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Objecto quase, de José Saramago

by Lucas Gomes

Análise da obra

Objecto quase, publicado pela primeira vez em 1978, é uma coletânea de seis histórias breves e tensas do escritor português José Saramago e evidenciam as raízes do maravilhoso messe autor. Em um gênero não muito praticado por ele, os climas são variados – podem ir do humor sarcástico ao lirismo romântico -, os personagens também, mas algo os une intimamente: o pessimismo, onde o autor espelhou não somente o presente, mas o futuro também. Vemos nesta obra o homem “coisificado” e as coisas, “humanizadas”… É simplesmente o reflexo de nossa sociedade, que se preocupa mais com a segurança dos pertences do que com o próprio cidadão!

Neste conjunto de contos, em Objecto Quase, há quase uma sequência, onde a história do homem é montada em painéis, que vão desde a sua alienação, com opressões internas e externas, até à sua própria natureza, espontânea, amoral, livre: o encontro do jovem e da jovem, no final, em que o silêncio renasce, identificado com a natureza, sobre as cinzas da palavra, que de todos os vírus se tornou portadora.

Traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. E, apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, que se destina a ferir e referir as coisas a distância. Daí o permanente poder de crítica desses escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político.

Em algum lugar no passado – ou seria no presente? – uma cadeira cai e em um breve momento o destino de um homem se desfaz; um outro se vê condenado a permanecer colado na poltrona do seu carro; um terceiro pretende reconstruir uma cidade, livrando-a de seus mortos… Esses e outros episódios fantásticos e alegóricos, cômicos e trágicos se encontram em uma narrativa carregada de metáforas que tenta desesperadamente denunciar uma certa condição (des)humana à qual se submetem o corpo e o cérebro quando esses não estão em harmonia.

Nos contos de Objecto Quase há dois grupos de protagonistas. No primeiro, eles são o avesso do herói, quase objetos que têm a morte indigna por destino: é o empregado que se torna vítima do próprio automóvel em “Embargo”; em “Coisas” é o sujeito que covardemente se submete às normas do mundo; em “Refluxo” é o rei que como Minos, antípoda de Teseu, foge à aventura heróica; em “Centauro” é o ser dividido entre dois mundos e, por isso, sem possibilidade de transpor mundos. No segundo grupo há a luta entre herói e vilão: em “A cadeira” – metonímia do ditador – Salazar é derrotado por um metafórico cupim, que provoca o tombo e a ruína do regime, trazendo um benefício para a sociedade; em “Desforrra”, o protagonista adolescente descobre a força de Eros, ao recusar a repressão sexual representada pela castração de um porco. Nestes casos, há uma luta e a vitória da vida.

Personagens que não se entrelaçam em suas histórias particulares, mas partilham de um mesmo destino: o da vingança, alimentada às escondidas, longe dos olhos da sociedade e das condutas consideradas lícitas. Este pode ser o fio condutor dos seis contos do livro do escritor português. A vingança funciona como motor da trama, ainda que muitas vezes o motor se emperre no meio do caminho.

E aí entra o tônus satírico e crítico de Saramago, antigo detrator do Capitalismo, envolvido em política e membro do Partido Comunista Português. A incompletude dos contos é descrita no título do volume. Tais características ganham força de texto para texto. A começar pela história que inicia o livro, “Cadeira”, a descrição de um móvel como se este pertencesse a um universo conspiratório. E assim por diante nos outros contos: “Embargo”, “Refluxo”, “Coisas”, “Centauro” e “Desforra”. É uma boa maneira de entrar no universo angustiante do escritor.

Com Objeto Quase, José Saramago denuncia o estado de animalização do homem e a materialização da violência como um capítulo comum, doloroso da história de um povo.

O autor de Objecto Quase, com a “libertinagem” da sua escrita cria potencialidades estéticas que podem passar desapercebidas. As divagações aparentemente fortuitas estão para o episódio como um coro para um solo: reforçam-no. O episódio adquire uma ressonância que o amplia, por ela se abrindo o espaço para a crítica, onde o humor e a sátira engordam, pela insinuação, pela ironia, pela afirmação, parecendo perder-se a pertinência em favor da loquacidade. A voz coloca-se numa direção para ser ouvida numa direção oposta.

