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Esconderijos do Tempo, de Mário Quintana

by Lucas Gomes

O livro Esconderijos do Tempo, do poeta brasileiro Mario Quintana,
é considerado um livro de maturidade do autor pois aprofunda as iluminações
de Quintana sobre a memória, a velhice, a morte e a própria poesia.
Mas, ao mesmo tempo, dá uma clara demonstração da juventude,
do frescor que Quintana conseguiu preservar em seus livros ao longo de toda
a sua trajetória.

Publicado em 1980, quando Quintana contava setenta e quatro anos de idade.
É a obra onde mais se acentua a sua simplicidade e mistério de
dizer as coisas comuns. E é sob o halo do mistério que instaura
a sua linguagem literária, sem vinculações a Escolas.

O livro é constituído de 50 poemas geralmente breves e de versos
livres ou em prosa, havendo apenas um soneto. Quintana praticamente se utiliza
de todos os metros, das redondilhas menores e maiores aos versos longuíssimos.
Explora, inclusive, e com excelente efeito, seqüências de versos
de uma única sílaba. Há canções e danças,
aparentando o poema à música, além da forte coloquialidade
em muitos poemas, chegando-se mesmo à utilização de formas
tipicamente orais da fala. Diferindo um pouco de seus livros anteriores, não
são muitas as pequenas cenas do cotidiano e da natureza que tanto o singularizam.

Seus temas mais freqüentes são: a valorização da
imaginação, o sonho, a fantasia, a humanidade, a existência,
o carinho, o aconchego, a pureza, a canção e o mundo infantil
(escapismo da realidade) e a própria poesia.

Um dos traços marcantes de Esconderijos do Tempo é a
coloquialidade de sua linguagem – aparentemente um estratagema do poeta
para tornar seus poemas ainda mais próximos do que seriam verdadeiros
diálogos com o leitor ao colocar textualmente traços característicos
da oralidade. Os poemas reunidos nessa obra também se mostram ricos em
imagens, aparentemente comuns, por meio das quais Quintana buscava construir
o sentido maior de seus textos – mas o uso de objetos de fácil
identificação é, talvez, um dos trunfos da poesia de Mário
Quintana que a tornaram amplamente divulgada entre os leitores de poesia no
Brasil.

Da obra Esconderijos do tempo, selecionamos os seguintes poemas: “Se
o poeta falar num gato”, “Seiscentos e sessenta e seis” e
“A casa grande”.

Se o poeta falar num gato

Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade…
se falar numa esquina mal e mal iluminada…
numa antiga sacada… num jogo de dominó…
se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que
                                                    morriam
de verdade…
se falar na mão decepada no meio de uma escada
de caracol…
Se não falar em nada
E disser simplesmente tralalá… Que importa?
Todos os poemas são de amor!

O poeta inicia com a condicional “se”, como a tentar definir a
ambiguidade da criação poética. Aparentemente “gato”
e poesia parecem não possuir elementos
para o fazer poético, mas o poeta os usa para impactar o leitor ao falar
sobre a falta de direcionalidade do ato de criação. Ao mencionar,
no mesmo verso, a palavra “flor”, rompe a aparente contraditoriedade
com que mencionou a palavra “gato”.

Os versos seguintes falam de “ventos” “descampados”
e “desvios”, conduzindo o leitor à suavidade da vida campestre,
pois o vento não chegou à cidade. De maneira velada, o poeta insinua
que esse vento só é possível nesse ambiente, assim se desviando
da cidade. O uso da sibilante “s” parece conduzir o leitor para
os
caminhos sugeridos pelo poeta, junto com o vento. Para o leitor entender o poeta,
precisa seguir os mesmos desvios desse vento, resvalar por meio das palavras
ditas pelo poeta, entender-lhe as conotações, mas, caso isso não
ocorra, deve-se deixar conduzir, como essa brisa, como esse vento, sem tentar
decodificar suas palavras.

Prossegue o poeta com as suas conjecturas sobre o fazer poético adicionando
elementos citadinos misteriosos como esquina “mal iluminada”, rompendo
com a “brisa” do campo com que conduziu poeticamente o seu leitor.
Há a alusão à sacada e ao jogo de dominó, sempre
incógnitos e surpreendentes e aos mistérios que seguem.

Quintana alude a um outro mistério, “a mão decepada”,
contida dentro de um mistério maior “escada em caracol”.
Para o autor, a escada em caracol contém mistérios, pois não
permite a visualização completa do espaço, tornando-se
um lugar onde tudo pode acontecer inclusive uma mão ser decepada.

