Home EstudosLivros Os gestos (Conto), de Osman Lins

Os gestos (Conto), de Osman Lins

by Lucas Gomes

O conto Os gestos, de Osman Lins, pode ser classificado como uma narrativa
lírica, ou seja, em uma primeira acepção ou significado
substantivo dos gêneros, o conto configura-se parte da Épica, obra
– poema ou não – de extensão maior, em que um narrador
apresenta personagens envolvidos em situações e eventos. Em uma
segunda acepção ou significado adjetivo dos gêneros, o conto
configura-se parte da Lírica, que é todo poema de extensão
menor, na medida em que nele não se cristalizam personagens nítidos
e em que, ao contrário, uma voz central, quase sempre um “Eu”,
nele exprime seu próprio estado de alma.

O caráter lírico do conto é demonstrado, não somente
nas sentimentais, profundas e angustiadas reflexões da personagem central,
André, mas também na pouca cristalização de todas
as personagens, a começar pelo próprio protagonista. Sabe-se que
já é velho, e tem sua vida restrita ao quarto. Perdera sua voz,
e a partir daí, passou a comunicar-se apenas pelos gestos, tentando esquecer-se
do uso das palavras, e resignando-se ao silêncio. A comunicação
com seus familiares dá-se de forma fria e distante. Sua mudez, e conseqüente
impossibilidade de expressão, desencadeia a série de reflexões
que constitui a maior parte da narrativa.

As características das demais personagens são definidas apenas
com a intenção de se configurar os elementos coadjuvantes para
a exposição do tema central, a interioridade de André.
Sua esposa, chamada apenas por “mulher”, caracterizada pela frieza
e indiferença, e por uma postura pragmática, não compreende
nem sente o que se passa pelo espírito do marido. Rodolfo, o amigo, representa
características inversas às da esposa. Sua presença provoca
efusões de contentamento em André, trazendo-lhe alívio
e alegria, talvez pela vitalidade ou pela roupa clara de marinheiro que lhe
sugere a liberdade das viagens. Lise, a filha mais velha, apesar dos traços
alongados definidos pelos anos, possui ainda a infância em sua boca e
olhos. Com o olhar pálido e frágil e um ar de mistério,
é a mais bondosa da casa. Trata o pai com carinho, tentando amenizar
sua angustiosa situação. Nos atos dessa filha, André encontra
ternura e alento: “Lise é um anjo”. Mariana, a filha mais nova,
está entre menina e moça, com seu “cinto justo, queixo para
cima, alteando os seios novos”. Tudo para ela gira em torno de sua recém-chegada
adolescência, e sua suposta beleza.

Essas personagens coadjuvantes podem ser classificadas como personagens planas:
ser íntegro e simples, marcada por uma ou poucas características.
Já André, apesar de sua pouca cristalização ou definição,
pode ser classificado como personagem esférica: ser complexo, com vários
traços característicos, e pontos profundos que podem constituir
momentos de mistério e desconhecimento, que podem vir a tornarem-se grandes
revelações. Por outro lado, parte dessa pouca cristalização
ou definição da personalidade das personagens, constitui parte
da coerência interna do conto, limitando ou convencionalizando a caracterização
da personagem de acordo com a proposta do conto, no caso, a impotência
do ser humano, e sua incapacidade de expressar sua interioridade.

A construção da ambientação em Os gestos,
constitui também importante participação na concepção
do conto. Sobretudo no parágrafo inicial, com a descrição
da paisagem que a personagem vê da janela de seu quarto, imagem descrita
dentro do início da primeira cena do conto, ocorrida no inicio da manhã.
Unidade essa que inclusive marca o tempo da história da narrativa: uma
manhã. “Do leito, o velho André via o céu nublar-se,
através da janela, enquanto as folhas da mangueira brilhavam com surda
refulgência, como se absorvessem a escassa luz da manhã. Havia
um segredo naquela paisagem
“. Osman Lins denota nessa passagem o ambiente
básico da vida de André na ocasião: o leito, a janela,
o céu e a mangueira. E demonstra a já aguçada sensibilidade
do protagonista, que percebe detalhes minuciosos daquela singela paisagem. Esse
pode ser considerado o espaço real da narrativa. No decorrer do conto,
há passagem em que o espaço amplia-se, mas no âmbito imaginário:
aos demais cômodos da casa e ao quintal, onde “grandes panos
brancos soprados pelo vento – numa fila interminável de lençóis…
“,
e a lugares amenos, lacustres e marítimos, ligados à sua juventude.

O tempo manifesta-se no conto de forma similar ao da ambientação.
O tempo da história é de uma manhã, mas as incursões
do protagonista por suas reflexões, por seus fluxos de consciência,
remontam a um tempo e espaço psicológicos, tornando essa manhã
um período mais rico e preenchido, o que pode causar ao leitor a impressão
de um tempo decorrido maior que o tempo da história, ou seja, de uma
manhã.

