Home EstudosLivros Brejo das Almas, de Carlos Drummond de Andrade

Brejo das Almas, de Carlos Drummond de Andrade

by Lucas Gomes

Brejo das almas

, de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado em 1934
e foi muitas vezes considerado pela crítica um livro à sombra
do restante da aclamada obra desse autor. Contudo, hoje este livro é
de fundamental importância para que se possa acompanhar o desenvolvimento
da obra drummondiana. A obra situa-se entre dois grandes livros do poeta Alguma
Poesia
, seu livro de estréia, e Sentimento
do Mundo
, uma de suas obras mais festejadas.

Nele não há o “compromisso programático” explícito
com o Modernismo, como em Alguma Poesia. Desaparecem os poemas-piadas,
a necessidade de escandalizar. Parece ter havido maior preocupação
na seleção dos textos. Tem-se um Drummond surrealista (no poema
Registro Civil e suas imagens incômodas); o poeta que é
anti-lírico e amargo ao falar do Amor (Boca, Não
se mate
, Necrológio dos desiludidos do amor); germina aqui
também certa percepção “política” que
seria marcante em livros ulteriores (por exemplo, no poema Hino Nacional,
com seu famoso último verso: “Nenhum Brasil existe. E acaso
existirão os brasileiros?
“)

Um dos conflitos presentes em toda obra de Drummond fica muito evidente em
Brejo das Almas: o Eu x Mundo. O conflito entre província e
metrópole, sendo a província, Minas Gerais, e a metrópole,
o Rio de Janeiro. O poeta usa Minas Gerais para enaltecer o mundo, canta as
Minas Gerais, em contraponto ao gauchismo do Rio, onde Drummond se sentia desarticulado
diante do mundo.

Mas o livro vale sobretudo por Convite triste, Segredo
que tematizam o desencanto e a inadaptação ao mundo e a vida pelas
“almas sensíveis” – e Girassol, jóia de rara
perfeição.

O “Convite triste” é, ironicamente, uma apologia
do festivo. Funda-se sobretudo num ideal de embriaguez que se projeta para uma
destruição completa do sujeito, havendo com isso uma necessidade
de intoxicação do corpo pelo excesso, até chegar a um estado
de alienação ou de autodestruição temporária,
dado à consciência finita da condição humana:

“beber, gritar e morrer,
ou quem sabe? beber apenas
(…)
depois vomitar e cair
e dormir.”

Diante da impossibilidade de transcendência, eleva-se aquilo que há
de mais humano no sujeito – o corpo – chegando a um quase estado
de exaustão, de esgotamento do físico.

Na exaltação do humano, o corpo que paradoxalmente é fundamental
na construção dessa subjetividade antiépica, é ao
mesmo tempo impulsionado a uma total destruição, sendo até
mesmo negado. Negação que se dá, não somente tendo
o corpo como objeto de desejo, mas o próprio corpo, em si desejoso, tornado
abjeto:

“Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.”

O caminho para representar essa crise se vê refletido na própria
linguagem que articula o discurso niilista. A estrutura anafórica do
poema colabora com o encharcamento deste sentido, dando a impressão de
um transbordamento textual na poética do excesso que se vai constituindo.
A repetição promove um inchamento da linguagem até o ponto
em que ela se vê inflacionada, saturada, de tal forma que corpo físico
e corpo textual confluem numa mesma realidade, retratando a experiência
do sujeito.

Nos versos finais do poema, a aguda consciência da crise parece projetar
para um beco sem saída do qual não se pode escapar nem mesmo com
a morte individual, pois diante de tal escolha, subsistiriam os demais humanos
e o aparente tormento da realidade. Constatado isto, o sujeito parece aceitar
a condição, restando-lhe apenas intoxicar-se até os limites:
até o vômito, depuração do corpo; até o sono,
suspensão temporária possível; até a vez seguinte:
ironicamente, até a “Aurora”:

O poeta ia bêbedo no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbedas.
[…] Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
Com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai, meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento
.

