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Feliz Aniversário (Conto da obra “Laços de Família”), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Feliz aniversário, conto de Clarice Lispector está incluído em na obra Laços de família, de 1960. Um dos mais brutais e perturbadores relatos escritos pela autora.

Clarice Lispector tem a maestria de revelar as transformações dos sujeitos de modo profundo, denso, transcendente, epifânico. Suas obras colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando razão e sensibilidade por meio de uma linguagem extremamente poética.

Em Feliz aniversário, a infelicidade é a matéria secreta que perturba e lateja na felicidade de uma festinha de aniversário de D. Anita, uma senhora que completa oitenta e nove anos, e seus familiares reúnem-se para comemorar a data. Zilda, a filha com quem a aniversariante mora, organiza a casa para receber a família, prepara tudo com antecedência para que nenhum imprevisto aconteça. Pouco a pouco os convidados vão chegando; os filhos, as noras, os netos, quase todos ali fingem comemorar o aniversário. A família, vinda do subúrbio, mas também de Ipanema, chega aos poucos a Copacabana para a festa de D. Anita, a quase nonagenária. Cadeiras dispostas ao longo das paredes, uma mesa típica de festa de família, guardanapos coloridos, balões, groselhas e alusões ao “Happy Birthday”.

Logo depois do almoço, a aniversariante é encarcerada em seu vestido de festa, com presilha, broche e um odor forte de água de colônia.

A filha Zilda é um personagem manipulado pelo dever de realizar uma festa de aniversário para sua mãe, que completa oitenta e nove anos, arruma a casa, ocupa-se com os preparativos e convida os familiares para a comemoração. Nota-se que, no nível do parecer, a comemoração simula-se prazerosa, mas a manipulação de Zilda não se dá pelo querer-fazer, ou seja, realizar a festa de aniversário da mãe, mas sim pelo dever-fazer. Assim, no nível do ser, ao focalizar o ponto de vista de Zilda, o narrador revela-nos o quanto ela se sente revoltada por ter de arcar com essa tarefa solitariamente:

“ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado”. (C.L., 1998, p.58)

“… a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.” (C.L., 1998, p.58)

“…, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente,…”. (C.L., 1998, p.58).

No lugar de uma comemoração prazerosa, nota-se que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas (todos também manipulados pelo dever). Um outro exemplo é a “nora de Olaria” que cumprimenta com cara fechada os da casa.

“Vim para não deixar de vir”,… (C.L., 1998, p. 54).

“a nora de Olaria empertigada… ; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a cunhada de Olaria;…”.(C.L., 1998, p.55).

O papel que Zilda sente-se no dever de realizar é manter, no nível do parecer, a impressão de que estão vivos os laços de família, e a festa de aniversário é a figura do texto que manifesta essa confraternização, que, no nível do ser, se configura como mentirosa – “parece, mas não é”. Assim, a festa, que deveria ser um momento de união e confraternização, não acontece como confraternização, mas como uma comemoração convencional. Nesse sentido, o enunciador parece levar-nos a uma sanção negativa frente à forma de agir da família, e a aniversariante, lúcida e nada ingênua, decepciona-se com os familiares, consegue perceber o papel que cada um está representando, percebe o jogo entre os dois níveis da modalização veridictória; a do parecer, em que há um falso envolvimento dos convidados para a comemoração, e do ser, em que todos estão cumprindo tarefas, não sendo possível, assim, um verdadeiro envolvimento emocional entre eles.

Em contraste com todas as manifestações de carinho, admiração, afeto que recebe, a velha se conserva em silêncio. Silêncio enigmático e ameaçador. A barulheira de filhos e netos não a perturba. Vista de fora, é só uma velha feliz, que se aproxima dos noventa, ainda inteira, cercada dos descendentes queridos que celebram sua longevidade, protegida entre os seus.

No fundo, a velha despreza os seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados só para macaquear a felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que não suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais é que a sustentação de um script.

O narrador nos põe em contato constantemente com o estado de decepção e de angústia de D. Anita, cujo papel actancial é o de personagem sancionador da família, o que se figurativiza no texto por meio de seu monólogo interior, em que se revela o julgamento negativo que imprime à família durante a festa.

“A velha não se manifestava.” (C.L., 1998, p.57),

“ E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.” (C.L., 1998, p.59),

“Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse.”(C.L., 1998, p.60).

“ Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão”. (C.L., 1998, p.60-61).

O ato de “cuspir no chão, é a figura que manifesta, no nível discursivo, o fato de os laços de família não se sustentarem mais, extremamente fragilizados no momento em que se encontram . Com essa atitude, por outro lado, a velha senhora provoca a raiva da filha Zilda, que teme a sanção negativa dos irmãos.

“- Mamãe! Gritou mortificada a dona da casa…., sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia.” (C.L., 1998, p. 61).

Ao final, a velha senhora, manifesta toda sua cólera e revolta em relação à família: “- Me dá um copo de vinho! disse.” (C.L., 1998, p.61),

“- Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.” (C.L., 1998, p. 62)

“- Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! – ordenou.” (C.L., 1998, p.62)

“Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se
manifestava. A festa interrompida,…”
. (C.L., 1998, p. 62).

A família mostra-se perdida diante da polêmica da ruptura que a velha senhora empreende, pois , com sua cólera, faz cair as máscaras da falsidade que adornam o rosto de seus componentes.

“Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, começaram as vozes e risadas.” (C.L., 1998, p. 62).

“As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer.” (C.L., 1998, p.63).

“Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.” (C.L., 1998, p. 63).

O narrador demonstra, por meio da figura “peso”, que todos ali estavam também ansiosos para irem embora.

“E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.” (C.l., 1998, p. 63).

“Pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua.” (C.l., 1998, p66).

“Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais que palavra? Eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto.” (C.L., 1998, p. 66).

As reações violentas da velha interrompem antecipadamente a festa. O ritual ainda se estende um pouco mais, os atores insistem e se esforçam para se ater ao script dos aniversários e sustentar uma felicidade que já foi escandalosamente denunciada. Felicidade que, como um bolo mal batido, desandou. Os filhos, que quase nunca se vêem ou se falam, apressam-se nas despedidas. Um deles presenteia a velha com um doloroso e irônico “até o ano que vem”.

Cantam os parabéns, “festejam”, logo em seguida se despedem e vão embora.

Percebe-se, então, que a festa de aniversário se processa apenas no nível do parecer. O título do conto Feliz aniversário sugere a leitura irônica dos “laços de família” que, na visão do enunciador, se tornam fragilizados, pois a confraternização familiar não acontece verdadeiramente.

A velha senhora de Clarice Lispector, desperta a simpatia pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até que, não cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, despertando, também por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta é se haverá jantar…), a repulsa. Ou, pelo menos, provoca no leitor uma série de sentimentos ambíguos e incompatíveis entre si.

A riqueza do conto está justamente aí: ele não só não oferece, mas também não permite qualquer tipo de solução. Em vez de fechar o caminho do leitor, com uma moral, uma lição, uma teoria, uma tese, ele o rasga, o amplia, o liberta. História breve e de aparência simple, ela conduz a sentimentos paradoxais que, ao fim, só resta suportar.

Fontes: Luciana Sciarretta, Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP | Revista Idiossincrasia

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