Home EstudosLivros As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino

As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino

by Lucas Gomes

Em narrativas breves, As cidades invisíveis, de Italo Calvino põe em cena o veneziano Marco Polo
descrevendo para o grande Kublai Khan as inumeráveis cidades que visitou em suas missões diplomáticas
pelo império mongol.

Nesta obra Italo Calvino extrapola os fatos possíveis e imagina um diálogo fantástico entre “o maior
viajante de todos os tempos” e o famoso imperador dos tártaros. Melancólico por não poder ver com os
próprios olhos toda a extensão dos seus domínios, Kublai Khan faz de Marco Polo o seu telescópio, o
instrumento que irá franquear-lhe as maravilhas de seu império. Polo então começa a descrever
minuciosamente 55 cidades por onde teria passado, agrupadas numa série de 11 temas: “as cidades e a
memória”, “as cidades e o céu”, “as cidades e o mortos” etc.

O desejo de Khan é montar o império perfeito a partir dos relatos que ouve. São lugares imaginários,
sempre com nome de mulher Pentesiléia, Cecília, Leônia.

Muralhas. Torres. Bichos rastejantes, peçonhentos, repelentes. Brejos ao lado de cachoeiras. Mundos
ínferos percebidos pelos sentidos. Estátuas de bronze. Cristais. Uma imensa amplitude de territórios
cercados de maravilhas. Cidades imagináveis. Cidades-armadilhas. Sentimentos e desejos contraditórios,
reprimidos e gozados. Anastácia. Entre uma cidade e outra não se fala dos espaços que as separam. Entre
um território e outro os intervalos não são visíveis. Percorre-se continentes, mas o trajeto é
desconhecido, só se sabe da partida e da chegada. Literatura fantástica? Sensações de estranhamento no
leitor perante o fascínio pelas aventuras que essas estranhas cidades oferecem. A excitação de Kubla
Klan perante a narração de Marco Polo impulsiona suas narrativas a fermentarem outras, refluindo as
recordações e dilatando sua imaginação, como nas Mil e uma noites.

Kublai: Não sei quando você encontrou tempo de visitar todos os países que me descreve. A
minha impressão é que você nunca saiu deste jardim.

Pólo: Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente em que reina a mesma
calma que existe aqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido pelo farfalhar das folhas.
”

Ao longo de seu livro As cidades invisíveis, Italo Calvino sugere várias cidades através do
discurso entusiasmado do mercador veneziano Marco Polo. O que se tem delas, de fato, são pistas ou
prenúncios que vão insinuar imagens, formas, palavras, que interagem de maneira diversa para cada um que
as experimenta. Essas cidades passam a ter visibilidade e ganham vida através da imaginação, no momento
em que os leitores, assim como o grande imperador Kublai Khan, a quem Marco conta suas histórias, fazem
livres associações, interpretam os recursos utilizados e preenchem as detalhadas descrições com a sua
própria experiência, seus anseios e expectativas. Assim, para cada cidade citada no texto, formam-se
várias leituras que têm pontos em comum, mas ao mesmo tempo, apresentam características singulares, que
dependem de cada leitor.

O livro abre o lacre de um império sem fim e sem forma, um domínio em ruínas, mas também em constante
construção através de caminhos que se abrem, se bifurcam e nunca se apresentam o mesmo. Diomira,
Isidora. Dorotéia, Zaíra, Anastirma, Isaura, Maurília, Zoé, Zenóbia e tantas outras, são exemplos de
cidades que escapam do controle humano, do olhar aferidor, racional e oferecem surpresas constantes a
todos os sentidos. Suas ruas e vielas nunca podem ser fixadas no papel, sendo comparadas por Marco Pólo
aos “caminhos das andorinhas que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as
asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a pináculo,
sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas.” Para o visitante são
situações efêmeras as quais ele nunca chega a se habituar totalmente, mas não é assim para os moradores;
para estes está tudo inserido dentro de padrões costumeiros, eles seguem o ritmo pacato das cidades,
seus destinos parecem cativos ao seu movimento.

