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O continente, de Érico Veríssimo

by Lucas Gomes

Em O Continente é a primeira uma obra que compõe a trilogia
O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, e foi publicado
em 1949. Transita entre o lírico e o épico; entre o intimista
e o histórico, e abrange 150 anos da história (1745–1895),
traçando a origem da sociedade rio-grandense, marcada pelo controle de
uma elite latifundiária e pela violência das guerras fronteiriças
e das revoluções fraticidas. Nesse período de 150 anos
ocorrem grandes acontecimentos históricos que são internalizados
no texto literário, tais como o Tratado de Madri, a Guerra da Cisplatina,
a Independência do Brasil, a Revolução Farroupilha, a Guerra
do Paraguai, a Abolição da Escravatura, a proclamação
da República e a Revolução Federalista de 1893.

A palavra “continente” significa no romance, em primeiro lugar, o
território conquistado a ferro e fogo durante os séculos XVIII
e XIX. A conquista dá-se simultaneamente por ação privada
e por ação estatal. A primeira, iniciada nos Campos de Cima da
Serra, e comandada por aventureiros sorocabanos e lagunenses, estende-se rumo
ao oeste e ao sul da região, em busca de planícies férteis
para o pastoreio. A segunda é mais litorânea, através da
imigração açoriana e do estabelecimento de fortificações
militares pelo Estado português. Ambas confluem e se unificam, no entanto,
em um grande objetivo comum: a tomada da “terra de ninguém”
e do gado alçado – vacum e eqüino – que vagava às centenas
de milhares pelos campos da Serra e da Campanha. Em segundo lugar, o “continente”
significa, no romance, o tempo histórico da conquista e da consolidação
do poder dos estancieiros na região, associado à solidificação
do núcleo familiar, originando os primeiros clãs dominantes. Aqui,
“continente” significa aglutinação, coesão, esforço
familiar num sentido comum. Bem diferente de “arquipélago”,
que traz a idéia de desintegração, fim do clã, estilhaçamento,
isolamento dos indivíduos.

A obra está inserida no chamado Romance de 30, obras de cunha neo-realista
que aliam a descrição denunciante do Realismo às investigações
psicológicas das personagens e liberdades linguísticas do narrador,
frutos do Modernismo. Assim como O continente, muitas dessas obras
são de cunho regionalista.

A visão global compõe-se de sucessivas visões parciais,
ou limitadas no tempo e no espaço, de forma que a obra verdadeiramente
é uma aglutinação de novelas, entremeadas de cantos de
certo sabor poético, impregnados de elementos folclóricos e referências
populares. A sua unidade resulta, primeiramente, do próprio desenrolar
histórico dos fatos e situações, tendo a região
de Santa Fé como ponto de convergência e irradiação.
Esboçam-se, ao mesmo tempo, as origens e a formação da
cidade do mesmo nome. Os fatos e situações, por sua vez, visam
de maneira particular ao processo de enraizamento, de afirmação
do poderio econômico e de mandonismo local, de determinadas famílias:
os Amaral e os Terra e Cambará. No caso, o ponto de partida do desenvolvimento
da intriga, paralelamente com as visões retrospectivas, é a luta
entre federalistas e republicanos, de 1893. De um lado, estão os Amaral,
de outro, os Terra e Cambará, cujas rivalidades de famílias encontram
evasão nas lutas políticas.

Integram a primeira parte, além de outros, os capítulos O
Sobrado
, Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo,
onde aparecem inúmeras personagens, entre as quais: Pedro Missioneiro,
Ana Terra, Pedro Terra, Bibiana, Capitão Rodrigo, Bolívar, Licurgo;
vivendo a tragédia da conscientização de uma terra fixada
às próprias raízes.

Uma crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras, eis o cenário
onde brota a gênese da Província de São Pedro. Ao início
de O continente, no episódio de Ana Terra, o espaço
físico foi inteiramente destruído após um ataque de castelhanos
que massacraram todos os homens válidos da fazenda de Maneco Terra. Sob
a imensidão do campo, duas mulheres e duas crianças sepultam os
seus mortos. Desses escombros surge a personagem de Ana Terra, armada de uma
confiança absurda em si mesma, que se integra na caravana pioneira para
fundar, muito distante, a vila de Santa Fé. Com ela segue o filho, que
será o pai de Bibiana; e assim fica assegurada a continuidade da vida.
A mesma intriga, distribuída por diferentes níveis de temporalidade,
repete-se várias vezes na sucessão de gerações de
Terras e Cambarás.

