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A queda da casa de Usher, de Edgard Allan Poe

by Lucas Gomes

A queda da casa de Usher

é um conto do escritor inglês
Edgard Allan Poe. Trata-se de uma narrativa pertubadora como todos os contos
do autor. O conto investiga as profundezas escuras do subconsciente e rastreia
os terrores ocultos da alma humana. Nunca antes (e poucas vezes depois) um escritor
capturou tão completamente a melancolia, o tormento e a paixão
corporificada num decadente estado mental.

Toda a narrativa é construída tendo-se em mente o medo e, então,
a forma escolhida foi uma novela fantástica, em que o estranho será
o elemento provocador do efeito. O terror será tanto maior, quanto maior
o espanto causado pelo estranho. Tendo como arcabouço os passos descritos
pelo teórico Poe, verifica-se suas considerações na composição
desta sua novela.

O ambiente, o cenário escolhido se enquadra ao tom da narrativa –
um tom de tristeza e de melancolia. O ambiente tem ser melancólico, frio;
logo, a estação em que se passam os acontecimentos só poderia
ser o outono ou o inverno (a primavera e o verão estão fora de
cogitação). Mas é no outono em que as folhas caem, que
toda a paisagem fica nua, triste. É esse o tempo. O clima é pesado,
as nuvens e os céus, que poderiam inspirar dois amantes, aqui são
sombrios, escuros, opressores. Tem-se, então, um cenário propício
a despertar a tristeza em qualquer indivíduo.

Enfim, todos os fatos, nomes e acontecimentos são meticulosamente pensados
para se obter os resultados desejados, pressupostos para a elaboração
da narrativa – vale relembrar, o efeito de terror e medo causado pelo
estranho, através de um tom de tristeza e melancolia.

O conto é narrado em primeira pessoa por um personagem cujo nome não
é revelado. Narra seus dias na casa do amigo Roderick Usher, que padece
de uma doença; este, sabendo do próprio fim, chama-o para seu
convívio.

A queda da casa de Usher anuncia, de certo modo, no próprio
título, qual será o desfecho da história, ou seja, a destruição
da casa. Observe a seguinte passagem:

Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que
as nuvens pairavam, baixas e opressoras (…) finalmente me encontrei diante
da melancólica Casa de Usher.
(Poe, 1981, p.7).

A estação em que a história se passa – outono –
pode ser compreendida como uma metáfora da queda – palavra exposta
no título do conto – , já que o período outonal é
a época em que as folhas das árvores caem ao chão. Isso
indica, também, uma mudança; porém, no contexto da história,
tal mudança guarda um sentido negativo, pois o outono marca o declínio,
a decadência. E, como se sabe, a casa de Usher passará por várias
mudanças, até chegar ao declínio e à queda total.

É válido notar que, desde o começo, o narrador procura
inserir o leitor numa atmosfera fria e depressiva, marcada por um certo mistério
e por um mal-estar generalizado. Ao observar a casa de Usher do lado externo,
o narrador descreve o que sente:

Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um
aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento
que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime.

(Poe, 1981, p.7).

Vê-se que o narrador já coloca de início que, encontrando-se
em frente à Casa de Usher, ele foi invadido de uma “insuportável
tristeza
” provocada pelas “imagens naturais mais severas
da desolação e do terrível
”. Logo mais, essa
sensação será acentuada: a consciência da superstição
(assim diz Poe) potencializou aquela sensação, o sentimento de
terror. Roderick Usher, o anfitrião do narrador, também revela
seu terror.

Pode-se afirmar que as sensações experimentadas pelo narrador
são preparatórias para algo que irá acontecer mais tarde.
O leitor vai sendo, aos poucos, exposto ao clima reinante e à atmosfera
do conto. São sensações que despertam os sentidos do amigo
visitante de Roderick Usher para algo de estranho e inexplicável, como
se ele já estivesse prevendo que alguma coisa fora do comum iria ocorrer.
Convém ressaltar a seguinte passagem do conto:

(…) a simples casa, a simples paisagem característica da propriedade,
os frios muros, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios, algumas fileiras
de carriços e uns tantos troncos apodrecidos (…)
(Poe, 1981, p.7).

