Home EstudosLivros Eu era mudo e só (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

Eu era mudo e só (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Para construir a narrativa em Eu Era Mudo e Só, de 1958, Lygia Fagundes
Telles empregou um narrador autodiegético, a personagem Manuel, o marido que
se sente oprimido com o casamento. É por meio do olhar de Manuel que o leitor
conhece a esposa, Fernanda.

O conto tem início com uma cena familiar, Manuel observa Fernanda, que está
lendo um livro à luz do abajur, já preparada para dormir. Nesse primeiro
parágrafo, o narrador emprega a focalização externa para iniciar a
caracterização da esposa: descreve o traje que ela está usando e o aspecto e
perfume de sua pele. Por meio das características empregadas para compor a
personagem, o leitor pode perceber que se trata de uma mulher vaidosa e que,
provavelmente, tem um alto poder aquisitivo.

O narrador faz uso do discurso modalizante para exprimir uma impressão da
personagem Manuel a respeito da personagem Fernanda: “– Você parece um
postal.” (p. 95). O mesmo registro de discurso é empregado mais adiante,
“Agora o livro parece flutuar entre seus dedos tipo Gioconda.” (p. 95), o
que confere à narrativa uma certa imprecisão, como se o narrador não tivesse
certeza do que afirma.

Utilizando o recurso do monólogo interior, o narrador apresenta uma analepse
externa, por meio da qual o leitor conhece a opinião de tia Vicentina sobre
Manuel: “‘Ou esse seu filho é meio louco, mana, ou então…’ Não tinha coragem
de completar a frase, só ficava me olhando, sinceramente preocupada com meu
destino.” (p. 95). Entretanto, com a continuidade do monólogo interior, o leitor
toma conhecimento que Manuel é um homem materialmente bem sucedido, contrariando
os prognósticos da tia Vicentina.

…Penso agora como ela ficaria espantada se me visse aqui nesta sala que mais
parece a página de uma dessas revistas da arte de decorar, bem vestido, bem
barbeado e bem casado, solidamente casado com uma mulher divinamaravilhosa:
quando borda, o trabalho parece sair das mãos de uma freira e
quando cozinha!… Verlaine em sua boca é aquela pronúncia, a voz impostada,
uma voz rara. E se tem filho então, tia Vicentina?! A criança nasce uma dessas
coisas, entende?… Tudo tão harmonioso, tão perfeito.
(Telles, 1982, p. 95)

No trecho escolhido, que simula um diálogo imaginário entre Manuel e tia
Vicentina, o leitor recebe a informação que a personagem masculina é bem
sucedida, o que contrariou as expectativas da tia. Entretanto, apesar de tudo
estar tão perfeito, parece que alguma coisa incomoda Manuel, pois o leitor
percebe o tom irônico que ele emprega ao referir-se às qualidades da esposa.
O motivo do incômodo começa a ser revelado quando, após outros trechos de
monólogo interior, Manuel deixa escapar, em voz alta: “– E se não vê a sombra
das minhas asas é porque elas foram cortadas.” Manuel não pode mais voar, suas
asas foram cortadas. O leitor ainda não sabe os detalhes da circunstância em
que isso aconteceu, ou o que o símbolo representa, exatamente, mas já consegue
perceber que o casamento representou a perda da liberdade para Manuel.

De acordo com Manuel, Fernanda tem um “olhar duplo”, que “pode ler e ver o que
estou fazendo” (p. 96). Além disso, Fernanda “sabe o que costumo e o que não
costumo. Sabe tudo porque é exemplar e a esposa exemplar deve adivinhar.”
(p. 96).

Os verbos escolhidos pelo narrador são saber e dever; apesar do leitor estar
diante do discurso de uma personagem, um discurso subjetivo, esses verbos
compõem um discurso de autoridade, não deixam dúvidas sobre o comportamento
de Fernanda. Observe-se, ainda, o uso do discurso avaliativo pelo narrador
para caracterizar Fernanda, ela “é exemplar”.

Manuel acredita ainda que, um dia, Fernanda atingirá a perfeição de
adivinhar o pensamento do marido, o que é manifestado ao leitor por meio do
monólogo interior, em tom irônico. Por meio da ironia empregada pelo
narrador para elencar as qualidades de Fernanda, fica estabelecido na
narrativa um certo incômodo, um clima opressor, de malestar, análogo ao que
a personagem Manuel sente em relação ao seu casamento.

