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A ceia (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Em A Ceia, de 1958, o leitor é apresentado ao último encontro entre um
casal, Alice e Eduardo. A perspectiva empregada nesse conto é a narração de
focalização externa. Um narrador heterodiegético descreve o cenário, um
restaurante decadente, “modesto e pouco freqüentado” (p. 78), com um “abajur
feito de garrafa” (p. 78) em cada mesa guarnecida por toalhas de “xadrez vermelho
e branco” (p. 78).

Apesar de escolherem a mesa “que parecia a menos favorecida pela iluminação” (p.
78), a mulher apaga o abajur, “com gesto tranqüilo, mas firme” (p. 78). Essa firmeza
demonstra que a mulher quer a escuridão, o que, aparentemente, consegue – o homem que
a acompanha nem consegue enxergar os nomes dos pratos no cardápio. Até este momento,
o narrador não forneceu nenhuma informação sobre as duas personagens – apenas o nome
da mulher, Alice. O leitor não consegue estabelecer qual o tipo de relação entre eles, nem o
estado de espírito em que as personagens se encontram. Aparentemente, buscam um lugar
tranqüilo para jantar e conversar.

Ainda com a utilização da focalização externa, o narrador emprega uma metáfora
para descrever a expressão da personagem feminina: “Seu rosto fanado e branco era uma
máscara delicada emergindo da gola negra do casaco” (p. 78). Nessa mesma frase, existe
também a utilização de adjetivos antitéticos, fanado/delicada, branco/negra, para
caracterizar a expressão da mulher. A presença da metáfora e das antíteses contribui para
dar um toque de beleza à narrativa.

Pelo registro de uma fala de Alice, o leitor começa a receber detalhes sobre as
personagens e o tipo de relação existente entre elas. No diálogo, Alice chama o
homem de “meu bem” (p. 78) e comenta “(…) você ainda não mandou fazer esses
óculos! Faz meses que quebrou o outro e até agora…” (p. 78). O leitor passa,
então, a perceber que existe uma relação afetiva entre as duas personagens, pela
preocupação que a mulher demonstra com o bem-estar do homem, e que elas convivem
(ou conviveram), com uma certa intimidade, o que pode ser deduzido pelo vocativo
empregado e pelo fato de Alice saber que o outro óculos quebrou há meses.

Ainda por meio do diálogo das personagens, que continua a versar sobre a questão
dos óculos, Alice afirma “Mas a vida inteira você usou óculos.” (p. 79), ao que a
personagem masculina responde “Pois é, acho que agora não preciso mais” (p. 79), ao
que Alice retruca “Nem de mim” (p. 79). Com essas três frases, o leitor consegue
inferir que o homem mudou de comportamento em relação ao que tinha no passado,
passado do qual Alice faz parte. A mudança não é só relativa ao uso do óculos, a
própria Alice também não é mais necessária para o homem. O narrador traça um paralelo
entre a mulher e o objeto. Ambos não são mais necessários para o homem (mas, já o
foram, um dia); ambos foram usados por ele, no passado. Além de permitir que o leitor
chegue a essas conclusões, a estratégia empregada pelo narrador, aparentemente,
também pretende despertar a curiosidade no leitor, fazer com que ele queira saber
qual o motivo que desencadeou a mudança.

A seguir uma nova fala de Alice permite que o leitor entenda melhor o que está
acontecendo: as personagens formavam um casal, eles já estão separados, havia
ocorrido uma despedida anterior entre os dois, que fora “horrível” (p. 79) e,
por isso, Alice pedira um novo encontro, “Queria fazer hoje uma despedida mais
digna.” (p. 79. O emprego do advérbio de tempo permite as deduções comentadas
anteriormente.

A focalização externa prossegue sendo empregada pelo narrador, que evidencia os
gestos e expressões das personagens, o que possibilita, ao leitor, supor os
sentimentos que acometem as personagens nos diferentes momentos da narrativa.
Como exemplos, podem ser citados os seguintes trechos: o homem agarra uma folha
seca e a esmigalha entre os dedos, “com uma lentidão premeditada”, para comprovar
para Alice que não está com pressa de ir embora; entretanto, mais adiante, olha
o relógio, denotando a impaciência que sente. O trecho “Ele baixou a cabeça.
Mordiscou o lábio.”, demonstra o arrependimento de Eduardo por ter tocado no
nome da noiva. Nos próximos trechos, percebe-se a irritação da personagem:
“Ele fechou as mãos e bateu com os punhos na mesa, golpeando-a compassadamente.”

Para exprimir os detalhes da história, o narrador utiliza-se dos diálogos travados
pelas próprias personagens.

– Só sei que não tenho culpa, Alice. Já disse mil vezes que não
pretendia romper, mas aconteceu, aconteceu. Não tenho culpa!…
Ela despejou mais vinho no copo. Bebeu de olhos fechados. E ficou
com a borda do copo comprimindo o lábio.
– Mas, ao menos, Eduardo… ao menos você podia ter esperado um
pouco para me substituir, não podia? Não vê que foi depressa demais? Será
que você não vê que foi depressa demais? Não vê que ainda não estou
preparada? Hein, Eduardo?…
(Telles, 1982, p. 82)

Eduardo e Alice permaneceram juntos por mais de quinze anos. Entretanto,
na opinião de Eduardo, a separação era inevitável, a situação que viviam
“era falsa” (p. 82).