Aurora” coincide na sua temática com as questões
levantadas na análise do poema anterior: nos versos iniciais o amanhecer
que normalmente projeta o princípio da vida, revela, paradoxalmente,
o princípio do fim, isto é, da morte. Curiosamente, o estado de
embriaguez, de inconsciência do sujeito, é equacionado com a inocência
da criança, fazendo de ambos os únicos capazes de perceber o presente
apocalíptico do mundo:

“Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar (apenas uma criança percebeu
mas ficou calada).”

O estado de inconsciência desses dois sujeitos favorece a consciência
da realidade, da existência e do seu fim trágico. A identificação
do poeta com a criança – símbolo da sapiência inocente
– serve ao mesmo tempo para distanciá-lo do mundo dos adultos,
privilegiado ainda mais por seu estado de intoxicação. Ao fazer
isto, o sujeito lírico nega todo o presente utilitário, o qual
seria o próprio vir-a-ser dessa criança. Assim, qualquer ato utilitário
da existência se vê esvaziado,
numa gratuidade do cotidiano:

“Últimos pensamentos! últimos telegramas! José,
que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.”

Porém, a condição de poeta permite ao sujeito lírico
entrever uma saída possível para esse fim trágico:

“O poeta está bêbedo, mas
escuta um apelo na aurora.”

Como se a tragicidade estivesse presente na natureza humana mais que na natureza
em si, o poeta vislumbra na invocação da aurora um novo sentido
da existência, recuperando com isso o significado primeiro do amanhecer
como positividade. Equaciona-se com isto a natureza com o sentido lúdico
da natureza humana presente na dança, na celebração festiva
do corpo. A voz oracular da aurora, presente no uso da segunda pessoa do plural
(vós) – “dançai, meus irmãos! / Embora sem
música / dançai, meus irmãos!” – passa a prometer
um ideal de transcendência capaz de superar o terreno.

No poema “Aurora”, o sujeito lírico embora consciente
da precariedade evita a atitude niilista advinda do futuro trágico ao
fazer uma apologia festiva da existência. Aqui, como em alguns poemas
da obra anterior, o dramatismo da existência é minimizado. Se anteriormente
existia certa gratuidade no riso irônico do sujeito lírico, ou
ele estava marcado por um ceticismo advindo da inconseqüência do
trágico, aqui o que se observa é a exaltação, quiçá
irônica, da existência presente. A partir da inutilidade do presente,
nega-se a utilidade do corpo enquanto ação pessoalizada, desfazendo-se
assim numa sublimação dele, para com isso propor uma libertação
da cotidianidade útil do corpo.

O sentido apocalíptico se desfaz numa espécie de delírio
carnavalizado, sublimando-se nas positividades do corpo, naquilo que de lúdico
e festivo a existência
apresenta: a dança, o nascimento dos filhos (metonimicamente, o desejo
sexual), o amor e os produtos comerciais. Seria dizer, de uma economia da reprodução.
Cabe notar aqui que a promessa desse porvenir da aurora nada mais é que
uma visão ironizada da modernidade, no que diz respeito à produção
industrial
capitalista.

O que se encontra acentuado é a gratuidade da produção,
do seu sentido de acumulação. Ao excesso de produção
equacionam-se os sentimentos (desejo/amor) como parte da produção
de massa da sociedade moderna, materialista em si, porém rica em promover
e sujeitar o indivíduo a uma pluralidade de desejos.

Assim, mesmo que a aurora pareça projetar o tempo futuro, paradoxalmente
o tempo que se projeta é o tempo presente, de tal forma que qualquer
transcendência seria mera contigência do instante presente do corpo.
Ironicamente, “a salvação possível” estaria
por advir desses “presentes” possibilitados pela modernização.

O futuro trágico como decadência do corpo é reconfigurado
em nome de um cantar da plenitude do corpo presente, no qual a morte enquanto
fim ou negatividade seria uma mera sacramentalização do corpo
moderno.