Dentre os demais elementos utilizados usualmente para a análise de narrativas,
o foco narrativo é um dos mais explorados pelo autor no conto. A narração
é feita em 3ª pessoa, por um narrador onisciente seletivo, em razão
do uso da exposição direta ou simultânea da análise
do pensamento de uma personagem central, sem indícios da presença
de um narrador (discurso indireto livre), e da larga utilização
da cena. A utilização deste tipo de narrador possibilitou ao autor
atingir o lirismo encontrado em toda a obra. A análise dos fluxos de
consciência e dos pensamentos da personagem central permitiram a realização
de uma dicção intimista, sensível e verossímil,
e um grande aprofundamento psíquico na construção da personagem.

Por esse foco narrativo – narrador onisciente seletivo, em detrimento
ao onisciente múltiplo seletivo –, tudo o que é transmitido
ao leitor é feito através das sensações, pensamentos
e sentimentos da personagem central. A caracterização das demais
personagens é concebida através do olhar do protagonista, ou seja,
um enfoque parcial.

O conteúdo e o enredo formam também elementos fundamentais para
o conto Os gestos. Osman Lins utilizou neste a mudez – uma impotência
humana frente à rudez da vida, assim como outras incapacidades humanas
são utilizadas nos demais contos da obra: a impossibilidade do amor,
a psicose, a morte etc. –, como elemento desencadeador de novas percepções
e novos sentidos, que possibilitam à personagem vislumbrar novos sentimentos
– em relação à vida e a seus parentes próximos
–, novas imagens e sons, e memórias antes escondidas.

A incapacidade humana explicita-se nos momentos em que André é
incapaz de exprimir-se, como na cena em que contempla a paisagem pela janela
no início da manhã, ou na passagem em que rasga o papel oferecido
pela filha para escrever o que tencionava dizer num momento em que gesticulava
freneticamente, ou na cena em que percebe a transformação da filha
de menina para adolescente. Fatos que levam André a um sentimento de
indignação em relação à sua condição,
ou talvez em relação à condição humana em
geral – a incapacidade de expressão dos sentimentos – concluindo
tristemente: “‘Isso é inexprimível’, pensou.
‘E que não é? Meus gestos de hoje talvez não sejam
menos expressivos que minhas palavras de antes’
“. Osman Lins
deixa claro que a interioridade do ser humano é quase inexprimível.
Pode-se fazer algum esboço, nada mais. Isso em razão da disparidade
da interioridade dos seres humanos. Seria possível essa troca de impressões
somente se houvesse uma grande afinidade entre os seres, como explicitado em
uma passagem de Elegíada, conto da mesma obra: “Isso
eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível
de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não
lhes contarei
“. Ou seja, não é possível expressar
um sentimento interior, mas é possível falar sobre ele, trocar-se
impressões, desde que seja um sentimento comum, presente em ambos os
interlocutores.

Essa impossibilidade de expressão culmina em uma situação
de incompreensibilidade e isolamento entre as personagens, presente em quase
todo o enredo do conto. André é despertado de sua reflexão
descrita no início do conto – fluxo de consciência –
com a chegada de Rodolfo, pessoa por quem André tem afeição,
por sentir nele uma compreensão de sua situação interior,
e por sentir nele características que se afinam com as suas, como sensibilidade,
gosto pela alegria e pela liberdade. Em contrapartida, os amigos são
observados pela esposa, inquieta com a presença da visita, não
percebendo a simpatia entre os dois, nem a alegria do marido. Com a saída
de Rodolfo inicia-se o fato mais central e desencadeador do enredo: a chuva
apanha Rodolfo de surpresa na rua, e André torna-se frenético,
buscando alguma forma de ajudar o amigo, e toca a sineta chamando todos da casa,
que ao chegarem não compreendem suas intenções. André
tem uma reação colérica ante essa incompreensão
dos familiares, e as três mulheres saem do quarto confusas. André
volta à reflexão, e só é despertado com a chegada
de Lise para servir-lhe um lanche. A atitude carinhosa da filha o faz arrepender-se
de sua anterior reação colérica, e angustiar-se por não
poder pedir-lhe desculpas. Mariana entra no quarto, demonstrando suas características
de distância em relação ao pai, egoísmo e vaidade
– “Papai agora virou menino“, “abriu e fechou
as gavetas, sem procurar coisa alguma, escrutando disfarçadamente o espelho
com enlevo
“. As filhas saem do quarto, e André retorna aos
fluxos de consciência e fecha os olhos. Ao abri-los, depara-se com Mariana
em sua frente, de costas para a janela. André inicia a contemplação
do que ele chama de um momento único: “ela cruzava um limite:
quando se afastasse, os últimos gestos da infância estariam mortos
“.

No parágrafo final do conto, André parece querer concluir a lição
que aprendera naquela manhã. Conclui explicitamente que as sensações,
impressões, sentimentos, enfim, a interioridade de cada um, não
é exprimível em palavras, mas talvez em gestos. Talvez os gestos
transmitam mais significado que as palavras. E por isso devam ser guardados,
na memória, no coração, na alma, “Fechou os olhos,
para conservar durante o maior tempo possível aquela visão
“.

Autoria: Paulo Antonio F. Gonçalves, Escritor e Pesquisador
em Ciências Humanas

Posts Relacionados