Ele agora está prestes a se casar com Olívia, bem mais jovem que Alice.
Durante o encontro, percebe-se que Eduardo está desconfortável. Está ali
a contragosto, para satisfazer um desejo de Alice, mas procura mantê-la
à distância, todo o tempo. Alice, por sua vez, quer manter a relação com
Eduardo. Chama a atenção do rapaz para as modificações externas que fez em
si mesma: o perfume novo, o corte de cabelo diferente. Tenta manter-se sob
controle, mas acaba sendo irônica, chorando, falando alto, torna-se patética
– “…borrei toda a pintura, estou uma palhaça…” (p. 83).

Mais adiante, Eduardo propõe a Alice que andem um pouco pelo restaurante,
enquanto esperam ser servidos. Este artifício empregado pelo narrador, é
um pretexto para descrever o que as personagens veêm, ou seja, um ambiente
em declínio, que estabelece uma analogia com a situação do relacionamento
entre as personagens. A mudança de luminosidade é uma estratégia bastante
empregada para “naturalizar” a descrição. A aproximação/distanciamento de
Alice com o isqueiro serve para valorizar o objeto e está relacionada com o
tipo de focalização, no caso, onisciente – e com o resultado final que o
narrador busca alcançar. O grande problema de Alice é o fato de estar sendo
“trocada” por outra mulher, mais jovem, ela acredita que o problema é a
idade, o fato de estar ficando velha. Por isso, busca a escuridão, foge da
chama do isqueiro, não quer ser observada à luz. A importância simbólica do
isqueiro é novamente evidenciada no final do conto, Eduardo vai embora e
esquece o objeto. O isqueiro, então, simboliza a dura realidade que
Alice terá que enfrentar. A partir desse momento, ela deverá enxergar o
que não quis ver até então.

O clima tenso da narrativa chega ao auge – é o clímax do conto, quando é
descrito o desespero de Alice. Momentos antes, Eduardo chega a sentir pena
da mulher. “Sua fisionomia se confrangeu. Aproximou-se, enlaçou-a num gesto
afetuoso e triste” (p. 85).

Tenta consolar Alice, mas não adianta. Ela volta a ser irônica e, finalmente,
se descontrola:

Ela riu. E atirou-se contra ele, abraçando-o, “Eduardo, eu te amo!”
Beijou-lhe as mãos, a boca, afundou a cara por entre a camisa, procurando
chegar-lhe ao peito, enfiou a mão pela abertura, esfregou a cara no corpo do
homem, sentindo-lhe o cheiro, apalpando-o, a ponta da língua vibrando de
encontro à pele.
– Eu te amo!
– Alice – murmurou ele, levantando a cabeça. Estava impassível, rijo.
Fechou os punhos. – Alice, não dê escândalo, não continue…
Ela rebentou em soluços, escondendo a cara.
– Você me amava, Eduardo, eu sei que você me amava!
(Telles, 1982, p. 85)

O casal volta a sentar-se à mesa do restaurante, tentam estabelecer novamente um
diálogo civilizado. A mulher, no entanto, começa a fazer perguntas sobre a rival. E,
novamente, perde o controle.

– Tão jovem, não, Eduardo?
– Alice, você prometeu.
– E naturalmente vai vestida de noiva, ah, sim, a virgenzinha… Já
dormiu com todos os namorados, mas isso não choca mais ninguém, imagine!
Tem o médico amigo que costura num instante, tem a pílula, morro de inveja
dessa geração. Como as coisas ficaram fáceis!
– Cale-se, Alice.
– Como você já é uns bons anos mais velho, ela mandou costurar,
questão de princípio. E vai chorar na hora, fingindo a dor que está sentindo
mesmo porque às vezes a tal costura…
– Cale-se!
(Telles, 1982, p. 86)

Como uma fera que foi ferida, Alice agora ataca. Tenta atingir a rival com relação à
“pureza” – afinal, a virgindade ainda era um valor a ser considerado quando havia a
intenção de casamento, na época em que o conto foi escrito. Pressupõe que Olívia, de
maneira hipócrita, submeter-se-ia a uma cirurgia de recomposição do hímen e, além disso,
choraria durante o ato sexual com Eduardo, fingindo ser virgem. Ousada a maneira como a
autora aborda, nessas poucas linhas, alguns aspectos da revolução sexual iniciada nos anos
60, e da inveja, e até mesmo de um certo despeito – que o comportamento das mulheres
mais modernas causava nas mais conservadoras.

No momento seguinte, Alice pede a Eduardo que vá embora, quer ficar sozinha, o
que, para o rapaz, é um alívio, “prosseguiu mais rápido, sem olhar para trás” (p. 87). Para
o final do conto, a autora reservou um “golpe de misericórdia” para a personagem Alice,
vindo do garçom do restaurante:

– A madama está se sentindo mal?
Ela abriu os dedos. Rolou na mesa uma bolinha compacta e escura.
– Estou bem, é que tivemos uma discussão.
O garçom recolheu o pão e o vinho. Suspirou.
– Também discuto às vezes com a minha velha, mas depois fico
chateado à beça. Mãe sempre tem razão – murmurou, ajudando-a a levantar-se.
(Telles, 1982, p. 87)

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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