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As intermitências da morte, de José Saramago

by Lucas Gomes

A obra As intermitências da morte, de José Saramago,
inicia com a seguinte frase: “No dia seguinte ninguém morreu.”
E prossegue a narrativa com a descrição dos fatos que ocorreram
após a morte, ter deixado de prestar os seus serviços à
comunidade local de um determinado país, a partir do primeiro dia do
ano. A morte fica “suspensa”, “parada”, “sem ação”
por sete meses.

A escolha do autor pela temática da morte é que origina todo
o encadeamento da narrativa. Embora esse tema já tenha sido profundamente
explorado por diversos autores, Saramago leva o leitor a refletir o seu aspecto
contrário, isto é, o não morrer. O que a princípio
pode ser visto como a tábua de salvação para todos os males,
o autor revela o outro lado da moeda, isto é, todos os problemas que
ela, a tão temerosa morte causaria, se deixasse de prestar os seus funestos
serviços.

No desenrolar dos diferentes fatos ocorridos no país fictício,
o autor vai revelando que a morte apesar de ter sido acusada de “impiedosa,
cruel, tirana, malvada,
sanguinária, vampira, imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga
do gênero humano, desleal, assassina, traidora, serial killer…”,
ela é, o que poderíamos dizer, um verdadeiro mal necessário.

Para contar essa fantástica história em que, a morte, sem deixar
qualquer tipo de explicação ou aviso, simplesmente não
cumpre mais sua missão de retirar a vida dos seres humanos, o autor praticamente
divide a sua obra em duas partes.

Na primeira parte, o narrador relata os principais acontecimentos
que ocorreram no país fictício, após a morte ter cessado
suas atividades, e todos os desdobramentos que tal fato propiciou. Esta parte
do livro é também uma dança em torno desses dois clichês.
A morte não mata, a morte mata outra vez. Saramago começa por
mostrar como a ausência da morte não significa uma benesse para
os vivos. Significa um inferno para os vivos – um estádio em suspenso
onde as estruturas políticas, sociais ou religiosas entram em colapso.
Saramago vai descrevendo esse colapso com a mesma graciosidade com que escreveu
a alegria efêmera. E quando a morte regressa depois das férias,
enviando cartas às próximas vítimas e informando-as da
hora fatal, o caos regressa também. “Podemos estar todos no corredor
da morte”, afirma Saramago. Mas quando temos a data definitiva de nosso
desaparecimento definitivo, tudo se converte em pó. É então
que o romance entra na segunda parte, ou seja, na sua rota descendente: quando
uma das cartas é devolvida à procedência.

Na segunda parte, quando uma das cartas é devolvida
à procedência, a morte estranha. A morte insiste. A carta volta
a regressar às suas mãos, recusando-se a levar a mensagem. A morte
decide investigar quem é a criatura que não morre. E como? Humanizando-se,
claro. No duplo sentido do termo: tomando forma humana, humanamente feminina.
E partilhando dos mais basilares sentimentos humanos: paixão, compaixão.
E, como nos piores filmes de Hollywod, o amor acontece. Nesta segunda parte
do romance, o autor-narrador vai deixando de lado as questões que dizem
respeito ao restabelecimento da ordem do país, e passa a descrever, personificar
e classificar a tão temida morte.

Em As intermitências da morte, a narrativa é conduzida
por um narrador onisciente relatando toda a problemática instaurada em
um país fictício pelo fato insólito da morte ter cessado
suas atividades.

A ironia das primeiras cem páginas é delirante porque é
pessoal. Quando a morte reaparece em cena para escrever as suas cartas e avisar
que está de volta ao serviço, ela usa uma “sintaxe caótica”,
a “ausência de pontos finais”, uma “virgulação
aos saltinhos” e a “intencional e quase diabólica abolição
da letra maiúscula”. Saramago, evidentemente, não está
a escrever sobre a morte. Está a escrever sobre si próprio: sobre
seus vícios de forma, que tanto incomodam os leitores filistinos.

