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Elenco de cronistas modernos (Parte 7), de Paulo Mendes Campos

by Lucas Gomes

Elenco de Cronistas Modernos

é uma obra que reúne crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga. Foram selecionadas dez
textos de cada autor, além de breve biografia desses autores.

Crônicas são sempre curtas, tematizando os acontecimentos triviais
da vida. Pode-se observar nestas setenta crônicas o predomínio
do foco narrativo em primeira pessoa, um tom confessional, uma linguagem leve,
o humor e as reminiscências.

Nesta parte veremos

PAULO MENDES CAMPOS (1922 – 1991)

– Mário Mendes Campos – Pai
– Edificou sua carreira pela influência do Pai.
– Moderno/Espírito de jornalista
– Cronista de destaque
– Crônicas leves
– Cotidiano
– Alucinógeno

Crônicas

1. Meu reino por um pente
– O narrador se identifica como Paulo.
– Reflexões sobre ter ou não filhos (intertextualização) Vinícius de Moraes e Machado de Assis
– “Filhos e pais, melhor tê-los”
– Tom confessional
– Consciência difícil
– Recompensas

Íntegra:

Filhos – diz o poeta – melhor não tê-los. Já o Professor
Aníbal Machado me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento,
o mundo pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.
A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido
às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa
de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que
não se discute, fora de alcance do radar filosófico. “Eu
não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante.”
Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar
a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias
Póstumas: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente
o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como
sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é
de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito
depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o
desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido
edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.
Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento
quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha
cola… Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me
a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta,
de voltar para Minas Gerais, renunciar…
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria
capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença
uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não
suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses
objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir
adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear
os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara.
Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de
todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor
de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México. A
princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele,
comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia
familiar, e ele sorriu e confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”.
Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você,
quatro para você – segundo o temperamento e a distração
de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um
no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa
operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou
escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão,
no alto de um móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos
e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive
o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário encontrável
na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém
usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo?
Ou algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?”
Estão todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos
é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de
que, afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta.
Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida,
sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes,
os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles
desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois,
até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos
os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em
plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu reino por um pente!”.
Eu não fui – diz o primeiro; – eu não fui – diz o segundo; – eu
não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias
e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.
Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.
Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é
inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro.
Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo.
E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio
que, filhos, e pais, melhor tê-los.

2. O despertar da montanha
– Narrador se apresenta como o autor ao mencionar plebiscito.
– Dificuldade de relacionamento.
– Agressividade.
– O narrador mais uma vez é um pai.

Íntegra:

Assim como há quem sofra de insônia, sofro de despertar. Meu
sonho e tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações
e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo
ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema
de Henri Michaux que conta o angustioso renascimento do planeta gasoso em que
certas pessoas se transformam depois da viagem noturna.
Enquanto pode, filho ou chefe de família, proíbi que me fosse
feito qualquer pergunta durante minha primeira hora de vida cada manha. Você
vai hoje cedo para cidade? Uma questão à toa como essa, em vez
de me puxar para frete, me empurra de novo para trás, para o pântano
primeiro onde se conhece apenas o desconhecimento. Quer um ovo quente? E eis-me
outra vez cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.
Quando os pequenos foram crescendo (são dois, como no Plebiscito, um
menino e uma menina), minha interdição começou a ser desmoralizada.
Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade
de latir para o fundo. Venho de charnecas nevoentas, venho de violentos desencontros
e nada quero. Sou só um pedaço de homem, sem forças para
galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para
sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e êxtases selvagens, ouço
uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis e, decerto, sinistras.
Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora
articulou a palavra papai, estilhaçando a treva que vedava a face do
abismo. Papai era eu. Abro os olhos idiotas e vejo uma carinha que não
me é de todo estranha. Depois de sofrida reflexão, admito que
pode ser minha filha. Mais terei uma filha? Desisto de saber. Fujo por um túnel,
ando, ando, e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera
com a sua condenação. Papai. Papai sou o mesmo, digo para tranquilizar-me.
Removo destroços, procuro espantar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me
ao abajur, ao armário, á persiana, ao homem da caverna consegue
afinal emitir uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:
– Como é que eu distribuo 2.400 litros d’água por
três reservatórios,de modo que o primeiro tenha 54litros mais que
o segundo,e este 63 litros mais que o terceiro?
Diante desse enigma repelente é muito melhor voltar á condição
de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária,
numa desolada terra de ninguém, entre dois mundos absurdos. Abre-se um
pouco mais a réstia do entendimento, mas o impasse continua. Com timidez
e ressentido orgulho, confesso: Não sei.A carinha não se afasta
e compõe outro enigma, como se fosse possível a gente ignorar
uma coisa e saber outra, como se os enigmas todos não constituíssem um único e esmagador enigma:
– Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1.500
francos por intermédio de Banco de Londres.
Suspiro e desespero. A esfinge continua implacável:
– Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira,
se 30 fracos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.
Aquela libra a 48 cruzeiros me tonteia:
– Não sei; pergunte á sua mãe que é inglesa.
Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria
de bicho inferior que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus
pampas impalpáveis, ás minhas campinas eternas. Mas uma pata de
urso me agarra pelos cabelos. Papai. Abra os olhos com relutância e vejo uma cara redonda e resolvida do menino.
– Pai, os músculos formam o que chamamos de carne?
– É claro – respondo sem convicção, só
para ficar livre daquela cara de maçã.
– Quais são os símbolos da pátria?
– Que pátria?
– Da nossa pátria, ora bolas.
– Não me lembro de todos.
– Como eram constituídas as bandeiras?
– Mesma coisa de sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.
– Deixa de ser burro, pai; essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas
de homens,mulheres,moços,velhos,índios amassados, padres, animais domésticos e bestas de carga.
– Se você sabe, por que está perguntando?
– Queria ver se você é mesmo ignorante.
– Vê se não chateia Daniel.
Recebo uma patada no ombro e reconheço que perdi o combate: vou nascer
de novo. A luz me machuca. Usando de todos os meus pseudópodos, rastejo
até o chuveiro. A água faz bem aos animais.
Do outro lado da porta as perguntas também chovem: – Qual é o antônimo de fervor?
– O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.
– Que consequências trágicas sofreu o Brasil na segunda Guerra Mundial por não possuir estradas?
– Hein?Depois eu conto.
– Movimento de translação é assim ou assim?
– Não posso ver pela porta, não é,Gabriela?
– Como Pedro Alves Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?
– Engraçadinho!…
– Como era mesmo o nome direito do Caramuru?
– João Ramalho, menina.
– Que João Ramalho, pai?
– Uai, não é não?
– João Ramalho é aquele que ajudou Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente.
– Ah, isso mesmo: o bacharel de Cananéia.
– Mas eu quero saber é o Caramuru.
– O do Caramuru eu não sei não.