Nem sempre as relações entre os elementos que Marco Polo utiliza para descrever as cidades e dar corpo à
narrativa parecem claras ao leitor. Seu discurso sempre se serve de metáforas, palavras ramificadas que
adentram por labirintos e inserem o leitor num quebra-cabeça. Por isso, a melhor idéia é percorrer as
cidades não fisicamente, mas com o pensamento, pois a travessia não é física, mas interior. Para
conhecer e entender as cidades é necessário manter o espírito em movimento, o olhar sempre novo,
investigador, procurando descortinar o aqui mas também o ali, o outro lado, o atrás, o acolá. Philippe
Daros escreve sobre a o procedimento de escritura de Calvino como sendo uma “estratégia do olhar”. E é
essa estratégia que propicia ao leitor descortinar cada nó proposto, cada mundo microscópico oculto,
necessário aos que buscam a percepção desse mundo que se forma nos interstícios, fora do alcance dos
olhos comuns que só conseguem enxergar a aparência, o que está na superfície das coisas.

Cidades invisíveis e inesgotáveis como Fílide, cujos trajetos são arquitetados entre lugares suspensos
no vazio, verdadeiros fragmentos, são metáforas para se pensar a construção de narrativas hipertextuais
que apresentam diversos pontos de entrada, cujas partes proliferam-se sem que nunca consigamos ter ao
alcance de nossos olhos tudo o que ela contém. Em As cidades invisíveis as narrativas são
agrupadas em blocos: as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os símbolos, as cidades
delgadas, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos, as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as
cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas. Esse agrupamento nos faz pensar que há um fio
condutor entre as narrativas, apesar de que elas são independentes, de poderem ser deslocadas dentro da
obra sem prejuízo da compreensão.

Seu livro se organiza como um tratado de filosofia. Marco Polo, o viajante, o nômade, comenta de forma
inaugural as trilhas percorridas. Uma voz que brame um canto diferente, anunciando um cosmo vário, mas
geralmente despercebido por aqueles que se deixam contagiar somente pelo que o olhar capta. E como as
cidades não encontram seus espelhos no mundo real, elas se desenvolvem segundo uma linha rizomática e
evolucionária, dentro de um contexto utópico. Essas multiplicidades são a própria realidade, e não supõem
nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito.

A percepção que Ítalo Calvino desperta através do simbólico, da descrição construída por Marco Polo é a
dos devires, das diferenças que levam à criação através da imaginação mas também ao pensar. As
descrições não seguem um tratado racional. Como num delírio, a lógica é rompida pelo discurso fantástico
que extrapola a rede de significações e representações dos signos renovando e subvertendo os fatos reais,
abandonando a consciência e explorando o inconsciente, os tempos e espaços livres.

Seus comentários constituem um adeus à imutabilidade, aos conhecimentos do mundo cristalizados e é uma
entrada no domínio da desterritorialização dos sentidos, apontando cidades com formações paradoxais mas
coexistentes. Com isso, torna a narrativa um organismo vivo, que se multiplica, e nessa multiplicação
ela se dilui para se compor novamente diferentemente, mas com o mesmo intuito, a criação de mundos
suplementares, formando uma floresta labiríntica, sem a preocupação de deixar rastros de sua existência.

O que existe de comum entre cidades como Pentesiléia, Cecília, Trude, Leônia? Elas são cidades contínuas,
mas esvaecidas no planalto, escondidas, que podem ser aqui ou lá, do outro lado ou em volta, cujo centro
está em todos os lugares. Nelas você nunca chega, mas sempre está, mesmo sempre seguindo em linha reta,
pois os espaços se misturam estando elas em todos os lugares. Por isso não possuem muralhas que a
protegem ou delimitam seu espaço. Você nunca sabe se está dentro ou fora, se passou por elas sem
perceber. Não tem começo nem fim, você simplesmente está nas malhas da cidade. Para compreendê-las é
necessário deixar-se levar pelo movimento sem querer subjugá-las à ordem normal. As cidades são exemplos
do fluir da vida onde tudo muda incessantemente.