Na personagem Ana Terra se reedita o primeiro dia da criação,
a imagem primitiva da fecundação, enquanto antítese da
morte. Diz Érico: “Penso nela como uma espécie de sinônimo
de mãe, ventre, terra, raiz, verticalidade, permanência, paciência,
espera, perseverança, coragem moral.”

Há um estranho paradoxo em O continente. Essa epopéia,
cuja linha episódica foi traçada no encadeamento dos feitos guerreiros,
parece ter sido escrita para reafirmar a insanidade da guerra. Enquanto a seqüência
cronológica avança mediante lutas fratricidas entre Cambarás
e Amarais, a visão de mundo do autor, sua crença nos valores permanentes
da vida, está expressa na saga de Ana Terra e nos silêncios de
Bibiana.

A obra apresenta em sua estrutura textual elementos que não se enquadram
nas características do romance histórico tradicional. Lembremos
que uma das
características era de que os romances históricos a exemplo dos
procedimentos típicos da escrita da História, organizam-se em
observância a uma temporalidade cronológica dos acontecimentos
narrados. O continente, porém, rompe essa temporalidade
cronológica. Para abranger esse longo período, o escritor lançou
mão de dois tempos históricos: um que se passa em 3 dias de junho
de 1895, durante o cerco ao sobrado dos Terra-Cambará na Revolução
Federalista, e outro anterior, que remonta a 1745 e vai avançando cronologicamente
até se aproximar de 1895.

Esse primeiro tempo histórico que se passa em poucos dias e que abre
e fecha o romance como uma moldura é dividido em sete episódios
intitulados O Sobrado. Esses episódios estão ligados
aos episódios do outro tempo histórico, mas ao mesmo tempo são
independentes, de forma que se o autor publicasse-os separados não haveria
nenhum prejuízo em sua inteligibilidade. O continente utiliza-se
de dois tempos históricos que se encontram no final da narrativa.

É interessante ainda lembrar a observação feita por Regina
Zilberman sobre esse aspecto estrutural do romance: “importante também
é a estrutura da obra: o romance abre e fecha com uma moldura, o cerco
ao sobrado ao final de junho de 1895, com seu ritmo próprio e independência
em relação ao conjunto do texto”(ZILBERMAN, 1998, p. 140).
Esses episódios-molduras são estruturados como um diário
dentro da obra. Observemos um deles:

O SOBRADO – II
25 de junho de 1895: Madrugada

Um grito atravessa o sono de Rodrigo, que acorda sobressaltado. É
a mamãe – pensa ele. O coração começa a bater-lhe
acelerado. O medo aumenta-lhe a impressão de frio, e ele sente na boca
do estômago medo e fome confundirem-se numa mesma sensação
de vazio gelado e náusea. Não tem coragem para abrir os olhos
porque sabe que o quarto está às escuras. Com o punhal nas mãos
e as mãos apertadas entre as pernas , encolhido e meio trêmulo,
ele escuta… Deve estar saindo o filho – imagina. Pobre da mamãe!

(VERISSSIMO, 1997, p. 67)

Intercalados aos episódios do Sobrado que se passam cronologicamente
de 25 a 27 de junho de 1895, estão os episódios A Fonte,
Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo, A Teiniaguá,
A guerra e Ismália Caré. Estes episódios
são responsáveis pela sequência cronológica do vasto
período histórico abordado no romance, desde 1745, no período
em que os Sete Povos das Missões ainda pertenciam aos espanhóis
e o Brasil ainda ainda era colônia portuguesa até o início
da década de 90, do século XIX, período que o Brasil já
era republicano. Esses episódios estão ligados uns aos outros
mas ao mesmo tempo também são indepedentes. Prova disso foi a
publicação em edições separadas dos episódios
Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo. Desse modo, a
sequência cronológica linear do tempo é rompida em O continente
através da utilização dos dois tempos históricos.