O trecho acima apresenta alguns indícios que levam a pensar na idéia
de morte. Como exemplo, pode-se citar as janelas da casa, que lembram “olhos
vazios”, além dos “troncos apodrecidos”. A expressão
“olhos vazios” pode ser relacionada a olhos mortos, sem vida. Da
mesma forma, aquilo que está “apodrecido” representa algo
que não tem mais utilidade, algo que não serve para mais nada,
pois já se encontra em estado de decomposição, ou que está
estragado. À medida que a história avança, todas essas
indicações começam a fazer sentido. A casa de Usher –
e tudo o que está dentro dela – passa a impressão de estrago,
de decomposição, de perecimento:

O mobiliário geral era excessivo, incômodo, antigo e estragado.
Muitos livros e instrumentos musicais jaziam espalhados em torno, mas não
conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente.
(Poe, 1981, p.11).

A citação acima expressa muito bem as questões relacionadas
à morte. É preciso observar que até mesmo os “muitos
livros e instrumentos musicais” remetem à
morte, uma vez que o narrador afirma que esses objetos “jaziam espalhados
em torno”. A palavra “jazer” guarda, justamente, o sentido
de algo morto, ou que parece estar morto. Sendo assim, todo o décor,
a disposição dos objetos e até mesmo os móveis,
em vez de criar um ambiente aprazível e aconchegante, causam uma reação
contrária, levando o narrador ao incômodo. Tem-se a impressão
de uma ambientação pesada, que produz um grande mal-estar, fazendo
com que o aposento e, por conseguinte, toda a casa, torne-se um local opressivo
e sufocante.

Para reforçar o clima opressor e negativo do qual está se tratando,
convém ressaltar a seguinte passagem, em que o narrador descreve a aparência
de seu amigo, o personagem Roderick Usher:

Tez cadavérica, olhos grandes, transparentes, luminosos sem comparação;
lábios um tanto finos e muito pálidos (…) cabelos que lembravam
a maciez e a suavidade de uma teia de aranha.
(Poe, 1981, p.11-12).

A questão da fragilidade de Usher fica mais evidente quando se lê
o trecho abaixo:

Sofria muito de uma agudeza mórbida dos sentidos: suportava somente
os alimentos mais triviais; não podia usar senão roupas de determinados
tecidos; o aroma de todas as flores o oprimia; a luz, por mais fraca que fosse,
torturava-lhe os olhos – e apenas alguns sons peculiares, os dos instrumentos
de corda, não lhe causavam horror.
(Poe, 1981, p.13).

A partir dessa passagem, é possível afirmar que Roderick Usher
é um personagem em desacordo com o mundo, caracterizado por uma completa
aversão a tudo aquilo que nos remete à vida, como as flores e
a luz. Na verdade, ele parece ter criado um meio próprio e particular
de subsistência, e qualquer alteração em sua rotina causalhe
transtorno e irritação. Usher representa alguém inadaptado
ao mundo que vai além de sua casa; aliás, sua casa é seu
mundo, “estava acorrentado a certas impressões supersticiosas
relativas à mansão em que vivia, de onde, durante muitos anos,
não ousara sair (…
)” (Poe, 1981, p.13).

Um fato interessante presente no conto é a questão do incesto,
que não é revelado de forma direta, mas é sugerido em alguns
pontos. Por exemplo:

(…) à morte e à decomposição evidentemente
próxima (…) de uma irmã ternamente amada, sua única companheira
durante longos anos, e sua última e única parenta sobre a terra.

(Poe, 1981, p.14).

(…) fiquei sabendo que a morta e ele eram gêmeos, e que sempre
existira entre ambos certa simpatia de natureza quase inexplicável.

(Poe, 1981, p.20).

A partir do momento em que se começa a vislumbrar a existência
de uma relação incestuosa entre os dois irmãos, é
possível pensar que essa seja uma das causas que levam R. Usher a tomar
certas atitudes e a demonstrar determinadas reações um tanto estranhas.
O próprio personagem revela algumas de suas apreensôes:

(…) devo morrer desta deplorável loucura. Assim, assim, e não
de outra maneira, é como devo morrer. Aterram-me os acontecimentos futuros,
não por si próprios, mas pelos seus resultados.
(Poe, 1981,
p.13).

(…) sinto que chegará logo o momento em que deverei abandonar,
ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com o horrendo fantasma:
o medo.
(Poe, 1981, p.13).