Para Quintana o tema da criação lírica não é
fundamental, pois todos são direcionados e constitutivos da variante
do amor, mesmo usando de subterfúgios para expressar-se, cabe ao leitor
descobrir, nas sutilezas do texto, no que não foi dito, no que não
foi mencionado, a sua alusão ao amor, em uma dimensão mais profunda
e cósmica.

Seiscentos e Sessenta e Seis

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas: há tempo…
Quando se vê, já é sexta-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

O poeta principia por tentar definir o significado da vida. A palavra “casa”,
empregada metaforicamente, abre a possibilidade de o ser humano ter sido colocado
neste mundo, com deveres a cumprir, com obrigações que deve tentar
saber objetivar. Ao cogitar esses questionamentos do ser, o poeta perpassa o
tempo numa gradação, “seis horas”, “sexta-feira”
e “sessenta anos”, alusão ao título proposto. A palavra
“quando”, usada repetidamente, ao iniciar os versos segundo, terceiro
e quarto, parece advertir para a fugacidade do tempo, resguardando, no entanto,
a proporcionalidade. O poeta, ao escolher esse enunciado para o poema, reporta-se
à simbologia bíblica e identifica-o como o símbolo secreto
do mal. O mal seria, para o poeta e para toda a humanidade, a passagem irreversível
das horas, dos dias e dos anos.

Sabe-se que, no primeiro instante em que o relógio do tempo é
ajustado em nossa existência, ele é também, programado para
parar um dia, esta é a lei implacável da vida.

Ao perceber que “já são seis horas”, acrescenta
a expressão “há tempo”, aparentemente contraditórias,
pois a expressão “já”, parece, nesse poema, determinar
um tempo configurado como passado; “há” indica um tempo presente.
As aparentes contradições remetem ao aspecto do tempo, sempre
contraditório e único. Para cada verso sugere, no entanto, projeções
diferenciadas em relação ao tempo: “seis horas”, “sexta-feira”
e “sessenta anos”. As datas são criadas pelo homem
limitado por elas, sem ter o poder de dominá-las, e o eu – poético
chega à conclusão de que ao final já não há
mais tempo para fazer as tarefas a que se propunha.

Entretanto, o poeta declara que caso tivesse outra oportunidade, uma nova
trajetória com as experiências que já possui, não
se perderia em consultar o relógio e encararia a vida sem estabelecer
regras de tempo, pelos caminhos que sabiamente agora iria percorrer. A “casca
inútil e dourada das horas” que o poeta iria jogando pelo caminho
confirmam a inutilidade de o ser humano ficar atrelado ao tempo, que é
uma convenção estipulada pelos homens, servindo somente para escravizá-lo,
sem dar-lhe a chance de liberar-se para seguir um caminho. Há a conotação
de que o poeta, em uma nova chance de viver, retiraria todo o supérfluo
da vida, permanecendo para si somente a essência.

A Casa Grande

…mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água.
com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(… escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso…)
Não pude ser um menino da rua…
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
– mesmo depois que destruíram a casa grande –
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos…

Nos versos de Quintana, observa-se claramente que a casa dos leões é
constituída no seu imaginário infantil, em que o autor explora
as escadarias, corredores, sótão e porões, embora afirme
que ela não proporciona proteção e aconchego, pelo contrário,
o assusta mais que o mundo que se descortina lá fora. A expressão
“E até hoje”, representa a idéia de continuidade da
sensação de falta de proteção. O poeta reporta-se,
novamente, no final do poema, à mesma expressão, dinamizando a
ação que se processa no início, como um ato que não
findou, mas que permanece.

Observa-se que Quintana se reporta aos fantasmas, que ainda habitam o seu
existir. Acredita que, se tivesse nascido em uma casa de meia-água, não
agregaria
todos esses elementos, pois no solar há muitos espaços para que
os fantasmas se alojem e se perpetuem, mesmo que as casas sejam demolidas.

Dessa situação podemos concluir duas questões primordiais
que afetam o fazer poético do autor: a sensação de humildade,
vista a partir da casa de meia – água e o repúdio à situação
de opulência do solar, o que vem ao encontro do que afirma Bachelard,
em sua obra A terra e os devaneios do repouso (2003b, p.78), quando
ressalta que “nosso devaneio deseja sua casa de retiro e a deseja pobre
e tranqüila, isolada no pequeno vale”.

Créditos parciais: Nedli Magalhães Valmorbida, Mestre
em Letras (UNISC)

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