ENREDO

Em O continente, a saga da família Terra-Cambará inicia-se
com a união de Pedro Missioneiro, um mestiço criado nas missões
jesuíticas, filho de uma índia que é estuprada por um bandeirante,
com Ana Terra, filha de colonos pobres de origem portuguesa que vieram do interior
de São Paulo para o Rio Grande do Sul, naquela época uma terra
ninguém, disputada por portugueses e espanhóis. O sangue dos Terras
receberá, no terceiro capítulo do livro (seguindo em linha cronológica
e não levando em conta os episódios de moldura do sobrado), o
reforço dos Cambarás, através do casamento entre Bibiana
Terra, filha de Pedro Terra (fruto da união de Pedro Missioneiro com
Ana Terra), com Rodrigo Cambará, filho do aventureiro do Chico Rodrigues
que, a partir da união com a açoriana Maria Rita passa-se a chamar
Chico Cambará. Aí então está formado o clã
Terra-Cambará, representado alegoricamente na árvore cambará
que cria raízes na terra santafezense, quando Rodrigo Cambará
casa-se com Bibiana e fixa residência em Santa Fé. A partir daí,
mesmo sofrendo alguns reveses, o clã inicia um lento processo de prosperidade
que vai culminar na condição de família latifundiária.
O fim da narrativa apresentará Licurgo Terra Cambará como intendente
de Santa Fé, dono da grande estância de terras do Angico e do imponente
sobrado, símbolo do prestígio social e poder político local.

ESTRUTURA DA NARRATIVA

O romance é narrado em terceira pessoa, numa linguagem tradicional.
Há apenas um desvio na linearidade cronológica do texto. A ação
do episódio O sobrado, apesar de ser temporalmente a última
de O continente, é dividida em sete fragmentos. Estes, por seu
turno, são espalhados pelo narrador dentro do volume, de maneira que
o primeiro fragmento abra o livro e o último o encerre. Cria-se assim,
na narração, um contraponto temporal.

O outro desvio nasce da inserção no texto de “intermezzos”,
isto é, de rápidos quadros – seis ao total – escritos em linguagem
próxima à lírica, quase em versos, e no tempo verbal do
presente. Funcionam como passagens intermediárias da narrativa central,
e são verdadeiros poemas em prosa. A rigor, parecem desempenhar um tríplice
papel no romance:

a) Preencher vazios, tanto na construção de personagens secundários
quanto em aspectos históricos riograndenses que não foram suficientemente
elaborados nos episódios.
b) Reforçar o caráter simultaneamente épico e brutal da
conquista do território chamado continente de São Pedro.
c) Apresentar um contraponto social, na figura dos Carés, gente sem eira
nem beira, desvalidos, arranchados na fazenda do Angico, e que servem de “bucha-de-canhão”
nas guerras locais e de amantes baratas para os fazendeiros.

CAPÍTULOS

1- A Fonte

Primeira parte, assim chamada porque o que se segue é a história
do personagem que se torna a fonte do qual surge toda a família. É
a história do mameluco Pedro Missioneiro, que nasceu em 1745, morou nos
Sete Povos das Missões e adquiriu de um padre (seu padrinho, que o batizou
com o nome de um homem, que um dia quis matar pela amante antes de se tornar
padre) uma adaga que passa pela família. Pedro tinha visões que
se realizavam, dizia ser filho da Virgem Maria e sai da Missão três
meses após a morte de Sepé Tiaraju.

O que destacar em A fonte:

a) A confluência da cultura mística católica e a consciência
mágica dos índios na figura de Pedro, explicando a sua tendência
a visões e premonições.

b) A criação de uma origem mitológica para o estabelecimento
da sociedade rio-grandense, na medida em que Pedro, mais tarde, fecundará
Ana Terra, dando início – em termos simbólicos – a
um tipo local, o gaúcho. É visível – neste romance
de “fundação” de um mundo regional – a influência
de Iracema, de José de Alencar.

2- Ana Terra

Substrato histórico: A conquista do território por famílias
paulistas e a fundação dos primeiros povoados. Duração
temporal: 1777 a 1811. Leia
mais sobre este capítulo…

3- Um certo capitão Rodrigo

Substrato histórico: A emergência e apogeu dos gaudérios.
A Revolução Farroupilha. A chegada dos primeiros imigrantes alemães.
Duração: 1828 a 1836. Este é dos capítulos que merecem
destaque, seja pelo apuro estilístico do autor, seja pela temática
desenvolvida. Um Certo Capitão Rodrigo, presente em O Continente,
merece essa atenção especial. O capítulo tem o mérito
de retratar, ou recriar, a imagem do homem gaúcho forte, bravo, destemido,
na figura do personagem principal: capitão Rodrigo Cambará.