Esse percurso que o leitor segue, pulando de cidade em cidade, encontrando espaços rarefeitos que formam
uma geometria caótica com as imagens que surgem e se impõem diante do seu olhar perfurante, faz parte da
estética literária que trata a obra como uma grande rede, ou ainda como obra aberta e obra em movimento.
Um livro fasciculado em blocos que podem ser atomizados sem prejuízo de sua totalidade. As entradas
podem se dar em qualquer capítulo, pois são histórias fragmentadas, e cada uma apresenta uma realidade
suplementar a si própria e não a outra. Como não há nenhum caminho que conduz às vilas, suas ligações se
fazem ao imaginar, num fluir permanente. O movimento da obra dá-se principalmente com o emprego de
símbolos que indicam esse fluir permanente e contribuem para a imersão nas percepções sensoriais: o céu,
o rio, a chama que arde.

Para participar dessa estética, Calvino não abandona a leitura tida pela cultura ocidental como linear,
nem tampouco insiste na construção de um romance que priorize a quebra das regras fixas. Ele investe no
potencial inventivo e criativo das palavras, explorando mundos atrás de espelhos, construindo universos
alternativos, um modelo mágico cujas visões caleidoscópicas e fugitivas edificam sua arte de contar.
As cidade invisíveis trabalha com mundos imagináveis que apontam, por sua vez através da
meditação, mundos reais; uma estratégia cognitiva do autor na exploração, através das percepções
sensoriais, dos espaços invisíveis.

São histórias que deflagram um pensar incessante, verdadeiros micro-mundos ficcionais inseridos numa
estrutura maior, cuja organização individual é problematizada, numa fortificação perfeita das partes e
do todo. Leônia, por exemplo, num gesto absurdo remove os restos de sua existência todos os dias,
jogando fora coisas para que dêem lugar às novas. Nada fica detido, tudo é substituído incessantemente.
Assim ela refaz a si própria ininterruptamente, sempre vestida do novo, na constância de sua
inconstância. Mas o passado é conservado através do lixo. Este é a sua memória. Existem portanto duas
Leônias: uma que sempre acorda nova e a outra que se veste de seu lixo. Quanto mais Leônia se despe das
suas recordações enterrando o velho mais fortifica a Leônia que se nutre do passado. A memória está
guardada nos objetos que representam no dia seguinte o passado. Uma narrativa que aparece entrelaçada
com outras, parábolas que oferecem passagens labiríticas entre o real e o imaginário, sem que possamos,
como na fita de moebius, distinguir entre o fora e o dentro, o direito e o seu anverso. Essa estratégia
é, segundo Darós, resultado da combinação de um olhar irônico com um olhar mágico que Calvino desfecha à
sua criação.

Dando preferência a figuras como o rébus, Calvino constrói narrativas descritivas de cidades que se
entrelaçam, encadeiam-se não pelos traços comuns que revelam, mas pelos que dissimulam, num processo de
continuidade e descontinuidade. São as cidades ocultas que desdobram-se, que apresentam sua dupla
imagem, desafinam, mostrando muitas vezes o seu contrário, como Berenice. Há uma Berenice injusta e uma
dos justos, oculta e ainda uma outra Berenice que é o resultado da fermentação dos rancores e
rivalidades nascidos da certeza dos cidadãos da segunda Berenice serem justos. É a materialização de
sentimentos onde o mal campeia, um inventário das coisas ruins que existem, invocando a imagem da coisa
dentro da outra, nos mostrando como o todo pode se fragmentar em diversas variantes.

Apesar de estarmos habituados a separar os domínios, essa imagem da coisa dentro da outra se repete em
várias cidades. Algo concretizado no meio de algo móvel e em constante devir nas cidades invisíveis.
Sempre trabalhamos com um duplo conteúdo: a vida e a morte, o lado positivo e negativo, o claro e o
escuro revelando as duas faces da mesma moeda, invocando momentos de plenitude mas paralelamente de
conflito. Esse é o sentido que impregna todas as cidades. Marósia dos bandos de ratos, que num piscar de
olhos, como que por acaso, num murmurar ou num gesto lépido desaparece e dá lugar a uma Marósia
diferente, cristalina, a cidade se transfigura num espaço das andorinhas. Raíssa, cidade infeliz. Mas há
a esperança em perfurar a barreira, encontrar-lhe uma fenda, de modo que a cada segundo a cidade infeliz
contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.