Ao que parece, R. Usher já previa o que o destino lhe reservava. A
mansão onde ele mora representa um repositório de lembranças,
de fatos passados. A impressão que se tem é de que o medo nutrido
por Usher está ligado justamente a essas reminiscências, aos acontecimentos
pretéritos; medo de que um dia uma verdade dolorosa e traumática
venha à tona, causando maiores estragos. Talvez esse seja o motivo que
o levou a enterrar a irmã viva, porque a presença dela representa
sua própria lembrança, na medida em que os dois compartilhavam
todos os momentos de suas vidas. A esse propósito, o narrador afirma
a respeito de Usher:

(…) eu pensava que seu espírito, incessantemente agitado, se
achava em luta com algum segredo opressor, que ele não tinha coragem
de divulgar.
(Poe, 1981, p.21).

Um desses segredos é o fato de Usher ter enterrado viva sua irmã.
Outro segredo que poderíamos supor é, basicamente, o problema
do incesto. Roderick parece tomado por um sentimento de culpa muito grande,
que o afligia, que trazia o medo de que algum dia sua relação
com sua irmã lhe trouxesse conseqüências desagradáveis.
Ao enterrá-la viva, ele procura eliminar seu próprio objeto de
desejo, além de procurar enterrar as recordações de seu
passado. Porém, o passado pode até ser enterrado, mas nunca apagado.
Em algum momento ele reaparece. Em A queda da casa de Usher, o passado
que tanto incomoda o personagem Roderick está presente não só
na figura da irmã, como em toda a casa, em todos os objetos e espaços.
Após ser enterrada, Lady Madeline, que ainda não morreu, continua
a manifestar-se por meio de ruídos e sons indefinidos, até que
surgiu alta e amortalhada” (p.27):

Durante um momento, permaneceu, trêmula e vacilante, sobre o umbral;
depois, com um grito abafado e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão
e, em sua violenta e, agora, final agonia, o arrastou para o chão já
cadáver, vítima dos terrores que havia previsto.
(Poe, 1981,
p.27).

Finalmente, as conseqüências dos atos anteriores haviam chegado,
e R. Usher estava sendo tragado por seu próprio mundo e por seu próprio
medo. O surgimento de Lady Madeline marca a volta de tudo aquilo que deveria
ficar recôndito, o resgate de todo um passado caracterizado por segredos
perigosos e inconfessáveis. A destruição final da mansão
remete à expiação de todos os erros e pecados mantidos
ocultos durante tanto tempo.

Personagens

As personagens de Poe aparecem de forma doentias, obsessivas, fascinadas pela
morte, vocacionadas para o crime, seres que oscilam entre a lucidez e a loucura,
vivendo numa espécie de transe. As personagens centrais desta trama são:

1. Montresor, o narrador, que vai ao encontro de seu amigo
Roderick Usher.

2. Roderick Usher, vítima de peculiares males físicos
e mentais. Vive com sua irmã Madeline. As características físicas
de Roderick Usher (já citadas) parecem não diferir muito do ambiente
em que ele vive. Sua “tez cadavérica”, os lábios “muito
pálidos” e os cabelos que lembram uma “teia de aranha”
são demonstrações de identificação com a
morte, com a destruição e com a ruína. Assim como o aposento
em que se encontrava o narrador era destituído de vitalidade, o mesmo
ocorre com Usher, que se assemelha a um cadáver, a alguém que
já morreu e continua vagando, apesar dessa afirmação ser
paradoxal. A “teia de aranha”, por sua vez, nos remete a mais de
um sentido. Ela pode ser associada tanto a algo velho, gasto pelo tempo, em
quase estado de abandono (casas muito velhas possuem teias de aranha), quanto
a algo frágil, debilitado, que a qualquer momento pode se romper e quebrar,
já que as teias de aranha são muito finas – essa característica
pode ser aplicada ao estado físico de Roderick Usher e, por extensão,
à sua casa, que mais adiante cai e se desfaz.

3. Madeline, irmã de Roderick, sofre de um tipo raro
de doença com efeitos catalépticos. A próxima passagem
descreve a visão que o narrador teve a respeito dessa personagem:

Enquanto falava, Lady Madeline (…) passou, lentamente, pela parte mais
distante do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a
tomado de profundo assombro, não destituído de terror –
e, no entanto, percebi que me era impossível explicar tais sentimentos.

(Poe, 1981, p.14).

O narrador não dá detalhes ou características físicas
sobre Lady Madeline, mesmo porque ela havia passado “pela parte mais
distante do aposento
”. Além disso, a personagem desaparece
rapidamente, dando a impressão de uma aparição, de um ser
etéreo, de alguém alheio àquilo que o cerca. Mesmo parecendo
tão distante do narrador, a irmã de R. Usher desperta assombro
e terror. Lady Madeline assemelha-se a um fantasma de si mesma.