A cena da chegada do capitão Rodrigo à cidade de Santa Fé
já é suficiente para passar essa idéia do homem gaúcho,
tanto pelas vestimentas como pela personalidade:

“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o capitão
Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo,
vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado
para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu
olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia
andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia
bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num
dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal.
Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava
ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia
ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente
da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou
arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando,
assim com ar de velho conhecido:
– Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de
talho!
– Pois dê”

A descrição do valente e imponente capitão entrando no
pacato vilarejo, seguida do desaforado cumprimento da chegada, antecipa o incômodo
que essa figura produzirá em tal espaço. O dono da resposta curta
e grossa que aceita o confronto, porém, não se tornará
seu antagonista na história. Será seu futuro cunhado, Juvenal
Terra.

A importância desse capítulo está no fato de que –
além de apresentar a figura típica do gaúcho encarnada
pelo capitão Rodrigo – mostra a união dos dois grandes sobrenomes
que marcarão, na obra, a formação do estado do Rio Grande
do Sul: os Terras e os Cambarás.

Apaixonando-se perdidamente por Bibiana Terra, o capitão a conquista
após minar sua resistência e a de sua família, além
de ter vencido em um duelo o pretendente rico de Bibiana: Bento Amaral, filho
do coronel Ricardo Amaral. Essa união representa, estruturalmente, o
eixo das duas famílias que irão protagonizar toda a trilogia.

O carisma de Rodrigo Cambará acaba por conquistar, de fato, não
apenas Bibiana Terra, mas vários moradores de Santa Fé, como o
padre Lara e Juvenal Terra, com quem monta um negócio. A figura do capitão,
no entanto, distancia-se em todos os momentos do perfil do bom moço.
Mesmo depois de casado com Bibiana, Rodrigo Cambará mantém o gosto
pelo carteado, pela bebida e, principalmente, por outras mulheres.

O antagonista de Rodrigo Cambará é Bento Amaral, com o qual
trava uma luta atrás do muro do cemitério, após um desentendimento
em uma festa de casamento. Nesse confronto, o filho do coronel, desonrando a
batalha, utiliza uma arma de fogo contra o capitão.

Antes de dar o tiro à traição, Amaral quase recebe a
marca do capitão Rodrigo: um “R” na testa. Surpreendido pelo
disparo, no entanto, o capitão só tem a possibilidade de talhar
um “P”. Falta-lhe tempo para completar a letra “R”.
A cena final desse capítulo é a invasão do casarão
da família Amaral. Nesse episódio, morre o capitão Rodrigo
Cambará, deixando órfão o filho Bolívar:

“O tiroteio começou. A princípio ralo, depois mais
cerrado. O padre olhava para seu velho relógio: uma da madrugada. Apagou
a vela e ficou escutando. Havia momentos de trégua, depois de novo recomeçavam
os tiros.
E assim o combate continuou madrugada adentro. Finalmente se fez um longo silêncio.
As pálpebras do padre caíram e ele ficou num estado de madorna,
que foi mais uma escura agonia do que repouso e esquecimento. O dia raiava quando
lhe vieram bater à porta. Foi abrir. Era um oficial dos farrapos cuja
barba negra contrastava com a palidez esverdinhada do rosto. Tinha os olhos
no fundo e foi com a voz cansada que ele disse:
– Padre, tomamos o casarão.
Mas mataram o capitão Rodrigo – acrescentou, chorando como uma
criança.
– Mataram?
O vigário sentiu como que um soco em pleno peito e uma súbita
vertigem. Ficou olhando para aquele homem que nunca vira e que agora ali estava,
à luz da madrugada, a fitá-lo como se esperasse dele, sacerdote,
um milagre que fizesse ressuscitar Rodrigo.
– Tomamos o casarão de assalto. O capitão foi dos primeiros
a pular a janela. – Calou-se, como se lhe faltasse fôlego.
– Uma bala no peito…”

O espaço de Santa Fé – Em Um Certo Capitão
Rodrigo
, o espaço marca de forma muito evidente uma rígida
separação, de acordo com a classe social dos personagens.

