabo), além de versos mais curtos, tercetos, quadras, sextilhas, refrões e versos decassílabos. Os romances não são dispostos na seqüência cronológica dos acontecimentos; ora aparecem isolados, ora constituem-se em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga, o da Morte de Tiradentes, o de Gonzaga no exílio, o de Bárbara Heliodora, o da Rainha D. Maria);
  • Cenários- situam os ambientes, marcando as mudanças de atmosfera e localizando os acontecimentos: Imaginária serenata e Retrato de Marília.
  • Falas – representam uma intervenção do poeta-narrador, tecendo comentários e levando o leitor à reflexão dos fatos referidos: Fala inicial, uma Fala à antiga Vila Rica, uma Fala aos pusilânimes, uma Fala à comarca do Rio das Mortes e pela Fala aos inconfidentes mortos.

A obra pertence ao Modernismo – Geração de 30. Na definição da própria autora, é uma narrativa rimada, onde Cecília Meireles retoma uma forma poética de tradição ibérica, denominada romance (composição de caráter popular, escrita em redondilha), para reconstruir o episódio da Inconfidência Mineira e extrair, de um fato passado, datado, limitado geográfica e cronologicamente, valores que são eternos e significativos para a formação da consciência de um povo. A própria autora afirmou tratar-se de “uma história feita de coisas eternas e irredutíveis: de ouro, amor, liberdade, traições…“. A poesia de Cecília é caracterizada aqui, como no resto de sua obra, por um tom lírico e intimista.

A crítica observou que não é possível estabelecer uma divisão rigorosa da matéria tratada por Cecília Meireles. O romanceiro avança ou faz regredir uma perspectiva, além dos poemas transitórios, feitos de considerações de momento, verdadeiros parênteses ou interpolações da poetisa (alguns desses poemas não recebem o título de “romance”). Não há consenso, mas seguindo o crítico Darcy Damasceno e outros estudiosos, é possível verse um plano geral de composição:

  • Primeira parte: a “Fala Inicial”, o primeiro “Cenário” e os romances I — XX.
  • Segunda parte: Romances XXI — XLVII.
  • Terceira parte: Romances XLVIII — LXIV.
  • Quarta parte: Romances LXV — LXXX.
  • Quinta parte: Romances LXXXI — LXXXV, mais a Fala aos Inconfidentes Mortos.

São versos escritos em redondilha maior (verso heptassílabo = sete sílabas poéticas). Sem rimas externas regulares (versos brancos), e a exploração da camada sonora, através de aliterações e assonâncias, conferem à Fala Inicial um tom enfático, declaratório, reforçado pelas exclamações e interrogações.

Existe musicalidade nos versos, uso de símbolos e apelos sensoriais, características comuns na poesia neo-simbolista. A herança simbolista e o espiritualismo: um ar de mistério, de crença no imaterial, no extraterreno, perpassa todo o poema. O culto do etéreo, das palavras aéreas marca a ânsia de dar forma ao informe. Expressões como: atroz labirinto de esquecimento, mistério, esquema sobre-humano, silenciosas vertentes, inexplicáveis torrentes instauram um halo espiritualista de crença no imaterial.

“Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro”

Aqui vemos o ciclo do ouro retratando a busca incansável por ouro e o resultado disso: cobiça, vaidade, ganância, violência, roubo, prisões.

todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos
Eis o retrato da violência!

O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz labirinto do tempo, nas ressonâncias incansáveis de Vila Rica revela a ânsia da procura de um significado para os fatos:

Ó meio-dia confuso
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?

É como se a poetisa, evocando Tiradentes na força, questionasse a casa do martírio. Foi a ambição do ouro? Foi o sonho de liberdade que iluminou aquela gente?

O tom inquiridor: o clima de mistério e ansiedade, as lacunas históricas incontornáveis e a busca de um sentido para os fatos projetam-se nas interrogativas que surgem a cada momento.

Revelando o mistério que envolve até hoje o “embuçado” e a morte de Cláudio Manuel da Costa, o Romance XXXVIII é composto só de interrogações. O embuçado teria sido um mensageiro mascarado, disfarçado, que viera para tentar salvar Cláudio Manuel da Costa:

Homem ou mulher? Quem soube?
Veio por si? Foi mandado?
A que horas foi? De que noite?
Visto ou sonhado?

A dualidade: reflete a ambivalência ou ambigüidade que caracterizam as ações do homem – herói e traidor, ódio e amor, punhal e flor, bons e maus, riqueza e miséria. Observe, na Fala Inicial:

amores x ódios (v.4);
intrigas de ouro e de sonho; (v.19);
culpado x inocente (v.22);
castigo x perdão (v.24),
coroas x machados (v.31);
mentira x verdade (v.32);
ruínas x exaltação (v.43).