A natureza impressiva de “As Intermitências da Morte
não está na originalidade do tema. Está no tratamento do
tema e na capacidade, irregular em Saramago, de lidar com dois problemas – melhor:
dois paradoxos morais que fazem parte da nossa mobília mental. Todos
sonhamos com um mundo de eternidade absoluta. Mas, ao mesmo tempo, todos afirmamos,
com patética coragem, que a morte faz parte da vida. São os clichês
com que embalamos nossas mágoas nos funerais das nossas rotinas.

Trecho da obra

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário
às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação
enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de
que não havia notícia nos quarenta volumes da história
universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno
semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte
e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas,
sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal,
um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer
um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões
festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se
desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar
à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado
atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se
a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar
a tesoura por um dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco. Desvairados,
confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os bombeiros extraíam
da amálgama dos destroços míseros corpos humanos que, de
acordo com a lógica matemática das colisões, deveriam estar
mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos ferimentos e dos traumatismos
sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados aos hospitais, ao som
das dilacerantes sereias das ambulâncias. Nenhuma dessas pessoas morreria
no caminho e todas iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos,
Esse pobre diabo não tem remédio possível, nem valia a
pena perder tempo a operá-lo, dizia o cirurgião à enfermeira
enquanto esta lhe ajustava a máscara à cara. Realmente, talvez
não houvesse salvação para o coitado no dia anterior, mas
o que estava claro é que a vítima se recusava a morrer neste.
E o que acontecia aqui, acontecia em todo o país. Até à
meia-noite em ponto do último dia do ano ainda houve gente que aceitou
morrer no mais fiel acatamento às regras, quer as que se reportavam ao
fundo da questão, isto é, acabar-se a vida, quer as que atinham
às múltiplas modalidades de que ele, o referido fundo da questão,
com maior ou menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento
fatal. Um caso sobre todos interessante, obviamente por se tratar de quem se
tratava, foi o da idosíssima e veneranda rainha-mãe. Às
vinte e três horas e cinquenta e nove minutos daquele dia trinta e um
de dezembro ninguém seria tão ingénuo que apostasse um
pau de fósforo queimado pela vida da real senhora. Perdida qualquer esperança,
rendidos os médicos à implacável evidência, a família
real, hierarquicamente disposta ao redor do leito, esperava com resignação
o derradeiro suspiro da matriarca, talvez umas palavrinhas, uma última
sentença edificante com vista à formação moral dos
amados príncipes seus netos, talvez uma bela e arredondada frase dirigida
à sempre ingrata retentiva dos súbditos vindouros. E depois, como
se o tempo tivesse parado, não aconteceu nada. A rainha-mãe nem
melhorou nem piorou, ficou ali como suspensa, baloiçando o frágil
corpo à borda da vida, ameaçando a cada instante cair para o outro
lado, mas atada a este por um ténue fio que a morte, só podia
ser ela, não se sabe por que estranho capricho, continuava a segurar.
Já tínhamos passado ao dia seguinte, e nele, como se informou
logo no princípio deste relato, ninguém iria morrer.

A tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor
de que, desde a entrada do novo ano, mais precisamente desde as zero horas deste
dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de se ter
dado em todo o país um só falecimento que fosse. Poderia pensar-se,
por exemplo, que o boato tivesse tido origem na surpreendente resistência
da rainha-mãe a desistir da pouca vida que ainda lhe restava, mas a verdade
é que a habitual parte médica distribuída pelo gabinete
de imprensa do palácio aos meios de comunicação social
não só assegurava que o estado geral da real enferma havia experimentado
visíveis melhoras durante a noite, como até sugeria, como até
dava a entender, escolhendo cuidadosamente as palavras, a possibilidade de um
completo restabelecimento da importantíssima saúde. Na sua primeira
manifestação o rumor também poderia ter saído com
toda a naturalidade de uma agência de enterros e trasladações,
Pelos vistos ninguém parece estar disposto a morrer no primeiro dia do
ano, ou de um hospital, Aquele tipo da cama vinte e sete não ata nem
desata, ou do porta-voz da polícia de trânsito, É um autêntico
mistério que, tendo havido tantos acidentes na estrada, não haja
ao menos um morto para exemplo. O boato, cuja fonte primigénia nunca
foi descoberta, sem que, por outro lado, à luz do que viria a suceder
depois, isso importasse muito, não tardou a chegar aos jornais, à
rádio e à televisão, e fez espevitar imediatamente as orelhas
a directores, adjuntos e chefes de redacção, pessoas não
só preparadas para farejar à distância os grandes acontecimentos
da história do mundo como treinadas no sentido de os tornar ainda maiores
sempre que tal convenha. Em poucos minutos já estavam na rua dezenas
de repórteres de investigação fazendo perguntas a todo
o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente, ao mesmo tempo que nas fervilhantes
redacções as baterias de telefones se agitavam e vibravam em idênticos
frenesis indagadores. Fizeram-se chamadas para os hospitais, para a cruz vermelha,
para a morgue, para as agências funerárias, para as polícias,
para todas elas, com compreensível exclusão da secreta, mas as
respostas iam dar às mesmas lacónicas palavras, Não há
mortos. Mais sorte teria aquela jovem repórter de televisão a
quem um transeunte, olhando alternadamente para ela e para a câmara, contou
um caso vivido em pessoa e que era a exacta cópia do já citado
episódio da rainha-mãe, Estava justamente a dar a meia-noite,
disse ele, quando o meu avô, que parecia mesmo a ponto de finar-se, abriu
de repente os olhos antes que soasse a última badalada no relógio
da torre, como se se tivesse arrependido do passo que ia dar, e não morreu.
A repórter ficou a tal ponto excitada com o que tinha acabado de ouvir
que, sem atender a protestos nem súplicas, Ó minha senhora, por
favor, não posso, tenho de ir à farmácia, o avô está
lá à espera do remédio, empurrou o homem para dentro do
carro da reportagem, Venha, venha comigo, o seu avô já não
precisa de remédios, gritou, e logo mandou arrancar para o estúdio
da televisão, onde nesse preciso momento tudo estava a preparar-se para
um debate entre três especialistas em fenómenos paranormais, a
saber, dois bruxos conceituados e uma famosa vidente, convocados a toda a pressa
para analisarem e darem a sua opinião sobre o que já começava
a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte.
A confiada repórter laborava no mais grave dos enganos, porquanto havia
interpretado as palavras da sua fonte informativa como significando que o moribundo,
em sentido literal, se tinha arrependido do passo que estava prestes a dar,
isto é, morrer, defuntar, esticar o pernil, e portanto resolvera fazer
marcha atrás. Ora, as palavras que o feliz neto havia efectivamente pronunciado,
Como se se tivesse arrependido, eram radicalmente diferentes de um peremptório
Arrependeu-se. Umas quantas luzes de sintaxe elementar e uma maior familiaridade
com as elásticas subtilezas dos tempos verbais teriam evitado o quiproquó
e a consequente descompostura que a pobre moça, rubra de vergonha e humilhação,
teve de suportar do seu chefe directo. Mal podiam imaginar, porém, ele
e ela, que a tal frase, repetida em directo pelo entrevistado e novamente escutada
em gravação no telejornal da noite, iria ser compreendida da mesma
equivocada maneira por milhões de pessoas, o que virá a ter como
desconcertante consequência, num futuro muito próximo, a criação
de um movimento de cidadãos firmemente convencidos de que pela simples
acção da vontade será possível vencer a morte e
que, por conseguinte, o imerecido desaparecimento de tanta gente no passado
só se tinha devido a uma censurável debilidade de volição
das gerações anteriores. Mas as cousas não ficarão
por aqui. Uma vez que as pessoas, sem que para tal tenham de cometer qualquer
esforço perceptível, irão continuar a não morrer,
um outro movimento popular de massas, dotado de uma visão prospectiva
mais ambiciosa, proclamará que o maior sonho da humanidade desde o princípio
dos tempos, isto é, o gozo feliz de uma vida eterna cá na terra,
se havia tornado em um bem para todos, como o sol que nasce todos os dias e
o ar que respiramos. Apesar de disputarem, por assim dizer, o mesmo eleitorado,
houve um ponto em que os dois movimentos souberam pôr-se de acordo, e
foi terem nomeado para a presidência honorária, dada a sua eminente
qualidade de precursor, o corajoso veterano que, no instante supremo, havia
desafiado e derrotado a morte. Tanto quanto se sabe, não virá
a ser atribuída particular importância ao facto de o avôzinho
se encontrar em estado de coma profundo e, segundo todos os indícios,
irreversível.