Essas são imagens que se desdobram sugerindo nesse ir e vir como a vida está envolta num imenso paradoxo
e o contrário pode emergir do seu contrário. Sugestão de algo que surge do fundo, pois a natureza tem um
lado repulsivo e misterioso. Como elas trazem no seu bojo tanto o germe da prosperidade como o da
destruição, a contradição se faz presente a todo momento. O narrador Marco Polo instaura um processo de
incertezas, porque tudo é e não é. Assim, tudo é portador de um princípio positivo, mas admitindo-se
sempre a existência de um princípio negativo que pode a qualquer momento aflorar.

Como historietas avulsas a qualquer enredo, elas vão se somando e tecendo paulatinamente um fio que
atravessa todo o romance da primeira a última página: a fluidez de um mundo que se constitui através da
audição, do odor, do paladar e de um olhar que não é o ver, mas o emergir na coisa, o mirar rosiano.
Cada cidade porta uma revelação, mundos utópicos que são somente descortinados quando deitamos nosso
olhar sobre ínfimos detalhes, à cata das ambigüidades. A descrição espacial da cidade envolvida nessa
esfera de ambigüidade é representativa da condição humana, das oscilações pelas quais o homem passa.

Marco Polo prossegue investigando as coisas, explorador das profundidades ocultas nos confins do império
de Kublai Khan. Ele segue fazendo indagações, efetuando revelações, tentando atravessar as aparências,
passando de um labirinto a outro, de uma margem a outra, à descoberta desse outro mundo desmesurado,
compondo e desvelando enigmas. Com a descoberta de cidades móveis, evanescentes e variáveis, inseridas
numa ordem própria, numa ordem recôndita, onde as coisas não têm formato muito definido, Ítalo Calvino
nos inicia numa árdua aprendizagem da utilização de um olhar mágico que mina nossas certezas e nos
encaminha para viagens descontínuas no espaço e no tempo, jornadas livres do controle, desertos
significativos.

Com um estilo arejado e uma grande capacidade de traduzir seus pensamentos e imaginação em composições
breves, concisas, mas densas, ele cria conexões invisíveis e multiplica as imagens sem destituí-las de
seu significado, ao contrário, essa multiplicação opera uma riqueza de significados que deixa sempre
traços na memória do leitor. Ao aventurar-se pela obra de Calvino busca-se perceber as características
de sua escrita, bem como descobrir os fios que constroem seu discurso e fazem que suas invenções
literárias se imponham mais pela sugestão que pela real carga significativa do verbo. Quais são os
valores literários que podemos descortinar nesse seu escrito? Estarão presentes as cinco lições
americanas que ele nos oferece: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade?

Ítalo Calvino mostra como é possível “construir” diferentes cidades (e que no fundo é uma, apenas)
conforme se privilegiem determinados aspectos. Assim, ele “constrói” cidades totalmente diferentes a
partir do olhar que recai sobre o traçado das ruas, as torres, a música, o encanamento, a memória, os
mortos, entre vários outros aspectos.

Percebe-se portanto que a cidade só existe enquanto relação entre os diferentes grupos que interagem
em um dado sistema produtivo. Cada grupo, com seu modo ver o mundo ou com interesses voltados para
aspectos específicos pode construir e reconstruir a cidade criativamente, a partir de elementos
selecionados no amplo leque de opções disponíveis na cultura de uma dada sociedade.

Dentro das chamadas Cidades invisíveis podemos destacar vários aspectos relativos à construção
da memória e sua função cotidiana, que não se restringe a um simples artifício à lembrança ou aspecto
revelado aproximando-se muitas vezes do material – da presença do tempo na vida das pessoas. Se o tempo
é por si mesmo intangível, a memória seria o ponto de conexão e expressão daquele na vida do homem. Ao
pensar então nesse tempo, principalmente o tempo passado, é que surgem as reflexões sobre como se
projetar nele uma realidade determinada, os desejos e as frustrações, pois essas projeções fogem da
realidade, dando a ela um caráter quase ficcional, artifício de memória, inclusive por tocar, em
diversos momentos, aquilo que é irreal.

