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Cobra Norato, de Raul Bopp

by Lucas Gomes

Com Cobra Norato, de 1931, cujo tema vem do fundo popular, Raul Bopp compõe, na linha do “primitivismo” da década de 1920, um dos mais belos poemas
inspirados pelo Movimento Antropofágico.

Neste poema, o poeta cria um drama épico e mitológico nas selvas amazônicas, incorporando à moderna estrutura do verso livre elementos
do folclore e da fala regional, fundindo imagens originais com o ritmo tenso, sintético, sincopado, quase telegráfico.

Profundo e rigoroso artesão da linguagem, Bopp rescreveu seus poemas à exaustão,
sempre cortando excessos, refinando imagens, buscando soluções mais precisas,
imprevistas. Soube aliar primitivismo com elaboração construtiva, estabelecendo
na poesia um correlato à prosa do Macunaíma de Mário de Andrade. Como Macunaíma,
em busca do seu talismã e nostálgico de Ci, Mãe do Mato, Cobra Norato sai, também,
na demanda da Rainha Luzia, mãe da filha com quem deseja casar-se, em nome do
crescimento da tribo que constituirá as idades da nação.

É a materialização
das coisas que o autor, em seu estudo detalhado da Amazônia, absorveu, tais como
lendas, falares regionais, ritos, para transformar em livro, que não foi bem recebido
pela crítica. Sobre seu livro, Bopp chamou-o de “audácias extragramaticais e uma
movimentação de material de camada popular”. No fragmento a seguir, pode-se notar
a capacidade imagética de Bopp em Cobra Norato: “Rios magros obrigados a trabalhar
descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo.”
Em determinado
momento do poema, Bopp fala do surgimento do Brasil com seus componentes humanos;
entre estes aponta o negro, que exerce um papel secundário no processo social.

O poema pode ser dividido em duas partes, que estabelecem um contraste. A primeira
parte refere-se ao Brasil industrial – urbano e a segunda parte refere-se ao Brasil
interiorano e rural. Mostra um Brasil dividido entre o interior e a capital, donde
o atraso do primeiro revalida forças contra a riqueza do último.

Concebido inicialmente como história para crianças, o poema tem, como já
citado, estrutura épico-dramática, da qual se podem extrair também coros para
bailado. “No fundo Cobra Norato representa a tragédia das febres, a maleita
“cocaína amazônica”, quando ouviu o mato e as estrelas conversando em voz baixa”
(palavras de Raul Bopp).

Observa-se que o mito da viagem, no tempo e no espaço, é a viga-mestra de Cobra
Norato
.

O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a
cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas”, isto é, as terrasdo “Sem-fim”, em busca da mulher desejada.
A aventura de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: partida/iniciação/retorno.
O poema que se inicia com os seguintes versos:

Um dia
hei de morar nas terras do Sem-fim
vou andando caminhando caminhando
me misturo no ventre do mato mordendo raízes

Expressa o desejo do narrador de retornar às origens, portanto, à mãe. O herói vive o momento do sonho, configurado pelo tempo
“um dia”. Ao penetrar no “ventre” da floresta, ele segue por tortuosos caminhos, logo sente que “(…) o sono escorregou nas
pálpebras pesadas”
.

Oscilando entre o épico, o lírico eo dramático, é impossível uma classificação rigorosa, em virtude da liberdade de sua
estrutura e a riqueza de sua poesia, produzindo efeitos inesperados pela associação da linguagem popular, da linguagem
infantil e das linguagens tupi e africana: num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

A narrativa é simples: o herói, Cobra Norato (nheengatu da margem esquerda do Amazonas), assumindo a espiritualidade
do autor, sai em busca de sua amada – a filha da Rainha Luzia. Em meio aos mistérios da Amazônia vai vencendo os mais
insólitos obstáculos até encontrar o rival – a Cobra Grande – finalmente derrotado.

De início, o poeta brinca de amarrar uma fita no pescoço de Cobra Norato, estrangula-a e enfia-se na pele do réptil.
Depois de dormir começa a procurar a filha da rainha Luzia, descrevendo a natureza amazônica e os obstáculos e incidentes
da procura:

Mas antes tem que passar por sete portas,
ver sete mulheres brancas de ventres despovoados,
guardadas por um jacaré.

– Eu só procuro a filha da Rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo.
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.

– Ah, só se for da filha da Rainha Luzia!

Uma descrição da Floresta Amazônica:

Esta é a floresta de hálito podre
parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar
descascam barrancos gosmentos.
Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole.

A lama se amontoa.

…………………………………………………….

Vento mudou de lugar

…………………………………………………….

Um berro atravessa a floresta.

Aqui, Cobra Norato, atolado “num útero de lama”, encontra um coadjuvante, seu compadre:

– Olelê. Quem vem lá?
– Eu sou o Tatu-da-Bunda-Seca
– Ah, compadre Tatu
que bom você vir aqui
Quero que você me ensine a sair desta goela podre
– Então se segure no meu rabo
que eu le puxo.

Vem depois a chuva, o mar e a pororoca. O poeta Cobra norato e o compadre roubam farinha, ouvem de Joaninha Vintém
o “causo” do Boto (“moiço loiro, tocador de violão”), vão a uma festa. O compadre percebe vindo pelas águas algo como
um navio prateado:

O que se vê não é navio. É a Cobra Grande.
Quando cmeça a lua cheia, ela aparece.
Vem buscar moça que ainda não conheceu homem.