Outro poema evocativo do pessimismo e do tom dionisíaco em Brejo
das Almas
que merece consideração é “Um
Homem e o seu Carnaval
”:

Deus me abandonou
no meio de uma orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca,
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
[…]

O verso inicial remete-nos de imediato a certo sujeito agônico presente
no “Poema de Sete Faces”, de Alguma poesia (“Meu
Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias
que eu era fraco
.”) No entanto, se em Alguma poesia o sujeito
lírico oscilava entre o desejo de transcedência e reconhecimento
da condição precária do sujeito, aqui o dilema resolve-se
na carnavalização do divino, numa maior aceitação
e conseqüente exarcebação do elemento humano. Persiste ainda
a presença excessiva do sujeito, sobretudo na individualização
da experiência coletiva do carnaval para o entendimento da subjetividade
lírica. Ironicamente, o abandono individual é projetado num espaço
da coletividade, da orgia, no qual o sujeito desaparece na multidão dos
corpos. A experiência do sujeito se constitui no nível do delírio.
A sua consciência se articula a partir de um total apagamento de si enquanto
presença física individual, a ponto de restar apenas uma sensação
do corpo e da própria realidade.

Nesse ambiente, o processo de degeneração do sujeito se intensifica
e se vê refletido na própria destruição do corpo,
desde o físico até os limites da linguagem que o mesmo articula.
O anseio é o da destruição total e absoluta do ser. O indivíduo
desaparece enquanto sujeito físico, projetando-se para uma completa decadência
do corpo, assumindo um aspecto cadavérico, como sugere o adjetivo “lívido”.
Por outro lado, a linguagem vai se caracterizando pela perda da voz, pela impossiblidade
de comunicação ou de articulação discursiva: “Estou
lívido, gago.”

No entanto, o elemento trágico se minimiza diante do aspecto delirante
do poema. O sentimento de angústia se reduz na própria aceitação
do abandono divino ou mesmo na constatação da impossibilidade
de realização do desejo físico, projetado na figuração
metonímica do corpo feminino:

“Eternas namoradas
riem de mim demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.”

Ainda que esteja presente a destruição gradativa do sujeito,
não há tragicidade na morte. A morte é equacionada com
a experiência carnavalesca, lúdica e gozosa, colaborando o próprio
corpo textual na figuração desta realidade de sonhos, de puro
fluir da subjetividade, como é verificado na ruptura da linearidade da
linguagem, na ausência de pontuação, na repetição
dos vocábulos – nas “palavras em liberdade” que nos
remetem às estéticas de vanguarda surrealista e futurista. Na
última estrofe, por exemplo, o delírio do corpo físico
se converte no delírio do próprio corpo textual:

“Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éte
grandes abraços largos espaços
eternamente.”

Como já foi visto na análise dos poemas anteriores, o corpo funciona
como parâmetro fundamental na constituição da subjetividade
no entendimento da relação desse sujeito com a modernidade, sobretudo
diante da constatação da sua impossibilidade de transcendência.
No grupo de poemas a seguir, vê-se como o corpo como desejo físico
ganha extremada relevância numa espécie de “brejeirização
da alma.” Na apologia do amor brejeiro, impudico, o que se observa, a
partir de agora, é uma acentuação do elemento humano do
sujeito no que diz respeito ao desejo sexual. A temática que organiza
esse grupo de poemas gira em torno a uma apologia do corpo desejoso como forma
constitutiva da subjetividade, convertendo-o numa potencialidade, como já
vinha sendo vislumbrado no processo de intoxicação do corpo, discutido
anteriormente. Contudo, se por um lado a subjetividade, no que se refere à
saturação do humano, se constitui como reflexo do
Desencantamento do Mundo, ao mesmo tempo ela se articula também como
suposta reação à própria modernidade enquanto projeto
de racionalização, sobretudo quando essa positividade se vê
constituída a partir do desejo como mola propulsora da individualidade,
como se nota nos poemas “O Passarinho
Dela
,” “O Vôo Sobre as Igrejas,” “Canção
Para Ninar Mulher
,” no “Desdobramento de Adagilsa,”
entre outros.