O espaço nessa narrativa funciona como índice social, que divide
os personagens do capítulo. O casarão representa o poder local,
enquanto a venda do Nicolau e o terreiro da casa de Joca Rodrigues, entre outros
pontos, representam o espaço das classes mais pobres.

Essa repartição fica clara quando se nota que os dois confrontos
da narrativa – o primeiro entre Bento Amaral e Rodrigo Cambará;
o segundo, na tomada do casarão – se desenvolvem com a invasão,
indevida, desses espaços.

No confronto entre Rodrigo e Amaral, este último estava em um ambiente
popular, o que era impróprio, segundo os valores vigentes. Esse fato
favoreceu o encontro com seu oponente. Já a invasão ao casarão
da família Amaral acabou por representar o conflito final. Leia
mais sobre este capítulo…

4- A teiniaguá

Substrato histórico: A consolidação da vida urbana no
RS. Duração: 1850 – 1855.

Em 1850 Santa Fé já possui sessenta e oito casas e trinta ranchos.
Chama atenção o magnífico sobrado construído por
um nortista de origem misteriosa, Aguinaldo Silva. Dele também é
a melhor fazenda da região, a do Angico. Porém a sua principal
atividade econômica é a agiotagem e muitas terras, inclusive a
pequena propriedade de Pedro Terra tinham passado para suas mãos.

Aguinaldo tem uma neta adotiva, Luzia, de esplêndida beleza e “modos
de cidade”: veste-se bem, é culta e toca cítara. Desperta
paixões, especialmente entre os dois primos, Bolívar e Florêncio
(filho de Juvenal Terra) que a disputam. Luzia termina optando por Bolívar,
filho do Capitão e de Bibiana, herói juvenil na guerra contra
o tirano argentino, Rosas.

Bolívar está completamente enfeitiçado por Luzia. Atendendo
uma determinação da própria jovem (que tem dezenove anos),
marca-se o noivado para a mesma hora em que um escravo, suspeito de crime hediondo,
vai ser enforcado. Os sinais de estranha doença começam a aparecer
na moça que veio do Norte.

Também surge neste episódio um dos protagonistas mais importantes
de O continente, o Dr. Carl Winter, médico alemão, culto,
solitário, extremamente observador e um pouco bizarro, e que havia fugido
da Alemanha por razões sentimentais e políticas. Ele será
uma espécie de “comentarista” da vida cotidiana e dos costumes,
tanto de Santa Fé quanto da província de São Pedro. Não
é errado considerá-lo como um “alter-ego” (um “outro
eu”) de E. V. Fascinado por Luzia (uma mescla de curiosidade e desejo),
ele a compara à lenda local da teiniaguá, a princesa moura transformada
pelo diabo numa lagartixa, cuja cabeça consiste numa pedra preciosa de
brilho ofuscante que atrai e cega os homens.

É o Dr. Winter o primeiro a perceber a doença da alma que corrói
a bela Luzia: a moça tem prazer com o sofrimento alheio. Na hora do enforcamento
do escravo, ela corre para a janela a fim de se deliciar com o espetáculo:

Primeiro o rosto dela se contorceu num puxão nervoso, como se tivesse
sentido uma súbita dor aguda. Depois se fixou numa expressão de
profundo interesse que aos poucos foi se transformando numa máscara de
gozo que pareceu chegar ao orgasmo.

Por isso, casando-se com Bolívar, uma mente singela, ela se aproveitará
para atormentá-lo. No entanto, contraditoriamente, Luzia tem momentos
de ternura e alegria para com o marido, estraçalhando-se, pouco a pouco,
os seus nervos de homem enfeitiçado. Essa alternância de loucura
e fascinação, revela uma Luzia não apenas sádica,
mas também masoquista, porque há passagens em que ela parece se
comprazer com o próprio sofrimento. Bibiana, a sogra, também percebe
o que o Dr. Winter já enxergara e passa a odiar a nora.

Em 1853, Aguinaldo Silva cai do cavalo e fratura o crânio, sobrevivendo
ainda três dias. A neta acompanha-o, minuto após minuto, comprazendo-se
com o sofrimento do avô. Seu sado-masoquismo é visível.
O nascimento de Licurgo Cambará, o filho do casal, atenua brevemente
a situação. Em seguida, deixando o nenê nas mãos
de Bibiana, Bolívar e Luzia partem, numa viagem recreativa para Porto
Alegre.