Ao abrir a janela e observar a lua, o narrador-personagem faz referência às
tentativas do homem de chegar à lua, que, no ano de publicação do conto, 1958,
ainda não havia ocorrido. Assim, a lua não pode representar a solidão porque
“já tinha sido quase tocada, talvez nesse instante mesmo em que a olhava algum
abelhudo já rondava por lᔠ(p. 96). E conclui, com uma imagem plena de beleza,
“Solidão era solidão de estrela.” (p. 96).

A seguir, o narrador emprega outra analepse, desta vez, recordando-se de um
diálogo estabelecido com um amigo, Jacó. Manuel estava recém-casado e o amigo
acabara de receber a notícia. A conversa entre os dois tem como tema a
dificuldade de agüentar uma companhia, o que, para Jacó, é pior do que a
solidão. Note-se o emprego de idéias antitéticas pelo narrador para expressar
a confusão de sentimentos em que Manuel se encontra; assim, tem-se “Eu ria
das coisas que Jacó ia dizendo, mas meu coração estava inquieto.” (p. 97).

O homem de agora – ou seja, do tempo presente da narrativa – confronta-se com o
jovem de outrora. O discurso avaliativo do narrador-personagem, no passado, a
respeito de Fernanda, era bem diferente do atual: “Ela é tão sensível, tão
generosa, jamais pensará sequer em interferir na minha vida. E eu nem admitiria.”
(p. 97). Apesar de demonstrar segurança em relação à esposa e à relação entre
os dois, o leitor poderá perceber a ambigüidade e a confusão de sentimentos de
Manuel. Assim, o narrador prossegue: “O ambiente estava aconchegante, o uísque
era bom (…). recém-casado com a mulher que amava. E então? Por que não estava
feliz?” (p. 97). Manuel está se questionando e, simultaneamente, lança essas
perguntas para o leitor.

Jacó emite sua opinião a respeito dos dois tipos possíveis de esposa, um trecho
que confere uma nota de humor ao conto, e que tem, ainda, a função de prolepse:

…“Ou a mulher fica aquele tipo de amigona e etc. e tal ou fica de fora.
Se fica de fora, com a famosa sabedoria da serpente misturada à inocência da
pomba, dentro de um tempo mínimo conseguirá indispor a gente de tal modo
com os amigos que quando menos se espera estaremos distantes deles as vinte
mil léguas submarinas. No outro caso, se ficar a tal que seria nosso amigo se
fosse homem, acabará gostando tanto dos nossos amigos, mas tanto, que logo
escolherá o melhor para se deitar. Quer dizer, ou vai nos trair ou chatear. Ou as
duas coisas…”
(Telles, 1982, p. 97)

A seguir, por meio de um diálogo entre Manuel e Fernanda, percebe-se que a
profecia de Jacó se concretizou. Os amigos nunca mais se encontraram, é como se Jacó
“tivesse morrido”, “sumiu completamente” (p. 97). Manuel retorna ao monólogo interior e
deseja que Fernanda estivesse morta. Apesar de amar a esposa, seria a solução ideal para
livrar-se dela – note-se o emprego da ironia e das idéias antitéticas:

E todos com uma pena enorme de mim e eu também esfrangalhado de dor
porque jamais encontraria uma criatura tão extraordinária, que me amasse tanto
como ela me amou. Sofrimento total. Mas, quando viesse a noite e eu abrisse a
porta e não a encontrasse me esperando para o jantar, quando me visse só e no
escuro nesta sala, então daria aquele grito que dei quando era menino e subi na
montanha.
(Telles, 1982, p. 98)

Apesar da morte, imaginada e desejada, de Fernanda, que em tempo algum poderia
ser substituída, ele se sentiria vitorioso (sensação comparada com outra, da
infância). Após um casamento de doze anos, que gerou uma filha, Gisela, pensar
no alívio que a morte de Fernanda lhe proporcionaria faz com que Manuel se
considere “um monstro” (p. 98), o que é registrado pelo narrador em discurso
avaliativo. Entretanto, o homem está desanimado com a vida que leva e se sente
oprimido pela esposa perfeita e dominadora. “Os menores movimentos tinham que
ter uma explicação, nenhum gesto gratuito, inútil” (p. 98).

Manuel pensa na filha e constata que ela se parece muito com Fernanda,
inclusive já pensa como a mãe, é “uma pequenina burguesa preocupada com a
aparência, ‘papaizinho querido, não vá mais me buscar de jipe!’ A querida
tolinha sendo preparada como a mãe fora preparada, o que vale é o mundo das
aparências” (p. 98).