Observa-se que a posição do sujeito drummondiano com a modernidade
é uma posição ambígua. Se por um lado se reconhece
a Morte de Deus, por outro lado, a exaltação extremada do elemento
humano enquanto sujeito desejoso mina o próprio ideal racionalizador
quando se tem em mente certa tradição do pensamento moderno ocidental
que busca definir a superioridade da razão sobre o desejo como forma
necessária para disciplinar o sujeito.

A ambiguidade do sujeito drummondiano nasce exatamente a partir do momento
em que se propõe o corpo desejoso como parte constitutiva da subjetividade
e não como uma ameaça a ela.

Drummond estaria, por assim dizer, contrapondo ao discurso da modernidade
de controle do desejo uma proposta de liberação do sujeito desejante
como potencial.

Assim vista, a atitude escolhida pelo sujeito constitui em si uma transgressão
da ordem instituída, situando, ou distanciando o sujeito num espaço
crítico dessa
mesma realidade na qual ele se acha inserido, como revela o poema “Em
Face dos Últimos Acontecimentos
” (“Oh! sejamos pornográficos”).

Nesta reflexão, pode-se dizer que a apologia do desejo é a espinha
dorsal da subjetividade lírica deste grupo de poemas de Brejo das
Almas
. O tema sexual, de certo modo já insinuado nos poemas de tom
niilista analisados anteriormente, aqui ganha acentuada relevância, como
mostra o poema “O Vôo Sobre as Igrejas“.

Em “O Vôo Sobre as Igrejas” a tentativa de afastamento
do divino e aproximação do mundo terreno volta a ter lugar, contudo
com uma ênfase maior no desejo sexual. “O Vôo Sobre as
Igrejas
” nos remete de certo modo a alguns poemas de Alguma poesia,
cujo tema busca retratar as cidades históricas de Minas.

Enquanto no livro anterior o poeta prioriza a descrição das cidades
no seu aspecto físico, neste poema, em particular, a priorização
constitui-se sobre a figura histórica do Aleijadinho, sobretudo do seu
aspecto humano. Em “O Vôo Sobre as Igrejas”, não
escapa ao leitor a lembrança de “Romaria” da obra
anterior, no entanto a impressão que se tem é que aqui há
uma romaria muito particular, individualizada:

Vamos até à Matriz de Antonio Dias
onde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança,
o Aleijadinho.

Vamos subindo em procissão a lenta ladeira.
Padres e anjos, santos e bispos nos acompanham
e tornam mais rica, tornam mais grave a romaria de assombração.

Um movimento interno no poema marca o distanciamento gradativo do sujeito lírico
do seu objeto de contemplação. Há um corte no poema, a
partir do qual se vislumbra um momento de revelação, onde o passado
vai se dissipando deixando entrever o presente, o real sem nenhuma mística,
no momento em que o sujeito lírico vai deixando para trás a procissão:

Mas já não há fantasmas no dia claro,
tudo é tão simples,
tudo tão nu,
as cores e cheiros do presente são tão fortes e tão urgentes
que nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do século 18.

Vamos subindo, vamos deixando a terra lá embaixo.
Nesta subida só serafins, só querubins fogem conosco,
de róseas faces, de nádegas róseas e rechonchudas,
empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autêntico.

Gradativamente a descrição do ambiente sacro da procissão
cede lugar à exaltação do elemento humano do Aleijadinho
numa dessacralização da figura histórica. O sujeito lírico
se distancia cada vez mais do ambiente religioso, e, paradoxalmente, o ideal
de ascensão se dá de forma inversa: os anjos que o acompanham
– salienta-se aqui o detalhe sexual na caracterização dos
mesmos – passam a acompanhá-lo, não para o celestial mas
sim para aquilo que é mais terreno, aquilo que é mais humano:

Este mulato de gênio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados
as nossas luxúrias todas,
esse tropel de desejos,
essa ânsia de ir para o céu
e de pecar mais na terra:
este mulato de gênio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve também escorburto
e morreu sem consolação.