Na capital da província uma epidemia de cólera dizima a população.
Em vez de retornar, o casal permanece no centro da grande epidemia. E. V. não
narra os acontecimentos na capital, mas meses depois, quando os dois voltam,
Bolívar está tão destruído psicologicamente que
o Dr. Winter e Bibiana intuem o que havia ocorrido: a euforia e o gozo de Luzia,
vendo o terror de todos diante da peste, deliciando-se com o desespero das pessoas
que caíam nas ruas, agonizantes.

Ao tentar rever o filho, Licurgo, a teiniaguá é impedida por
Bibiana e tem um ataque de fúria, chamando a sogra de “cadela”.
Bolívar então espanca a esposa e sai da sala, cada vez mais arrasado
interiormente.

O coronel Bento Amaral aproveita-se do contexto para vingar-se dos Cambarás,
decretando a quarentena do sobrado. Isto é, durante quarenta dias, ninguém,
a não ser o dr. Winter, poderia entrar ou sair do casarão. Capangas
dos Amarais cercam, então, o local para que a ordem do caudilho fosse
cumprida. Bolívar “caído de borco, no meio da rua, com a
cara metida numa poça de sangue.”

5- A Guerra

Substrato histórico: A Guerra do Paraguai. Duração: 1869
– 1870.

Conta a história dos anos finais da Luzia e sua disputa com Bibiana
pelo amor de Licurgo enquanto este cresce. Luzia está na época
com um tumor no estômago, e a preocupação principal de Bibiana
é permanecer no sobrado. Luzia, ao final, perde a guerra não-declarada,
pois o que queria era um filho cosmopolita, e Licurgo continua em Santa Fé.

Ismália conta a história de Licurgo já mais velho, trabalhando
em Santa Fé com seu melhor amigo, o jornalista Toríbio, pela proclamação
da República, tudo enquanto envolvido com o casamento com a prima Alice,
filha de Florêncio Terra e a amásia, Ismália. Ismália
é uma china (palavra usada até hoje em partes do Rio Grande do
Sul, que designa uma “mulher da vida”) submissa a Licurgo do qual
este gosta e permanece assim pelos anos que seguem e engravida dele. A luta
pela República enfim tem sucesso e a rivalidade dos Terra Cambará
com os Amaral continua com Alvarino e Licurgo, como antes fora com Bento e Rodrigo.

Semi-inválido, Florêncio retorna da guerra quase em seu final.
Através do Dr. Winter sabe do confronto entre Bibiana e Luzia, dentro
do Sobrado. Sabe também que Luzia tem um tumor maligno no estômago
e que cada mulher espera a morte da outra.

Enquanto isso, na fazenda do Angico, o adolescente Licurgo Cambará
efetiva sua educação à maneira rio-grandense, guiado por
Fandango. Típico gaúcho fanfarrão, exímio contador
de histórias, conhecedor de casos e lendas, expressando-se por ditados,
tendo apurada memória por quadras, trovas e modinhas, dono, por fim,
de grande sabedoria campeira, Fandango é o professor do seu futuro patrão.
A partir dessas experiências gratificantes, – e tendo como contraponto,
na cidade, a sombria doença da mãe – Licurgo só se
sentirá à vontade no campo, desenvolvendo uma primitiva identificação
com as lides pastoris e as coxilhas.

No Sobrado, Bibiana consegue afastar os pretendentes de Luzia, revelando-lhes
pormenores da “loucura” da nora. Seu objetivo é impedir um
novo casamento da jovem viúva porque assim Licurgo herdará sozinho
todas as propriedades da mãe. O Dr. Winter acompanha a luta entre as
duas, mas não toma partido de nenhuma, embora sua maior intimidade seja
com Bibiana. O episódio encerra-se sem que a vitoriosa seja conhecida.

6- Ismália Caré

Substrato histórico: O surgimento da oposição republicana
e abolicionista. (PRR – Partido Republicano Rio-grandense). Duração:
1884.

Em 1884, Santa Fé é elevada à categoria de cidade. O
Coronel Bento Amaral ainda domina politicamente, mas Licurgo Cambará
representa a oposição republicana que já não aceita
a hegemonia da oligarquia monarquista. O ódio entre as duas “casas”
fica latente numa cavalhada festiva, em que se enfrentam “mouros”
e “cristãos”, e o que deveria ser encenação
quase vira um confronto sangrento.