A versatilidade de Saramago (verbal, imaginativa, observadora, refletiva) leva-o às raias do surrealismo, patente na roupagem dos “fatos”, no conto “Coisas”, onde os ingredientes da psicologia patológica, individual e coletiva, e da parapsicologia, são expropriados pelas palavras, cujo objetivo, constante no autor, é o homem, para a despir até à pele e deixá-lo nu na praça pública da história, em confronto com a história, que o mesmo é dizer consigo próprio, o que explica a sua toada sarcástica e a sua intenção pedagógica acerada.

COISAS

O conto “Coisas”, o mais longo do livro, é uma espécie de chave para o conjunto da obra. É uma história de ficção científica. Passa-se numa sociedade futurista, dividida em castas. O que diferencia uma casta da outra é seu poder de consumo, determinado por letras que as pessoas trazem tatuadas na palma da mão. Os objetos são fabricados por um processo que lembra mais a reprodução orgânica do que a manufatura e, de fato, são dotados de personalidades e psicologia próprias. Esses objetos vão ficando cada vez mais temperamentais e, um dia, revoltam-se contra as pessoas. Começam a desaparecer misteriosamente. A princípio, são pequenos desaparecimentos, os donos não têm certeza, talvez tenham-nos apenas perdido. Mas os sumiços vão ficando progressivamente mais acintosos, passam a acontecer diante dos olhos de seus proprietários e em escala cada vez maior, de jarros e relógios a edifícios inteiros que simplesmente evaporam, deixando os moradores nus e mortos no terreno vazio. Ao final se descobre que os objetos rebeldes eram os verdadeiros humanos, convertidos em coisas pela sociedade rigidamente consumista:

Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas.

O misterioso desvanecimento dos objetos, uma vez mais, parece ter tido Marx como inspirador:

A revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes distingüiram a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, foram varridas, todas as novas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente, compelido a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes.

Neste conto, a cidade vai perdendo suas partes. Todas as suas materialidades, aos poucos, somem. Uma porta não precisa ser aberta, pois ali só está presente o vazio. Uma escada não se sobe nem se desce, porque não há pavimento superior, e, se tal tivesse, não existiriam mais degraus para subir. Uma calçada já não se diferencia do meio da rua, pois tudo é uma coisa só, um grande vazio. As ruas não aparentavam grandes prejuízos, mas notava-se, na cidade, uma geral deterioração, como se alguém tivesse andado a tirar pedacinhos aqui e além, como fazem aos bolos as crianças… (1998, p. 87)

A cidade de Saramago, paulatinamente, se desmaterializa, transformando-se em puro vazio. Não há mais espaço, só luz.

Onde antes havia espaço construído, agora, só o espaço do vazio.

Uma vez compreendido o ponto a partir do qual o autor fala, nos voltamos para os outros contos e percebemos que, de um modo ou de outro, são todos presididos por essa revolta dos objetos, homens coisificados, contra seus exploradores.

EMBARGO

No conto “Embargo”, é um automóvel que adquire vida e autoconsciência, quando motivações políticas e econômicas ameaçam privá-lo de seu sustento básico, que é o combustível.

O embargo do petróleo traz à superfície histórica o homem como um dependente do carro, exposto que está às dependências criadas pela civilização. O episódio, aparentemente simples, é estirado sobre o patológico, e sob, onde um corpo se entala sem saídas, suportando as angústias de hábitos que estão ameaçados. A dilatação verbal do simples transforma-se em tensão dramática, em problema, em crítica e humor, numa anatomia humana em que o ridículo é bisturi. Tudo isto nos é dado por uma estrutura narrativa que se oculta nos planos sintagmáticos e paradigmáticos da palavra, como se a narrativa, enquanto comunicação, tivesse que subjugar-se às estruturações da palavra e não aos códigos narrativos.

Leia na íntegra o conto EMBARGO

CADEIRA

Em “Cadeira”, o móvel roído por um inseto derruba um ditador e os próprios insetos. Neste conto identifica-se quatro componentes fundamentais da escrita do mais recente Saramago com que vinha trabalhando ao longo do texto: a prosa barroca, o discurso cinematográfico, a tendência a digressões e a postura comprometida.

