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A noite escura e mais eu, de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

“Ela ficou mas a gota de sangue que pingou na minha luva, a gota de sangue veio comigo”

– assim
começa a coletânea de nove contos, A Noite Escura e Mais Eu, de Lygia Fagundes Telles, na
primeira frase de “Dolly”. E termina, na última frase de “Anão de Jardim”, história que encerra o livro:
“Seja feita a Vossa vontade e (…) então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada
no infinito no infinito deste céu de outubro”
. Como dentro de um parêntese, todo o universo de Lygia
concentra-se entre essas duas frases, o sangue inevitável das dores da condição humana e a talvez
redentora aceitação não só do Divino, mas também da insignificância e humildade que essa condição impõe.
A repetição da palavra “infinito” acentua a idéia de eterno retorno, e a referência ao “céu de outubro”
remete à primavera e ao renascimento de tudo. Ou seja: o sangue pode ser transmutado, alquimicamente, em
luz. Ou pelo menos em ótima literatura.

A Noite Escura e Mais Eu, entre todos os livros de contos de Lygia, talvez seja a sua obra-prima.
Pela unidade, pela densidade, pela extraordinária dignidade que confere à língua portuguesa, mesmo
quando trata de temas ou situações sórdidas, perversas, violentas.

Lygia volta a temas recorrentes de sua obra, como a morte, a solidão, o amor, a velhice, envolvendo-nos
em um mundo riquíssimo em experiências humanas, povoado por anjos e demônios, angústias e alegrias,
medos, ilusões e desilusões. A autora está de volta ao seu leque de perplexidades, e suas personagens,
aqui, são garotinhas, cachorros, anões, que espiam os homens e suas extravagâncias.

Esse universo misterioso das histórias de Lygia pode ser observado e sentido logo no primeiro conto,
“Dolly”, ambientado nos anos 20. A personagem é uma moça na faixa dos vinte anos que queria ser artista
de cinema mudo. O conto é narrado por Adelaide, da mesma idade, mas de personalidade ingênua e
conservadora, com quem Dolly quer dividir a moradia enquanto não alcançava as luzes da ribalta.
Adelaide encontra o cadáver de Dolly violentada depois de uma noite de farra e suja suas luvas de sangue
ficando, aparentemente, apavorada.

Personagens em crise diante da velhice são apresentados no conto “Boa noite, Maria”, que enfoca o amor
de uma mulher de sessenta e cinco anos por um homem de cinqüenta. É um conto sobre um possível direito à
eutanásia, sobre o horror da decomposição e a fuga da morte como aviltamento. A solidão é o pano de
fundo dessa história, a mesma solidão que permeia quase todas as personagens deste livro que, a exemplo
dos anteriores da autora, traz enredos ambíguos que às vezes se aproximam do realismo fantástico.

Em “Anões de jardim”, um dos melhores da coletânea, o narrador é um ser de pedra que tem alma e quer
sobreviver à demolição da casa cujo jardim habita. Fala de uma perseguição à imortalidade, de uma
continuação da vida em qualquer forma, mesmo a mais vil. Neste conto, Lygia Fagundes Telles rompe com a
linearidade do tempo, calça a sua escritura com “botas de nuvens” e revela a vida como um pesadelo
envolvido pela crueldade do homem de todos os tempos a contrastar (fantástico paradoxo!) com a
‘humanidade’ de uma estátua de pedra que pensa e sofre, como testemunha muda e memória dos dramas
vividos em uma casa.

Nos outros contos, a autora desliza em verdadeiros instantâneos das relações humanas, como o da mãe à
beira do túmulo da filha tentando compreender como ela foi capaz de ter como amante uma outra mulher. Ou
a história de Kori, mulher rica e infeliz no casamento, que vai para a cama com o homem que ela sabe que
é apaixonado pelo seu marido.

Lygia aposta no absurdo, mantém seu estilo intimista em suas reflexões sobre as fraquezas humanas nesses
nove contos de mistério e paixão de A noite escura e mais eu, cujo título nasceu de um poema de
Cecília Meirelles: “Ninguém abra a sua porta / pra ver o que aconteceu: / saímos de braço dado / a noite
escura e mais eu.”

As histórias não se esgotam no enredo. Terminadas de ler pela primeira vez, deixam a vontade de reler
uma segunda ou terceira, por suas inúmeras camadas de significados e pela carga de mistério sempre
deixada no ar. Às vezes, todo um conflito revela-se numa frase aparentemente perdida no meio do texto,
num detalhe. Assim é, por exemplo, em “Dolly”; na perfeição de “Você não Acha que Esfriou?” ou na ousadia
do tema lésbico de “Uma Branca Sombra Pálida”.

Títulos como “Você não Acha que Esfriou?” e “Papoulas em Feltro Negro” têm um
adensamento do ceticismo das mulheres maduras e de sua capacidade de reação. Em
“Papoulas em Feltro Negro”, por exemplo, uma professora de piano coloca em dúvida
o passado de criança perseguida que construíra para si ao reencontrar uma mestra
megera, ainda destrutiva, que acusa a ex-aluna de mentirosa e gaga, as falhas
da comunicação tornando ambígua a própria memória, roubando-lhe as certezas, ocultando-as
sob trevas espessas. Na cama fria do amante improvisado, uma mãe de 45 anos ergue-se
para a vingança verbal que derrubará a pose do amigo do marido. Neste conto admiração
e respeito à sensibilidade do outro são confundidos com ódio e desprezo. No final,
a velha professora Elzira evita de todas as maneiras o olhar da ex-aluna.

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