3. Para Maria da Graça
– 15 anos / Livro Alice no país das maravilhas.
– Parábolas.
– Rito de Passagem.
– A fronteira da vida.
– Reflexão sobre o sentido da vida.
– Narrada em terceira pessoa.

Íntegra:

Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da
Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca.
Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como
um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas.
Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à
pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para
melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?”
Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história
de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada
em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa
qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável.
Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada
de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de
lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas
(nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma
porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial,
e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências.
Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos
espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é
pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver
é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria
de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que
o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios,
na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes,
na literatura, até amigos, até irmãos, até marido
e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições
tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias,
tão fingindo que não é, tão ridículas muitas
vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos
a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?”
é bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não
irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te
preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!”
Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível
variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas
vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas
dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida,
foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem:
“Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao
contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não
acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a
palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como
talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te
desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”
Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho
que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha.
Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também
acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos
assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível
rinoceronte. é isso mesmo. A alma da gente é uma máquina
complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que
parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é
rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar
o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.
E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio
cômico, nunca devemos perder o bom-humor`.
Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande
para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma
caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho,
para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa,
muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões
os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos
a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos
sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de
tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não
poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este
se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um
lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio,
é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

4. O médico e o monstro
– Paródia da obra O médico e o monstro.
– Humor / Transformação.
– Narrada em terceira pessoa.
– O menino negocia com a mãe, toma a poção e vira monstro.

Íntegra:

Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando
sobre o peito descoberto duma criancinha um estetoscópio, e depois a
injeção que a enfermeira lhe passa.
O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a bater-lhe pelos joelhos;
os bigodes foram pintados por sua irmã, a enfermeira; a criancinha é
uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo
nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma caixinha de brinquedos.
Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
– Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção,
nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca de Rosinha,
pede uma colher, manda a paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos
lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu
de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua:
– O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer
jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento carrega.
O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando:
– Mordida de leão.
– Mordida de leão? – pergunta, desapontada, a enfermeira, para logo aceitar
este faz-de-conta dentro do outro faz-de-conta. – Eu já disse tanto,
meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho…
Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de acarajé, um
urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um cachorro atropelado
por lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai
Noel, uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.
De repente, o médico diz que está com sede e corre para a cozinha,
apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se aproveita disso para
dar um beijo violento no seu amor de filho e também para preparar-lhe
um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana,
limão, laranja e aveia. O famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável droga.
– Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você mesmo, doutor.
Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo é
levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com uma careta. Em seguida, propõe um trato:
– Só se você depois me der um sorvete.
A terrível mistura é sorvida com dificuldade e repugnância,
seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora.
A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no
menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já
estamos a essa altura, como não podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico em monstro.
Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são atirados
sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo médico resta um lindo
bigode azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde
a doce enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o consultório:
microscópio, estetoscópio, remédios, seringa, termômetro,
tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A enfermeira
dá um grito de horror e começa a chorar nervosamente. O monstro,
exultante, espeta-lhe a espada na barriga e brada:
– Eu sou o Demônio do Deserto!
Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura do mal, desatento
a qualquer autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai
espalhando terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo,
é o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta
indo tinir no ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se despenca,
um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce derramado, a torneira inundando
o banheiro, a revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum apartamento carioca.
Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante, senta-se sobre os joelhos
do pai, pedindo com doçura que conte uma história ou lhe compre um carneirinho de verdade.
E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar ameaçado pelas forças do mal.