O conto “Cadeira” é o que abre o livro e conta – guardando-se as devidas proporções de uma ficção e sua trama alegórica – a queda acidental do ditador Salazar de uma cadeira, fato ocorrido em 1968 e que foi (devido a impossibilidades cerebrais causadas pelo baque) a responsável pela queda dele do governo e posterior morte em 1970.

A narrativa contém várias citações históricas e profundamente irônicas que mostram a posição do narrador quanto a ditadura, parece óbvia a importância de saber que Portugal também passou por uma experiência de governo ditadorial. Ela ocorreu em 1928, quando Salazar foi convidado para organizar as finanças de República Portuguesa instalada em 1910. Salazar desenvolveu uma política apoiada no exército e na Igreja, e tinha por princípio defender “a civilização cristã” dos males da época: comunismo, internacionalismo, socialismo, etc.

A organização do Estado Novo, em 1933, seguiu as tendências fascistas: defendia o corporativismo, combatia a democracia e a atividade parlamentar.

O trabalho com a linguagem – que faz do conto uma verdadeira discussão da pluralidade da significação; a alegoria e a visão focal do narrador que convida o leitor a participar do momento exato da queda devem ser considerados na leitura.

O foco inicial é a CADEIRA, seu desabamento, sua madeira acessível ao inseto que a deteriorou por gerações, a perfeição de sua queda que acaba causando a QUEDA da ditadura, ou seja, a influência do objeto nos destinos humanos, mais especificamente nos destinos de Portugal. O que faz com que consideremos a faceta histórica do conto.

A linguagem, com traços barrocos, usada por Saramago permite-se o Ludismo, as digressões quanto as sinonímias e outros recursos de estilo, que não fazem a história “andar”, mas embelezam a sua construção, tudo partindo da significação de desabamento:

A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam.

Ainda na brincadeira do estilo, o narrador aproveita para mostrar sua rejeição, que vai ser amplamente destacada, ao velho ditador:

Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caíndo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira.

Logo depois discute o tipo de madeira que teria servido para confeccionar o objeto, aproveitando para criticar a dizimação expansionista, uma das bandeiras da ditadura de Salazar:

Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índia e ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente (…) Seja pois o mogno e não se fale mais no assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e repousante, depois de bem sentados…

Em um segundo momento, bastante destacado, será a vez de mostrar o gênero do coleóptero que por gerações irá deteriorando a cadeira e porque não o trono, ou ainda,a ditadura. O narrador faz várias associações dele com heróis do povo, coincidentemente, mas nada é coincidência, heróis do oeste americano, como por exemplo Buck Jones. Mas a principal associação é com o “nobre povo luso”, citado até no hino do país:

Em algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o coleóptero, pertencesse ele ao gênero Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado, considerando a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as gerações que se alimentaram deste mogno até o dia da glória, nobre povo, nação valente.

O caminho do Anobium nos veios da madeira é comparado, por isso a importância de saber que é uma representação, uma alegoria, a construção das pirâmides como túmulos dos faráos, parece, portanto pertinente, a alusão à morte, ao fim da ditadura e à irônia com que o narrador trata o ditador que se acha um rei.

Não estranhemos portanto que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de despedida.

A ironia do narrador também se manifesta quando usa os principios ditatorais de Salazar como a religião e a neutralidade nos conflitos para se eximir de culpa de saber da queda e não fazer nada para evitá-la:

Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos.

Depois de todas as associações do Anobium com heróis populares que derrotam os bandidos e se aconchegam nos braços da amada, inicia-se o momento da queda, detalhadamente descrito, quadro a quadro, com direito a parada para reflexões, observe também o tratamento irônico dado ao ditador:

Também agora se sentou este homem velho que primeiro saiu de uma sala e a travessou outra, depois seguiu por um corredor que poderia ser a coxia do cinema, mas não é, é uma dependência da casa, não diremos sua, mas apenas a casa em que vive, ou está vivendo, toda ela portanto não sua, mas sua dependência.

Mais um pouco do quadro a quadro, sempre irônico apontando os erros do governante:

Vê-a de longe o velho que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê (…) e esse é que é o seu erro, sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são de poder (…) O velho pensa que irá descansar digamos meia hora (…) que certamente não terá paciência de ler os papéis que traz na mão.