Ao buscar uma possível percepção sobre a ordem discursiva presente nas relações entre as narrativas
empreendidas por Marco Pólo e Kublai, nota-se a distinção dos lugares que esses personagens ocupam em
relação ao emissor e ao receptor. Para além da mera e explícita apresentação de Marco Pólo como viajante
e Kublai como Imperador dos tártaros, essa relação evidencia uma lógica que, ao fim e ao cabo, nos traz
elementos para problematizar a necessidade de construção de uma memória ou de um forjamento desta.

Com o desenvolver das viagens e das construções dos relatos, Marco Pólo constrói um lugar de destaque em
relação aos outros viajantes, chegando até mesmo a narrar suas experiências em primeira pessoa, ao
relatá-las ao Imperador, demonstrando certa proximidade e intimidade com a figura real.

Kublain Khan olha para seu imenso território e parece não conseguir vê-lo em toda a sua extensão. O
objetivo desses relatórios seria tentar compreender as posses e os limites do Imperador, bem como os
detalhes que não pudessem ser observados no momento das ocupações. A idéia de tempo parece ser projetada
pelo autor, nessas passagens, na medida em que o território é a própria vida de um indivíduo e que suas
acumulações materiais (a conquista em si dessas cidades) transformam-se em fatos, e as acumulações desses
fatos tornam-se posteriormente eventos perdidos no passado. Mas o resgate, o relatório, pretende
objetivamente restabelecer essa ligação, e é a partir de então que a memória é utilizada, ou melhor,
forjada, inicialmente buscando uma imagem fiel daquilo que é o passado.

O erro dessa busca incessante por uma determinada verdade é que faz com que Khan perceba que seu império
é recheado de problemas e falhas, um esfacelo sem fim e sem forma se transformando na própria realidade.
É o desespero causado pelas tentativas ininterruptas de recuperação do passado almejadas pela História,
do ponto de vista do senso comum. As narrativas fantásticas, o olhar detalhista e a percepção mínima dos
eventos também conferem a Marco Pólo o lugar de viajante preferido, o principal relator de eventos. Nesse
momento, o personagem veneziano passa da condição de mero viajante para um possível lugar de arquivista.

Ao final de As cidades invisíveis, Marco Polo discorre sobre as possibilidades da cidade perfeita,
que poderá estar aflorando dispersa, fragmentada em algum lugar, e não como uma realidade pronta e
totalizante. O que importa, diz ele, é procurar essa terra prometida visitada pela imaginação mas ainda
não conhecida ou fundada. Não é possível, contudo, traçar a rota nos mapas para chegar até ela. A reação
de Kublai Khan, o interlocutor do viajante veneziano, frente a essa impossibilidade, é dar a última
palavra, quando ressalta nos seus mapas “as ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições”
e conclui: “É tudo inútil, se o último porto pode ser a cidade infernal, que está no fundo e que nos
suga num vórtice cada vez mais estreito”. O imperador, assim, corrói as esperanças na utopia, quando a
percebe subtraída, enquanto certeza, de seu horizonte de expectativas. À palavra que autoritariamente
decreta e absolutiza, Marco Polo opõe, no entanto, um outro discurso que relativiza e contra-argumenta:
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que está aqui, o inferno no qual vivemos
todos os dias, que formamos estando juntos”. Perfeição e inferno são, assim, termos em tensão, que não
se anulam na visão das cidades contemporâneas. Parece que Italo Calvino aponta, com suas alegorias, para
o esgotamento da cena moderna, para o ultrapassamento dos valores utópicos em que a modernidade se
fundamentava.

As cidades invisíveis de Ítalo Calvino são metáforas das nossas construções mentais e paralelamente, da
incessante busca humana por significados. As cidades são construções feitas a partir da nossa memória
que lhes dá valor e significado. A memória é o pilar dessas construções, edificações e estão
interconectadas e vinculadas em nossos espaços geométricos através de ruas, cantos, esquinas (simbólicas)
da nossa intrínseca mente e do nosso inconsciente, elas são misteriosas e inefáveis. Como poderia então
ser descrita para alguém a cidade de Zaíra? Se ela só adquire significado, ou seja, se ela só toma
forma, a partir daquilo que lhe atribuímos? Através das nossas lembranças, vínculos, identificações.

Posts Relacionados