O tom religioso inicial e de mistério vai desvelando a subjetividade
nova que começa a constituir-se, e que de certa forma coincide com a
própria subjetividade lírica que se vinha constituindo nos poemas
analisados anteriormente, sobretudo na crise espiritual do sujeito. A subjetividade
barroca do Aleijadinho reflete ao mesmo tempo a preocupação do
sujeito lírico drummondiano tensionada entre o mundano e o espiritual,
entre o desejo de conciliar o erótico com o espiritual.

Na construção da subjetividade da figura do Aleijadinho observa-se
o mesmo desejo de saturação humana que já fora notado antes.
Ou seja, a exaltação de tudo que seja excesso terreno, corporal,
para com isto evidenciar a precariedade da condição humana: o
abandono sem consolação, do qual não resta sequer a memória
do corpo físico “já sem esperança / sem lembrança.”

Enquanto a exaltação do humano traz a marca do excesso, a precariedade
caracteriza-se por um completo esvaziamento físico do sujeito representado,
do qual não resta nem corpo nem memória histórica, senão
– e apenas – a ilusão de uma suposta existência:

Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
[…]

Ecos dessa aparente tensão de característica barroca, entre o
espiritual e o mundano, na subjetividade lírica drummondiana ressoam
também no poema “Castidade”:

O perdido caminho, a perdida estrela
que ficou lá longe, que ficou no alto,
surgiu novamente, brilhou novamente
como o caminho único, a solitária estrela.

Não me arrependo do pecado triste
que sujou minha carne, suja toda carne.
O caminho é tão claro, a estrela tão larga,
os dois brilham tanto que me apago neles.

Mas certamente pecarei de novo
(a estrela cala-se, o caminho perde-se),
pecarei com humildade, serei vil e pobre,
terei pena de mim e me perdoarei.

De novo a estrela brilhará, mostrando
o perdido caminho da perdida inocência.
E eu irei pequenino, irei luminoso
conversando anjos que ninguém conversa.

Aqui uma vez mais evidencia-se o tema da sexualidade e da religiosidade, contudo
com maior clareza a subjetividade se define a partir do princípio do
desejo como força capaz de superar o religioso. Ecoa o peso cristão
na consciência do sujeito no sentido de apagar da carne o sentido do desejo,
na própria abnegação do corpo, numa prática típica
da retórica cristã.Porém, na aparente confissão,
desaparece o sentido de culpa, e o perdão advém da aceitação
do desejo como parte dessa subjetividade.

Diante disso, há um deciframento do sujeito lírico, o qual passa
a se reconhecer desejante, encontrando no desejo a verdade do seu ser. Ainda
que se reconheça certa abjeção ao corpo enquanto espaço
do desejo, há no ato em si uma maior consideração, de tal
forma que a transcendência possível encontra-se exatamente na aceitação
da queda do sujeito, como revela a última estrofe: “E eu irei
pequenino, irei luminoso
/ conversando anjos que ninguém conversa.

Em princípio, o desejo em Drummond vai procurando visibilidade. Na
sua matização a tendência maior dele é naturalizar-se,
desaparecendo com isso a tensão interna entre o terreno e o espiritual.
Contudo, persiste ainda uma outra forma de tensão interna: a dificuldade
de se dominá-lo, como pode ser visto em “O Procurador do Amor,”
e a impossibilidade de se defini-lo discursivamente, como se vê no “Desdobramento
de Adalgisa” – características naturais da dialética
do próprio desejo.

Brejo das Almas organiza-se em torno de uma subjetividade lírica
marcadamente em crise, nascida como um reflexo da modernidade, sobretudo quando
observamos a constatação da precariedade da existência humana
e da impossibilidade de transcendência. Ao enfatizar o elemento humano,
o sujeito drummondiano encontra uma resposta possível à modernidade.

Fonte parcial: Vivaldo Santos, Letras, UFMG

Posts Relacionados