No plano pessoal, Licurgo vai se casar com sua prima Alice Terra (filha de
Florêncio). A irmã dessa, Maria Valéria Terra também
o ama, mas sufoca seu afeto proibido. Independentemente dos amores que desperta,
o Cambará sente-se preso sexualmente a Ismália Caré, filha
de um agregado pobre que vive num rancho, numa fazenda do Angico.

Sob a influência de um bacharel baiano que vive em Santa Fé,
Toríbio Rezende, Licurgo torna-se republicano e abolicionista fanático,
libertando seus próprios escravos. Na noite da libertação,
ele vem a saber que Ismália Caré está grávida e
decide que a amante “vai botar o filho fora”, isto é, precisa
abortar.

Além disso, há referências neste episódio a respeito
da morte de Luzia. Surge também um personagem interessante, o sacerdote
Atílio Romano, italiano de nascimento e formação, brasileiro
de coração, magnífico orador e intransigente defensor da
miscigenação étnica e da paz entre os grupos que se hostilizam
na província.

O que destacar em Ismália Caré

a) O quadro vivo da contenda política entre as frações
dirigentes (Amaral versus Cambará), cujos rancores e ódios já
estão latentes antes da República e do triunfo do castilhismo.

b) A ambigüidade moral de Licurgo perante a sua futura esposa, Alice,
pois não pretende se livrar (nem se livrará) da amante, Ismália
Caré.

c) A sua ambigüidade ética no caso da libertação
dos escravos. Apesar da grandeza de seu gesto, subjetivamente ele sente raiva
e irritação com “aqueles negros” que pisam na sala
do Sobrado, alguns aturdidos e outros, arrogantes.

d) O surgimento de Maria Valéria Terra, cunhada de Licurgo, de grande
importância em episódios seguintes.

7- O Sobrado

Substrato histórico: Toda a ação transcorre em três
dias de junho de 1895, nos estertores da Guerra Civil entre republicanos (“chimangos”)
e federalistas (“maragatos”).

Vencendo seu medo, o maragato José Lírio chega na torre da igreja
de onde se domina o quintal do Sobrado e, conseqüentemente, o poço
de água que garante a sobrevivência dos Cambarás e de seus
homens. No entanto, ao pensar nas mulheres e nas crianças que estão
na casa fortificada, José Lírio acaba errando intencionalmente
o tiro no chimango que, em desespero, tentava buscar água no poço
para matar a sede dos sitiados.

Esta capacidade de tolerância e de compreensão “daqueles
que estão no outro lado” não são compartilhadas por
Licurgo Cambará, que se recusa a pedir trégua aos maragatos, tanto
para cuidar dos feridos e sepultar os mortos, quanto para atender sua esposa,
Alice Terra, que está em trabalho de parto, e necessita de urgentes cuidados
médicos. Inflexível e autoritário, Licurgo não aceita
os olhares recriminatórios do sogro, Florêncio Terra e da cunhada,
Maria Valéria, mesmo que a esposa e a criança corram perigo de
vida. Para ele seria um ultraje à honra solicitar a complacência
dos inimigos.

O resultado de sua intolerância é que a menina nasce morta e
é enterrada no porão da casa, cheio de ratos. Também o
sogro, Florêncio, provavelmente enfraquecido – durante o cerco não
havia mais nada a comer senão laranjas – termina morrendo no final
do episódio, logo após o fim do cerco do Sobrado, com o abandono
da cidade pelas forças maragatas.

Na última página, Bibiana Terra já catacega e meio caduca,
pede silêncio a Fandango, que ia lhe levar a notícia da morte de
seu sobrinho, e apontando para janela onde o vento uiva, diz: “Está
ouvindo?”

Há o brilhante jogo entre a vida e morte, representado pelo parto,
de um lado, e pela guerra, de outro. Torna-se evidente o pacifismo do autor,
pois o machismo, o sentido de honra e a inflexibilidade ideológica de
Licurgo Cambará são completamente impugnados no andamento do episódio.