Embora a palavra crise não seja certamente a mais apropriada para
caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar, porquanto
seria absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais ordinária
falar-se de crise numa situação existencial justamente privilegiada
pela ausência da morte, compreende-se que alguns cidadãos, zelosos
do seu direito a uma informação veraz, andem a perguntar-se a
si mesmos, e uns aos outros, que diabo se passa com o governo, que até
agora não deu o menor sinal de vida. É certo que o ministro da
saúde, interpelado à passagem no breve intervalo entre duas reuniões,
havia explicado aos jornalistas que, tendo em consideração a falta
de elementos suficientes de juízo, qualquer declaração
oficial seria forçosamente prematura, Estamos a coligir as informações
que nos chegam de todo o país, acrescentou, e realmente em nenhuma delas
há menção de falecimentos, mas é fácil imaginar
que, colhidos de surpresa como toda a gente, ainda não estejamos preparados
para enunciar uma primeira ideia sobre as origens do fenómeno e sobre
as suas implicações, tanto as imediatas como as futuras. Poderia
ter-se deixado ficar por aqui, o que, levando em conta as dificuldades da situação,
já seria motivo para agradecer, mas o conhecido impulso de recomendar
tranquilidade às pessoas a propósito de tudo e de nada, de as
manter sossegadas no redil seja como for, esse tropismo que nos políticos,
em particular se são governo, se tornou numa segunda natureza, para não
dizer automatismo, movimento mecânico, levou-o a rematar a conversa da
pior maneira, Como responsável pela pasta da saúde, asseguro a
todos quantos me escutam que não existe qualquer motivo para alarme,
Se bem entendi o que acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não
queria parecer demasiado irónico, na opinião do senhor ministro
não é alarmante o facto de ninguém estar a morrer, Exacto,
embora por outras palavras, foi isso mesmo o que eu disse, Senhor ministro,
permita-me que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a ninguém
lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante, É natural,
o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes
se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo, Isto é, quando
saem da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora que não se
encontra quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos
vem pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos,
é bastante paradoxal, Foi a força do hábito, reconheço
que o termo alarme não deveria ter sido chamado a este caso, Que outra
palavra usaria então o senhor ministro, faço a pergunta porque,
como jornalista consciente das minhas obrigações que me prezo
de ser, me preocupa empregar o termo exacto sempre que possível. Ligeiramente
enfadado com a insistência, o ministro respondeu secamente, Não
uma, mas quatro, Quais, senhor ministro, Não alimentemos falsas esperanças.
Teria sido, sem dúvida, uma boa e honesta manchete para o jornal do dia
seguinte, mas o director, após consultar com o seu redactor-chefe, considerou
desaconselhável, também do ponto de vista empresarial, lançar
esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe o mesmo
de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse.