Ganham relevo as passagens que refletem a dualidade entre a justiça e a tirania, entre a liberdade e a opressão:

Em baixo e em cima da terra
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem sabe não presta, fica vivo,
quem é bom, mandam matar.
(Romance V)

Ai, terras negras d´África,
portos de desespero…
– quem parte, já vai cativo;
– quem chega, vem por desterro.
(Romance LXVII)

Neste fragmento, a autora tece considerações de como foi composto seu Romanceiro da Inconfidência. A este respeito, ela aborda os limites entre a criação literária e a História, mostrando os limites e as relações entre ambas:

(…)
Assim, a primeira tentação, diante do tema insigne, e conhecendo-se tanto quanto possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala seria reconstruir a tragédia na forma dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos. Nesse ponto descobrem-se as distâncias que separam o registro histórico da invenção poética: o primeiro fixa determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda, porém, anima essas verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o leitor a participar intensamente deles, arrastado no seu mecanismo de símbolos, com as mais inesperadas repercussões. Ainda que se soubessem todas as palavras de cada figura da Inconfidência, nem assim se poderia fazer com o seu simples registro uma composição da arte. A obra de arte não é feita de tudo mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo é que constitui o trabalho do artista. Ele poderá dizer a mesma verdade do historiador, porém de outra maneira. Seus caminhos são outros, para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição. Grande parte de tudo isso se realiza, decerto, sem inteira consciência do artista. É a decorrência natural da sua constituição, da sua personalidade por isso, tão difícil s·e torna quase sempre a um criador explicar a própria criação. Quanto mais subjetiva seja ela, maior a dificuldade de explicá-la é quase impossível chorar e perceber nitidamente o caminho das lágrimas, desde as suas raízes até os olhos. No caso, porém, de um poema de mais objetividade, como o “Romanceiro”, muitas coisas podem ser explicadas, porque foram aprendidas, à proporção que ele se foi compondo.
Digo “que ele se foi compondo” e não “que foi sendo composto”, pois, na verdade, uma das coisas que pude observar melhor que nunca, ao realizálo, foi a maneira por que um tema encontra sozinho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desenvolvimento, sua medida.
O “Romanceiro” foi construído tão sem normas preestabelecidas, tão à mercê de sua expressão natural que cada poema procurou a forma condizente com sua mensagem. Há metros curtos e longos; poemas rimados e sem rima, ou com rima assonante o que permite maior fluidez à narrativa. Há poemas em que a rima aflora em intervalos regulares, outros em que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas quando sua presença é ardentemente necessária. Trata-se, em todo caso, de um “Romanceiro”, isto é, de uma narrativa rimada, um romance: não é um “cancioneiro” o que implicaria o sentido mais lírico da composição cantada.
Nesse ponto, já ficara ultrapassada a idéia de uma composição dramática. Impossível distribuir a cada personagem seu verdadeiro papel: seria atribuirlhes, por vezes, pensamentos e sentimentos incompatíveis com a sua psicologia, e dar-lhes uma linguagem que não podemos reconstituir com suficiente perfeição.
O “Romanceiro” teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível linguagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstituir inteiramente as cenas, também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda.
A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem, vibra, porém, com certa docilidade, e submete-se à aprovação do poeta, como se, realmente, a cada instante lhe pedisse para ajustar seu timbre à audição do público. Porque há obras que existem apenas para o artista, desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão e esperam que o artista se ponha a seu serviço, para alcançá-la.
O “Romanceiro” é desta segunda espécie. Por isso, a parte “pessoal” que nele se encontre, é uma simples intervenção para favorecer o desenvolvimento do tema: aqui, o artista apenas vigia a narrativa que parece desenvolver-se por si, independente e certa do que quer. Os “cenários” são intervenções para marcar os ambientes respectivos, exatamente como numa indicação dramática. E se o artista se permite alguma reflexão sobre o que vai acontecendo, é como espectador que comenta, entre outros comentadores imaginários, ou cronista que observa, entre outros que estão observando o que confere ao livro uma simultaneidade que se procurou assinalar até pela disposição gráfica dos versos, e pela diferença dos tipos de impressão.

(…).”

INTERTEXTUALIDADE

“Exaltação a Tiradentes” – samba-enredo da Escola de Samba Império Serrano, em 1949, de Mano Décio da Viola, Penteado e Stanislaw Silva:

Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a vinte e um de abril
Pela independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrifica…do pela nossa liberda…..de
Este grande herói

Filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade (1972). A Inconfidência Mineira – conspiração independentista do século dezoito, em Minas Gerais, centro das riquezas coloniais. Do grupo, faziam parte poetas e nobres, incluindo o padre e o coronel da guarnição. O dentista Tiradentes é torturado, para que
divulgue a sua participação, na conjura contra a coroa portuguesa; os cúmplices já haviam confessado, negando responsabilidades próprias. Tiradentes é o único a assumir-se plenamente, sendo condenado à morte. Baseado em “Autos da Devassa” de Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto. E “Romanceiro da Inconfidência” de Cecília Meireles. Enunciação de flashes cinematográficos.

Museu da Inconfidência – No museu é retratada a Inconfidência Mineira (1789), movimento pela Independência do Brasil baseado na Independência Americana, e que não teve sucesso, devido a sua delação. O Museu possui objetos do final do século XVIII (travas da forca de Tiradentes), utilizados por inconfidentes, ou do cotidiano dos trabalhadores e civis da cidade. O museu se localiza na praça Tiradentes, em frente ao monumento a Joaquim José da Silva Xavier, principal e mais famoso ativista da Inconfidência.

Créditos: Prof. Jorge Alberto, Colégio Procampus | Escola 24 horas

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