A covardia de José Lírio que, na verdade, obriga-o a superá-la
através da legítima coragem, produzida pela vitória sobre
o medo. Além disso, o referido protagonista rompe com a intolerância
e com o radicalismo políticos, mostrando-os como repugnantes à
consciência humanista.

Não por acaso, o começo de O continente (O Sobrado
I) se dá com ele, José Lírio, ou seja, um indivíduo
que coloca respeito à condição humana acima das ideologias
e interesses que arrastam os homens para a guerra. Este livro sobre a guerra
começa, na verdade, com um libelo a favor da paz.

O aparecimento – ainda que de modo periférico – dos dois
irmãos, Toríbio e Rodrigo tendo este último papel decisivo
nos livros subseqüentes. A presença, agora mais intensa, de Maria
Valéria Terra com idêntica função de Ana Terra e
de sua tia-avó, Bibiana. A mesma força interior, a mesma resistência
silenciosa, o mesmo desprezo pela violência guerreira dos homens.

A particularização – através do cerco do Sobrado
– da mais sangrenta e cruel de todas as lutas rio-grandenses, a Guerra
Civil (1893 – 1895) com seu terrível rosário de crueldades,
degolas, estupros e terrorismo de Estado, este desenvolvido pelos autodenominados
“progressistas” da época: Júlio de Castilhos e sua
horda republicana.

Observações Gerais

Além da imagem da casa – o sobrado – o autor utiliza-se
de referências da natureza – sobretudo da alusão ao vento
– com o fito de integrar as personagens e as ações a âmbitos
cada vez mais amplos da trama e da História. Esse procedimento de integração
permite uma mistura entre espaço doméstico e palco de guerra,
do mesmo modo que justifica a referência ao vento como marca de tempo
– numa perspectiva que conduz do particular para o geral, da parte para
o conjunto, da definição de detalhes às imagenssíntese,
nas quais se incluem os títulos das partes e do todo.

Para além do círculo de casa – e ainda no espectro romanesco
– os cruzamentos se ampliam, chamando para o diálogo a memória
de Ana Terra, Capitão Rodrigo, Luzia – os antepassados de Licurgo
e de outros ocupantes da casa. Esses são flagrados em distintas épocas,
tanto pelos recuos do tempo da narrativa como pela sobrevivência de personagens
que, ao modo da velha Bibiana, avó de Licurgo, são remanescentes
de outras épocas. Desse modo, novas imagens vão se formando na
teia de relações aberta pelos trechos que preenchem os espaços
entre as diferentes focalizações sobre o sobrado.

Além de funcionarem como referências ficcionais, essas imagens
vão colocando em diálogo recortes históricos diversos.
De 93, retrocede-se a episódios do
povoamento do solo sulino, à época das missões jesuíticas
e à revolução farroupilha, para citar três declinações
expressivas.

Os diferentes níveis de representação, tal como estão
dispostos em O Continente – e, de resto, ao longo de todo O
tempo e o vento
– exigem que o leitor vá montando a história,
como se juntasse as peças de um quebra-cabeça. O procedimento,
que é próprio dos grandes romances, fica reforçado pela
utilização que Verissimo faz do contraponto, no qual aprofunda
o uso da composição fracionada da história, cujos pontos,
disseminados pelo todo, são ampliados passo-a-passo. A essa altura podemos
afirmar que o cruzamento entre entrecho ficcional e eventos históricos
interfere mesmo na estrutura da obra em questão, posto que é decisivo
para as dotações de tempo, espaço e seqüenciação
dessas narrativas.

Da perspectiva do arranjo ficcional, a escolha da revolução
federalista como tópico de partida de O continente – e, de resto,
da própria trilogia, considerando-se que se trata do volume inaugural
– reveste-se de particular significado. Na história do Rio Grande do
Sul esse é um conflito essencial, pois significa a passagem da antiga
ordem institucional, arranjada com os acordos imperiais que puseram fim à
revolução farroupilha, à ordem republicana, assentada no
ideal positivista de Júlio de Castilhos.

Créditos: Guia do Estudante – Editora Abril | Flávio
Loureiro Chaves
, Professor de Literatura Sul-Rio-Grandense – UFRGS | Sistema
de Ensino CNEC
| Donizeth Aparecido dos Santos, Doutor pela Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP | Prof. Adauto Locatelli
Taufer
, Colégio Santa Inês | Pedro Brum Santos, PPGL/UFSM

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