No comunicado oficial, finalmente difundido já a noite ia adiantada,
o chefe do governo ratificava que não se haviam registado quaisquer defunções
em todo o país desde o início do novo ano, pedia comedimento e
sentido de responsabilidade nas avaliações e interpretações
que do estranho facto viessem a ser elaboradas, lembrava que não deveria
excluir-se a hipótese de se tratar de uma casualidade fortuita, de uma
alteração cósmica meramente acidental e sem continuidade,
de uma conjunção excepcional de coincidências intrusas na
equação espaço-tempo, mas que, pelo sim, pelo não,
já se haviam iniciado contactos exploratórios com os organismos
internacionais competentes em ordem a habilitar o governo a uma acção
que seria tanto mais eficaz quanto mais concertada pudesse ser. Enunciadas estas
vaguidades pseudocientíficas, destinadas, também elas, a tranquilizar,
pelo incompreensível, o alvoroço que reinava no país, o
primeiro-ministro terminava afirmando que o governo se encontrava preparado
para todas as eventualidades humanamente imagináveis, decidido a enfrentar
com coragem e com o indispensável apoio da população os
complexos problemas sociais, económicos, políticos e morais que
a extinção definitiva da morte inevitavelmente suscitaria, no
caso, que tudo parece indicar como previsível, de se vir a confirmar.
Aceitaremos o repto da imortalidade do corpo, exclamou em tom arrebatado, se
essa for a vontade de deus, a quem para todo o sempre agradeceremos, com as
nossas orações, haver escolhido o bom povo deste país para
seu instrumento. Significa isto, pensou o chefe do governo ao terminar a leitura,
que estamos metidos até aos gorgomilos numa camisa-de-onze-varas. Não
podia ele imaginar até que ponto o colarinho lhe iria apertar. Ainda
meia hora não tinha passado quando, já no automóvel oficial
que o levava a casa, recebeu uma chamada do cardeal, Boas noites, senhor primeiro-ministro,
Boas noites, eminência, Telefono-lhe para lhe dizer que me sinto profundamente
chocado, Também eu, eminência, a situação é
muito grave, a mais grave de quantas o país teve de viver até
hoje, Não se trata disso, De que se trata então, eminência,
É a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração
que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado
daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de
abóbada da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo
não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor
primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição,
e sem ressurreição não há igreja, Ó diabo,
Não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor, Estava calado, eminência,
provavelmente terá sido alguma interferência causada pela electricidade
atmosférica, pela estática, ou mesmo um problema de cobertura,
o satélite às vezes falha, dizia vossa eminência que, Dizia
o que qualquer católico, e o senhor não é uma excepção,
tem obrigação de saber, que sem ressurreição não
há igreja, além disso, como lhe veio à cabeça que
deus poderá querer o seu próprio fim, afirmá-lo é
uma ideia absolutamente sacrílega, talvez a pior das blasfémias,
Eminência, eu não disse que deus queria o seu próprio fim,
De facto, por essas exactas palavras, não, mas admitiu a possibilidade
de que a imortalidade do corpo resultasse da vontade de deus, não será
preciso ser-se doutorado em lógica transcendental para perceber que quem
diz uma cousa, diz a outra, Eminência, por favor, creia-me, foi uma simples
frase de efeito destinada a impressionar, um remate de discurso, nada mais,
bem sabe que a política tem destas necessidades, Também a igreja
as tem, senhor primeiro-ministro, mas nós ponderamos muito antes de abrir
a boca, não falamos por falar, calculamos os efeitos à distância,
a nossa especialidade, se quer que lhe dê uma imagem para compreender
melhor, é a balística, Estou desolado, eminência, No seu
lugar também o estaria. Como se estivesse a avaliar o tempo que a granada
levaria a cair, o cardeal fez uma pausa, depois, em tom mais suave, mais cordial,
continuou, Gostaria de saber se o senhor primeiro-ministro levou a declaração
ao conhecimento de sua majestade antes de a ler aos meios de comunicação
social, Naturalmente, eminência, tratando-se de um assunto de tanto melindre,
E que disse o rei, se não é segredo de estado, Pareceu-lhe bem,
Fez algum comentário ao terminar, Estupendo, Estupendo, quê, Foi