5. Ser brotinho
O narrador relata:
– Como ser brotinho.
– Contradições da adolescência.
– Lembrança.
– Série de definições.
– Divagação livre.

Íntegra:

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é
muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente
das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível,
provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar
de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo
apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça,
mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.
é viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar
o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando
para cima, sem pensar em nada. é passar um dia todo descalça no
apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é
ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um
ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês
coloridos. é dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa
palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. é
também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima
das vãs agitações humanas, uma inflexão tão
certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.
Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um
adjetivo para o rosto e para o espírito. é esvaziar o sentido
das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido
de repente ao vácuo absoluto. é aguardar com paciência e
frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. é ter a bolsa
cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos,
anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina,
uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética
escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito
ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.
é telefonar muito, estendida no chão. é querer ser rapaz
de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade.
Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma
senhora tão antipática. é fumar quase um maço de
cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.
Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente
vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. é
sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente.
é ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês
sem saber verbos irregulares. é ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
é ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia,
e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. é
ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou
com piedade que ela era uma louca varrida. é ir sempre ao cinema mas
com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. é ter uma
vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha
e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice
de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. é o dom de falar
sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com
uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado
ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter
trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de
salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu.
é ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a
miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando.
é manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa
grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa,
fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos
os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês
por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é
como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida
em todo o seu ser. é fazer marcação cerrada sobre a presunção
incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora
de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. é policiar parentes,
amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.
Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é
detestar. Detestar o possível. é acordar ao meio-dia com uma cara
horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de
pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar
um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.

6. Fábula eleitoral para crianças
– Animais.
– Máscaras.
– O dia nublado.
– Descaso.
– Narração breve de caráter alegórico.

Íntegra:

Um dia, meninos, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha
do universo. Os três reinos entraram logo a confabular. Animais, vegetais
e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloquentes,
manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis,
intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.
Entre os bichos, era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam
em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite,
cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios
fantásticos, a rainha das abelhas zumbia com o seu séquito, sem
falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas
manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.
Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa,
a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de
intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.
O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e outros queriam derramar muito
sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar
um pássaro colorido; já os pássaros que cantam, decidiram
apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelos galhos. A raposa corria as várzeas
articulando uma candidatura, ninguém sabia qual. O macaco era vaiado
quando alegava semelhança com o homem. O cavalo se meteu a candidato,
dando a sua condição de antigo senador do império romano.
O pavão, escondendo os pés, exibia a cauda. Certos bichos, como
o boi e a íbis, invocavam seus direitos divinos, que não eram
mais levados a sério. As hienas e os chacais opinavam por um conselho
de notáveis, a ser instituído pelos animais ferozes que lhes deixavam os restos.
Nas profundezas do chão, o carbono fazia estranhas combinações
com o hidrogênio. O diamante e o ouro brilhavam de esperança. As
estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em
torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.
As flores distribuíam perfumes à vontade. árvores agitadas
recebiam recados que o vento trazia de longe. A floresta pensava eleger não
um rei, mas um colegiado de carvalhos experientes.
E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer sem conta.
A despeito dos imensos interesses em choque, de tantas contradições,
é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com limpa lisura.
Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três
reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.

7. Duas almas distintas
– é um relato de duas mulheres que sobreviveram a perda de seus maridos.
– Como o título, duas almas distintas procuram aliviarem-se da dor.

8. O homem que odiava ilhas
– Crônica escrita em forma de diálogo.
– Lembranças de um homem que viveu a experiência de ficar sozinho em uma ilha deserta.

Num barco de pesca em Cabo Frio um americano, Aiken, paquerou a namorada –
Graziela – uma lourinha linda, filha de alemães, que depois se torna até esposa do turista.

9. Maria José
– Crônica em homenagem a uma amiga morta.
– Enumera as qualidades e contradições do ser humano.
– Maria José ao mesmo tempo que lia Edgar Alan Poe e Baudelaire, era
capaz de declamar Antônio Nobre; assim como fazia jejum todos os dias
era capaz de comer um prato exótico e beber uísque.

10. Menino da cidade
– Narrador em terceira pessoa.
– Fala de um menino que ama animais, mas que vive no Rio de Janeiro.
– Frustrado, a família lhe presenteia com um canário e uma tartaruguinha.
– Crônica que mostra a diferença entre a criança da cidade e a do campo.

Fonte: Unievangélica – Carlos Lisboa

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