4. Além deles, a própria casa é também
uma personagem, funcionando como uma ‘entidade’ intimamente ligada
ao destino da família Usher.

Simbologia

A queda da casa de Usher pode ser interpretado como um conto repleto
de metades que se contrapõem, se completam e formam novos significados.

Ao chegar à casa, o narrador sente-se melancólico, pois lembra-se
dos dias de infância passados lá; com o transcorrer do tempo, a
casa lhe traz mais tristeza. A irmã gêmea de Usher (sua única
parente viva) morre e a doença deste se agrava, indicando a dependência
que um tinha do outro.

O narrador, para distrair a si e ao amigo, lê um conto de Ethelred; a
leitura de episódios do conto coincide com uma série de acontecimentos
estranhos que resultam no reaparecimento da irmã morta – que na
verdade sofria de catalepsia e fora enterrada viva – e na queda da casa
de Usher.

Ao chegar à casa, o narrador defronta-se com duas janelas que parecem
olhos vazios, entre as quais destaca-se uma rachadura. Além disso, a
casa fica junto a um pântano, que reflete a arquitetura ameaçadora
do edifício Ele também relata que na história da família
Usher raramente houve ramificações; na maior parte das vezes,
os habitantes da casa descendiam de linhagem direta, sendo que os dois últimos
representantes da família eram os gêmeos Roderick e Madeline, que
passaram a maior parte de suas vidas isolados no interior da residência.

A partir disso, é possível supor que a casa, a “metade
real”, por estar refletida no pântano, que forma a “metade
simbólica”, está fadada a desaparecer, pois o pântano
é justamente um lago morto, em que nada mais cresce – o reflexo
na água é uma espécie de premonição. O pântano
constitui a “metade morta” que se opõe à “metade
viva” da casa, que seria a vegetação dos canteiros, sinônimo
de vitalidade, que, assim como os gêmeos, resiste em terreno hostil.

Pode se dizer também que a rachadura que divide a casa ao meio forma
duas metades complementares, assim como os gêmeos de sexos diferentes
constituem uma unidade. As duas janelas separadas pela rachadura podem simbolizar
os olhos de duas faces similares, como as dos gêmeos, que são muito
próximos um do outro. A casa mostra a relação de dependência
de dois irmãos – cujo vínculo indissolúvel é
necessário à sobrevivência de ambos.

O interior da casa pode simbolizar a mente de Roderick. Dividida em duas partes,
possui tanto um porão escuro – que simboliza os desejos secretos
e o subconsciente de Roderick – quanto uma parte iluminada – representativa
da consciência e da razão do personagem. Essa oposição
fica clara quando Roderick decide enterrar Madeline no porão. Quando
ela estava na parte iluminada da casa, o irmão sentia-se culpado por
ter fantasias incestuosas; ao colocá-la no porão, procura reprimir
um desejo que sabe ser proibido. Porém, como o reprimido busca meios
de vir à tona, Madeline volta para o mundo da consciência –
ou seja, para Roderick.

Há no fim do texto um importante jogo de oposições entre
o conto lido pelo narrador, a “metade fictícia”, e o que
está acontecendo de fato, a “metade da realidade”, que se
misturam e encerram a história de Edgar Allan Poe. Ao terminar a leitura,
o narrador e seu amigo vivem a situação fictícia no plano
da realidade. A ficção tomando conta da realidade é a representação
dos desejos secretos de Roderick que vêm a tona; é sua metade vindo
se juntar a ele.

Madeline cai morta sobre o irmão e este acaba por morrer também.
A casa desaba, engolida pelo pântano, porque, com a irmã gêmea
morta, é como se fosse necessário que uma das metades da residência
desapasse também.

Por fim, pode-se dizer que o narrador representa o mundo exterior à
casa, em oposição a Madeline, que representa seu mundo interior.
Com a interdição de seu desejo por Madeline, ele recorre a esta
válvula de escape que é o mundo exterior.

Em A queda da casa de Usher não só as personagens envolvidas
morrem como a própria casa, cenário dos acontecimentos, desaparece
sem deixar vestígio . Todos estes fatores acentuam o mistério
que envolve os fatos, deixando sempre em dúvida até onde termina
a realidade e começa o fantástico.

Créditos: Eduardo Prado Alabarse, 3º ano de Rádio
e Televisão – Faculdade Cásper Líbero | Fábio Della
Paschoa Rodrigues, Unicamp | José Henrique da Silva Prado, Aluno
do Programa de Pós-Graduação do Mestrado da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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