Mais detalhes e o comportamento de neutralidade do narrador que é estimulado para que seja também do leitor:

Ainda não se recostou. O seu peso, mais um grama menos um grama (…) mais vai mexer-se, mexeu-se, recostou-se no espaldar, pendeu mesmo um quase nada para o lado frágil da cadeira. E ela parte-se (…) podemos até exercitar o sadismo de que, como o médico e o louco, temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos já, passiva, só de quem vê e não conhece ou in limine rejeita obrigações sequer só humanitárias de acudir. A este velho não.

O trecho a seguir mostra uma comparação em que fica muito clara a postura de rejeição do narrador em relação a ditadura e seu efetivador:

Deixemos porém este pó que não é sequer enxofre, e que bem ajudaria o cenário se o fosse, ardendo com aquela chama azulada e soltando aquele seu malcheiroso ácido sulfuroso(…) Seria uma ótima maneira de o inferno aparecer assi como tal, enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás arrastando consigo Satanás, Asmodeu e legião.

A queda se consuma e teremos então os comentários sobre a ajuda que virá, mas principalmente a comemoração de um desejo realizado:

Cai, velho, cai. Repara que neste momento tens os pés mais altos do que a cabeça (…) A cabeça como estava previsto e cumpre as leis da física, bateu e ressaltou um pouco, digamos, uma vez que estamos perto e outras meditações tínhamos acabado de fazer, dois centímetros para cima e para o lado. Daqui para a diante, a cadeira já não importa.

As comparações com a história de Portugal continuam: a morte do Conde de Andeiro e Leonor Teles assumindo como rainha, será essa a reação da esposa? Na história real, Salazar não morre, mas fica incapacitado a ponto de nos dois anos que lhe restarão de vida acreditar ainda estar no poder. O narrador continua a usar um recurso que mostra sua onisciência e onipresença, ele está lá e o leitor na “esteira”, tem o domínio até do tempo um dos elementos da história.

Este velho não está morto. Desmaiou apenas, e nós podemos sentar-nos no chão, de pernas cruzadas, sem nenhuma pressa, porque um segundo é um século, e antes que aí cheguem os médicos e os maqueiros, e as hienas de calça de lista, chorando, uma eternidade se passará.

O corte é pequeno, quase imperceptível, mas houve ruptura nos vasos interiores, a morte já pode entrar como outro coleóptero a consumar a queda:

Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido?

A ajuda chega, a fisiologia do baque é descrita, o narrador assume uma posição imparcial ou pelo menos indiferente ao terminar o conto, mas o tempo que virá é o novo e não apenas uma referência ao clima.

Já se ouvem passos no corredor(…) Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda(…) É lá que nesse momento se encontra o Anobium, preparado para o segundo turno(…) Vamos até a janela. Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.

REFLUXO

No conto “Refluxo”, são definidos como objetos quase: E o mais, com exceção talvez dos insetos, que só por metade são orgânicos (como era convicção muito firme da ciência do país e do tempo.) Nesse mesmo conto, são os mortos que servem de alegoria para as pessoas coisificadas, pois, o que é um cadáver senão um homem que, privado de vida, transformou-se em coisa?

Narrada em tom de fábula, “Refluxo” é a história de um rei que não suporta ser lembrado da existência da morte. Disposto a banir de sua vista todos os indícios da mortalidade humana, manda construir no centro do país um gigantesco cemitério, para onde devem ser transferidos os mortos de todos os outros cemitérios e onde doravante realizar-se-ão os enterros. Mas, previsivelmente, o projeto fracassa. Em torno do cemitério, desenvolve-se um intenso comércio ambulante, com toda sorte de mercadorias (os objetos, de novo) oferecidos às pessoas que vêm se despedir de seus entes queridos. Para abrigar os vendedores e mesmo os visitantes que não têm como voltar a suas casas no mesmo dia, surgem hospedarias, hotéis, casas. Logo, uma cidade ergue-se ao redor do cemitério. Mas a expansão do cemitério invade as ruas da cidade e o sonho megalomaníaco do rei de banir a morte de seu mundo redunda na promiscuidade entre os vivos e os mortos.