E vai o poeta levando “um anel e um pente de ouro / pra noiva da Cobra Grande”, quando lhe perguntam:

Sabe quem é a moça que está lá em baixo
…nuinha como uma flor?
– É a filha da Rainha Luzia!

O poeta rapta-a e fogem. Cobra Grande os persegue. Mas Pajé-Pato ensina o caminho errado para a Cobra Grande, que:

esturrou direito pra Belém

Deu um estremeção
Entrou no cano da Sé
e ficou com a cabçea enfiada debaixo dos pés de N. Senhora

Enquanto isso, o poeta vai para as terras altas com a noiva onde se casam e são felizes:

– E agora, compadre
vou de volta pro Sem-Fim

vou lá para as terras altas
onde a serra se amontoa
onde correm os rios de águas claras
entre moitas de mulungu.

Quero levar minha noiva
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vai-e-vem
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem bem.

Convida para o casamento muita gente, até a Maleita:

Procure minha madrinha Maleita
diga que eu vou me casar;
que eu vou vestir minha noiva
com um vestidinho de sol.

E acorda, pois o poema era um sonho.

Os fragmentos transcritos a seguir exemplificam alguns momentos da grande força lírica:

A lua nasce com olheiras
O silência dói dentro do mato

Abriram-se as estrelas
As paguas grandes encolheram-se com sono.

A noite cansada parou.

Ai, compadre!
Tenho vontade de ouvir uma música mole
que se estire por dentro do sangue;

música com gosto de lua,
e do corpo da filha da Rainha Luzia
que me faça ouvir de novo
a conversa dos rios
que trazem queixas do caminho
e vozes que vêm de longe
surradas de ai, ai, ai.

Atravessei o Treme-Treme
Passei na casa do Minhocão
Deixei minha sombra para o bicho-do-fundo
só por causa da filha da Rainha Luzia.

No princípio era sol, sol, sol
O Amazonas não estava pronto
As águas atrasadas
derramavam-se em desordem pelo mato.

O rio bebia a floresta

Depois veio a Cobra Grande amassou a terra elástica
e pediu para chamar sono
As árvores enfastiadas de sol combinaram silêncio
A floresta imensa chocando um ovo!

Cobra Grande teve uma filha.

Noite está bonita.
Parece envidraçada.

Dormem sororoquinhas na beira do rio.
Árvores nuas tomam banho.

Jacarés em férias num balneário de lama
mastigam estrelas que se derretem dentro d’água.

Por entre trouxas de macegas
passa uma suçuarana com sapatos de seda.

Ventinho manso penteia as folhas de embaúba.
A paisagem se desfia num pano.

Cunhado Jabuti torceu caminho
– Dê lembranças à dona Jabota.

Enquanto é noite
com todo esse céu espaçoso e tanta estrela
vamos andando e machucando estradas
mais pra adiante.

Resumo

No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica para sair dos confins da floresta amazônica
em direção a Belém do Pará, em busca da filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar.

O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na floresta cifrada. Sob a sombra fechada das árvores,
entre sapos beiçudos, charco, lama, atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões impostas pelo
mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por
um jacaré; entregar a sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de sangue.

Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento:
‘Onde irei eu que já estou como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?’

A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore
velha enfileira impiedosa as jovens árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. ‘Ai, ai, ai,’ gemem elas,
‘somos escravas do rio’.

Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam a noite tecendo folhas em segredo. Está
perdido em um escuro labirinto de árvores. A atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem os
grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o vento saqueia as vegetação, nuvens negras se amontoam,
lagoas arrebentam, árvores se abraçam.

Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se transforma também em companheiro de viagem. Vem um
período de descanso e também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que partam para o lago
Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o
interior abafado da floresta, a noite já está se fechando.

O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras as bandas do Bailique. Querem ver chegar a
pororoca. Quando a lua cheia aponta, vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para uma polpa
de mato onde Norato descansa e cisma: ‘o que é que haverá lá atrás das estrelas?’ Mas a fome aperta e dois vão para o patirum
roubar tapioca.

Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto
que a surpreendeu enquanto lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam, dançam os chorados de
viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e
continuam viagem.

Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os doentes de sezão, de inchado no ventre, de
espinhela caída. Faz benzedura de destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som longínquo de
um trem Maria-fumaça acorda o mato.

Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a
Cobra Grande. Quando começa a lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo paras bandas de
Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna.

A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em
troca de cachaça. O herói e o tatu vaõ com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do Escorrega. O tatu
está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: ‘Devagar que chão duro dói’.

Na casa da Boiúna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos da grota e avista a noiva, que não é ninguém
menos que filha da rainha Luzia. Mas Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu cunhado, que
corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega
à morada do pajé que lhe ensina o caminho errado: ‘Cobra Norato foi pra Belém se casar’. E lá se vai a Boiúna direto para Belém.
Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de Nossa Senhora.

Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva consigo a noiva, para estar com ela numa
casa de porta azul piquininha pintada a lápis de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo
pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo para a festa de casamento que há
de durar sete luas e sete sóis.

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