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Poema em linha reta (Poema), de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

by Lucas Gomes

Fernando Pessoa, por seu heterônimo Álvaro de Campos, no seu Poema em Linha Reta fez uma crítica social de forma irônica porque percebia as mazelas da sociedade de sua época e que hoje são tão atuais.

O eu-lírico se coloca crítico em relação a si próprio e interroga o leitor pedindo respostas. Dessa forma se apresenta por meio de adjetivos pejorativos. Talvez para se sentir melhor com relação á sociedade, uma vez que ele não tinha amigos; apenas conhecidos. Então ele ofendeu a si próprio com esses adjetivos: reles, porco, vil, pessimista, sujo, ridículo, absurdo, grotesco, mesquinho, submisso, arrogante, cômico, errôneo.

Quando ele declara que “tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”. O eu-lírico declara que foge das etiquetas que a sociedade impõe, não dá importância para as convenções sociais que exigem regras das pessoas ditas civilizadas. O poeta ironiza porque os seus conhecidos só contam as vantagens da vida. Portanto, o poema é cheio de ironias a começar pelo título.

Quando o eu-lírico afirma: “Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”, na verdade ele declara-se o único culpado, daí a razão dos termos pejorativos. “Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?”. A sociedade emudece sobre os seus erros e declara as suas virtudes.

A essência do poema é a denúncia sobre as pessoas falsas e hipócritas que jogam a sujeira em baixo do tapete, “levanta sacode a poeira e dá a volta por cima” e seguem na falsidade de uma sociedade com seus dogmas. Não há sofredores, somente vitoriosos. O eu-lírico faz o leitor entender que as afirmações negativas sobre sua personalidade são ditas pela sociedade, e não pelo poeta.

No poema Álvaro de Campos compara-se à maioria para definir-se como diferente. Essa diferença é, sob o ponto de vista da maioria, negativa, mas sob o ponto de vista do próprio autor, extremamente positiva.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada”. A última palavra deste verso causa um impacto sonoro bastante significativo porque o poema em si é um impacto. “Porrada” é um substantivo derivado de “porra”, neologismo que, em língua portuguesa, tem uma dimensão conotativa bastante ampla, podendo significar desde o liquido seminal expelido pelo macho durante o ato sexual (donde “porrada” significa o próprio ato de expelir o esperma), até uma expressão interjetiva de impressões diversas (donde “porrada” significa pancada com porrete); “porrada”, então, é sinônimo de ato violento expelente de sensações subjetivas, tais como prazer, ódio, raiva, rancor, ressentimentos, mágoa, revolta, tristeza, angústia, dor, solidão, alegria, enfim, algo que expele um excesso do conjunto subjetivo que é a própria vida, com seus acontecimentos súbitos, ousados e, às vezes, exagerados e injustos.

Quando o poeta afirma que nunca conheceu quem tivesse levado “porrada”, declara-se vítima desse ato violento cujo sujeito é a própria existência, ao mesmo tempo em que enfatiza o comportamento comedido da maioria que nunca se reconhece objeto da vida, vivendo sempre “em linha reta”.

Para o poeta, a vida não é assim; ao contrário, ela é torta porque feita de vitórias e derrotas, de parasitismo e produtividade, de sujeira e higiene, de impaciência e paciência, enfim, de defeitos e qualidades, de características positivas e negativas que formam pólos opostos. Para ele, a vida é esse antagonismo e, se fôssemos traçá-lo no plano gráfico, não seria em linha reta. Mas o poeta não encontra ninguém que, como ele, admita a existência dessa forma, por isso ele é irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo, ridículo, absurdo, ordinário, desprezível, vil.

Essa vileza própria do poeta perpassa todo o poema através da enumeração de fatos que lhe cercam a figura de um caráter convencionalmente negativo, confrontando-o ao caráter convencionalmente positivo das outras pessoas, consideradas perfeitas. É o confronto do perfeito com o imperfeito.

O poeta critica os tapetes das etiquetas nos quais enrola os pés publicamente, assim como o próprio sistema definidor de etiquetas que o exclui por ser autêntico, verdadeiro e por conceber a vida do jeito que ela é. Esse caráter excludente da sociedade convencional o magoa, por isso a agressividade como um recurso expressivo de mágoa por sentir-se isolado: “irrespondivelmente parasita” / “eu verifico que não tenho par nisto tudo, neste mundo”.

Para Álvaro de Campos o conceito de pecado é um eufemismo em relação ao que ocorre no interior do ser humano. Perceba a gradação crescente de sentido que vai de “pecado” à “infâmia” nos versos:“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia“. O mesmo ocorre em: “Que confessasse não uma violência, mas uma covardia”.

Álvaro de Campos joga com os conceitos vigentes no mundo convencional. Neste mundo, o que se entende por covardia é um tipo de violência. Ele denomina genericamente qualquer tipo de violência, mas é lógico que a violência covarde é bem pior.

O poeta pergunta-se: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”. Preste atenção ao sujeito do verbo (“ser”), representado pelo pronome pessoal de primeira do singular (“eu”), em desacordo com o verbo flexionado em terceira do singular (“é”): “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”. Essa discordância é proposital, através dela o poeta pretende sugerir que ele está distante das idéias expressas nos adjetivos “vil” e “errôneo”. As pessoas pensam e dizem: “Ele é vil e errôneo”. Não é o poeta quem afirma: “Eu sou vil e errôneo”.

A ironia é uma figura de pensamento que perpassa todo o poema, atingindo seu ponto culminante em versos como os da última estrofe: “Poderão as mulheres não os terem amado, / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca! / E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, / Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? / Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, / Vil no sentido mesquinho e infame da vileza“.

Álvaro de Campos pensa com a emoção, uma emoção suscetível à sua própria consciência crítica em relação ao mundo que o cerca, onde as “linhas retas” dos “tapetes das etiquetas” idealizados para manter a eficiência do sistema motiva os “campeões em tudo”, “limpos” em todos os sentidos, chamados a ser “príncipes”, “semideuses”, “ideais”.

Poema na íntegra:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Créditos: Gelza Reis Cristo | Portal Isto é Amazônia

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