Ao pensar no futuro de Gisela, o narrador emprega uma prolepse, que, prevê
que a situação pela qual ele, Manuel, passou, ao ser apresentado à família de
Fernanda, irá se repetir, um dia:

Era o círculo eterno sem começo nem fim. (…) A perplexidade do
moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma perplexidade que
um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha
social azeitada pelo hábito: hábito de rir sem vontade, de chorar sem vontade, de
falar sem vontade, de fazer amor sem vontade… O homem adaptável, ideal.
Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão
portátil.
(Telles, 1982, p. 99)

No trecho escolhido, observe-se o uso do discurso repetitivo, com a função de
enfatizar que tudo o que seu futuro genro, bem como ele próprio, Manuel, fará
será “sem vontade”. O “homem adaptável”, apoltronado, é uma maneira eufêmica
de designar aquele que se anula, que perde a personalidade.

Após um breve diálogo com a esposa, Manuel retorna ao monólogo interior e a
outra analepse, desta vez, recordando uma conversa que teve com o futuro sogro,
antes do casamento com Fernanda. O sogro, um senador, que após deixar a
política passou a trabalhar com máquinas agrícolas, propõe sociedade a Manuel.
“‘Sei que o senhor é jornalista, mas está visto que depois do casamento vai ter
que se ocupar com outra coisa, Fernanda vai querer ter o mesmo nível de vida que
tem agora.” (p. 99).

Observe-se como o narrador utiliza os verbos para construir o discurso do senador,
um discurso de autoridade, pleno de certezas, e que não deixa a menor margem de
negociação para o interlocutor. Ou Manuel aceita as regras impostas, ou não se
casará com Fernanda. Nesse momento, Manuel percebe que está prestes a cair em uma
armadilha. Tem o ímpeto de fugir, mas não vai.

…Tive então uma vontade absurda de me levantar e ir embora, sumir
para sempre, sumir. Largar ali na sala o senador com suas máquinas, Fernanda
com suas baladas, adeus, minha noiva, adeus! Tão forte a vontade de fugir que
cheguei a agarrar os braços da poltrona para me levantar de um salto. A música,
o conhaque, o pai e a filha, tudo, tudo era da melhor qualidade, impossível
mesmo encontrar lá fora uma cena igual, uma gente igual. Mas gente para ser
vista e admirada do lado de fora, através da vidraça. Acho que cheguei mesmo a
me levantar. (…) Fiquei. Fui relaxando os músculos, sentei-me de novo, bebi
mais um pouco e fiquei.
(Telles, 1982, p. 100)

O mundo de Fernanda e do senador era belo, mas irreal. Manuel sabe que não faz
parte daquele mundo, que se quiser continuar a ser como é deve permanecer do
lado de fora, contentando-se a apenas admirá-lo. Entretanto, Manuel não resiste
à tentação de fazer parte de tudo aquilo e, revela, conformado: “fiquei”
(p. 100).

A seguir, um trecho de delírio, ou sonho, em que Manuel recupera a liberdade.
Para isso, não é necessária a morte de Fernanda, nem que ela arrumasse amantes.
A solução está dentro dele, que apenas transforma sua vida, a esposa, a filha,
a casa, em um cartão postal, “um belíssimo postal” (p. 101). O postal serve
como símbolo para representar uma situação superficial, sem vida, congelada no
tempo e no espaço. Ao conseguir isso, Manuel torna-se novamente livre. A
transformação de sua realidade em cartão postal abre novas possibilidades para
Manuel: “Posso levá-lo comigo (…)” (p. 101), “Posso também rasgá-lo em
pedacinhos e atirá-lo no mar (…)” (p. 101). Toma um navio sem saber a que
porto se dirige, sente o cheiro do mar, recupera a liberdade: “(…) e eu sou
apenas um vagabundo debaixo das estrelas. “Oh prisioneiros dos cartões-postais
de todo o mundo, venham ouvir comigo a música do vento! Nada é tão livre como
o vento no mar!” (p. 101) Entretanto, a voz da esposa o traz de volta à
realidade. Manuel precisa enfrentar a verdade: “Eu também estou dentro do
postal.” O luxo e o conforto estão garantidos para o resto da vida, mas o prazer
das coisas simples e a liberdade de agir, de pensar e de fazer as próprias
escolhas estão proibidos para Manuel. Foi o preço que ele teve que pagar para
garantir uma vida perfeita – uma típica paisagem de cartão-postal – que ele,
insatisfeito mas acomodado, não consegue mais abandonar. “Através do vidro as
estrelas me parecem incrivelmente distantes. Fecho a cortina.” As estrelas, que
representam a solidão, mas também a liberdade, estão muito longe de Manuel.
Inatingíveis. Melhor nem vê-las.

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

Posts Relacionados