“Refluxo” é outro paradigma da escrita saramaguiana. Pelo seu “argumento”, a construção de um cemitério, não passará pela cabeça de ninguém o conteúdo desse conto. Conserva a sua natureza episódica, o sonho de um monarca, mas as galerias abertas ao corpo da história, pela palavra, como o caruncho na madeira, dão uma elasticidade à dimensão do conto que o transferem dos seus limites para a procriação ilimitada da história. Tudo é inventado e tudo é verdadeiro, e neste tudo, diversificado e uno, a palavra liberta-se do seu estaticismo referencial para se tornar por si própria dinâmica, pela acumulação de material histórico reativado, pela simbologia quase, pela metáfora quase, pela sátira non-quase, feita a leitura na direção do fio de prumo. Tudo é mensurável neste conto, o exposto e o oculto, o que é suscetível de medida e o que o não é. História quase, este conto, que assim se inicia: Primeiramente, pois tudo precisa de ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto de fim que dele se não pode separar, e dizer ‘não pode’ não dizer ‘não quer’, ou ‘não deve’, é o estreme não poder, porque se tal separação se pudesse, é sabido que todo o universo desabaria, porque o universo é uma construção frágil que não aguentaria soluções de continuidade – primeiramente foram abertos os quatro caminhos.

CENTAURO

No conto “Centauro”, uma nova nota é introduzida: é o desencantamento do mundo, associado à ascensão da ordem burguesa, conceito descrito inicialmente por Max Weber e posteriormente desenvolvido por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Em seu projeto de dominação da natureza, dizem esses autores, a ordem burguesa retira progressivamente todas as projeções que o homem primitivo fizera sobre o mundo. As montanhas deixam de ser moradia de deuses, as florestas perdem seus duendes, os mares não têm mais sereias. Saudado pela ideologia iluminista como um avanço do conhecimento sobre a superstição, esse desencantamento do mundo obedece a um imperativo preciso: o de tornar a natureza acessível à exploração humana. Para que as florestas sejam derrubadas, por exemplo, é preciso que elas sejam vistas como simples objetos (ei-los de novo, os objetos) e não como o lar de espíritos encantados aos quais se deve respeito. O mundo converte-se, dessa forma, em simples reservatório de matéria prima que o homem pode explorar como bem entender.

É essa a situação retratada no conto de Saramago. Seu personagem é o último centauro, que sobrevive escondido há milhares de anos e observa como, uma a uma, as criaturas fantásticas como ele mesmo vão sendo destruídas pelo homem, ao mesmo tempo em que os deuses retiram-se da Terra para se refugiar em alturas inacessíveis. Como não podia deixar de ser, chega o dia em que o próprio centauro deve morrer. Depois de seqüestrar uma mulher num frenesi erótico, sua existência é revelada ao mundo e o centauro torna-se um fato da mídia. Já não pode mais se esconder. Os homens o caçam, talvez para transformá-lo em espetáculo, talvez em cobaia. Por isso, querem-no vivo: Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventa-da do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem vôo e percorressem toda a região. Encurralado, o centauro despenca de um penhasco na tentativa de fuga e cai sobre uma pedra pontiaguda que o corta ao meio, separando o homem e o cavalo. É assim que, cindido em dois, dividido, o centauro se torna, ele também, um objeto quase, quase um homem: Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.

O centauro é cavalo e é homem, é força e é sensibilidade, perseguido pelos deuses e pelos homens, até à morte na consciência dos olhos destes. Morte que nos deixa uma recordação amarga, pelo contraste com o amor, manifestado pelo homem-animal em duas páginas poéticas, em que a poesia não é a palavra, mas o acontecimento em si.

Leia o conto CENTAURO na íntegra

DESFORRA

Em “Desforra”, último conto do livro, abre-se uma nota de esperança. A dominação da natureza é representada agora por uma cena brutal e chocante, em que um porco é castrado por homens que se deliciam em lhe dar de comer seus próprios testículos. Mas essa violência é contraposta a uma cena idílica em que, depois de verem uma rã mergulhar subitamente na água, como no célebre haikai de Bashô, um rapaz e uma moça reafirmam a capacidade humana de amar que, nem por negada na sociedade predatória em que vivemos, deixa de existir: Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhara. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra dos ramos.

“Desforra”, apenas com três páginas, é a afirmação do amor, despido até à simplicidade da natureza, em contraste com a castração – a “desforra”.

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