o que sua majestade me disse, estupendo, Quer dizer que também blasfemou,
Não sou competente para formular juízos dessa natureza, eminência,
viver com os meus próprios erros já me dá trabalho suficiente,
Terei de falar ao rei, recordar-lhe que, em uma situação como
esta, tão confusa, tão delicada, só a observância
fiel e sem desfalecimento das provadas doutrinas da nossa santa madre igreja
poderá salvar o país do pavoroso caos que nos vai cair em cima,
Vossa eminência decidirá, está no seu papel, Perguntarei
a sua majestade que prefere, se ver a rainha-mãe para sempre agonizante,
prostrada num leito de que não voltará a levantar-se, com o imundo
corpo a reter-lhe indignamente a alma, ou vê-la, por morrer, triunfadora
da morte, na glória eterna e resplandecente dos céus, Ninguém
hesitaria na resposta, Sim, mas, ao contrário do que se julga, não
são tanto as respostas que me importam, senhor primeiro-ministro, mas
as perguntas, obviamente refiro-me às nossas, observe como elas costumam
ter, ao mesmo tempo, um objectivo à vista e uma intenção
que vai escondida atrás, se as fazemos não é apenas para
que nos respondam o que nesse momento necessitamos que os interpelados escutem
da sua própria boca, é também para que se vá preparando
o caminho às futuras respostas, Mais ou menos como na política,
eminência, Assim é, mas a vantagem da igreja é que, embora
às vezes o não pareça, ao gerir o que está no alto,
governa o que está em baixo. Houve uma nova pausa, que o primeiro-ministro
interrompeu, Estou quase a chegar a casa, eminência, mas, se me dá
licença, ainda gostaria de lhe pôr uma breve questão, Diga,
Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca mais
é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-ministro,
Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a pergunta,
que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, O estado tentará
sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a conseguir, mas a igreja,
A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas
eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade
as contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito
outra cousa que contradizer a realidade, e aqui estamos, Que irá dizer
o papa, Se eu o fosse, perdoe-me deus a estulta vaidade de pensar-me tal, mandaria
pôr imediatamente em circulação uma nova tese, a da morte
adiada, Sem mais explicações, À igreja nunca se lhe pediu
que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da
balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso,
Boas noites, eminência, até amanhã, Se deus quiser, senhor
primeiro-ministro, sempre se deus quiser, Tal como estão as cousas neste
momento, não parece que ele o possa evitar, Não se esqueça,
senhor primeiro-ministro, de que fora das fronteiras do nosso país se
continua a morrer com toda a normalidade, e isso é um bom sinal, Questão
de ponto de vista, eminência, talvez lá de fora nos estejam a olhar
como um oásis, um jardim, um novo paraíso, Ou um inferno, se forem
inteligentes, Boas noites, eminência, desejo-lhe um sono tranquilo e reparador,
Boas noites, senhor primeiro-ministro, se a morte resolver regressar esta noite,
espero que não se lembre de o ir escolher a si, Se a justiça neste
mundo não é uma palavra vã, a rainha-mãe deverá
ir primeiro que eu, Prometo que não o denunciarei amanhã ao rei,
Quanto lhe agradeço, eminência, Boas noites, Boas noites.

Eram três horas da madrugada quando o cardeal teve de ser levado
a correr ao hospital com um ataque de apendicite aguda que obrigou a uma imediata
intervenção cirúrgica. Antes de ser sugado pelo túnel
da anestesia, naquele instante veloz que precede a perda total da consciência,
pensou o que tantos outros têm pensado, que poderia vir a morrer durante
a operação, depois lembrou-se de que tal já não
era possível, e, finalmente, num último lampejo de lucidez, ainda
lhe passou pela mente a ideia de que se, apesar de tudo, morresse mesmo, isso
significaria que teria, paradoxalmente, vencido a morte. Arrebatado por uma
irresistível ânsia sacrificial ia implorar a deus que o matasse,
mas já não foi a tempo de pôr as palavras na sua ordem.
A anestesia poupou-o ao supremo sacrilégio de querer transferir os poderes
da morte para um deus mais geralmente conhecido como dador da vida.

Créditos: Nilza Yolanda Ruiz Leite Ribeiro – Unimep | João
Pereira Coutinho
, colunista da Folha de S. Paulo

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