Home EstudosLivros Laços de Família (Livro), de Clarice Lispector

Laços de Família (Livro), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Laços de Família inclui-se entre os melhores livros de contos de nossa Literatura. São 13 contos centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento dos indivíduos através dos “laços de família”, de sua prisão doméstica, de seu cotidiano. As formas de vida convencionais e estereotipadas vão-se repetindo de geração, submetendo as consciências e as vontades. A dissecação da classe média carioca resulta numa visão, desencantada e descrente dos liames familiares, dos “laços” de conveniência e interesse que minam a precária união familiar.

Pertencente ao circuito literário nacional dos idos de 1945, Clarice Lispector recebeu influência direta do romance psicológico e do chamado fluxo de consciência presente na literatura irlandesa desde a publicação de Ulisses de James Joyce.

O forte apelo intimista e a miríade de imagens desencadeadas em seus angustiantes textos revelam a própria condição de solidão do homem no mundo.

Há um aspecto a ser levantado nas personagens criadas por ela. Usualmente são moças, velhas, casadas, solteiras, enfim, mulheres e sua realidade social e pessoal deflagradas sob o olhar hipnotizante e martirizador de Clarice.

Devaneio e embriaguez duma rapariga – Chama a atenção pelo virtuosismo da autora de reproduzir com fidelidade as expressões típicas de Portugal (lusitanismos) no fluxo de consciência da protagonista, de fato portuguesa. Essa personagem está entediada com seu papel de esposa e mãe de família, chegando a relaxar em suas tarefas de tal forma que, presa à cama, o marido pensa que está adoentada. É o tédio que se instala. Uma mudança ocorre quando ela e o marido vão jantar com um rico negociante. A protagonista embebeda-se, o que lhe abre caminho para a explosão de vida, longe da mesmice do cotidiano. Fica sempre na vertigem da saída de seus limites, algo até próximo do vexame, mas sente-se segura por ser amparada pela presença de seu marido. Sua felicidade chega a ser comprometida com a chegada no restaurante de uma loira, dona de um padrão de beleza mais em voga na sociedade. A humilhação parece ficar consagrada pelo fato de a nova figura portar chapéu, ao contrário da portuguesa. O jogo é virado quando a portuguesa percebe, ao olhar para a cintura fina da moça, que esta estaria impossibilitada de parir. Conclui: bonita, mas ineficiente no que seria sua função feminina. Isso talvez explique a comparação que a  protagonista faz entre si e uma vaca: leite, maternidade, vida. O resto do conto dedica-se ao triunfo da portuguesa, em meio a uma náusea provocada pela bebedeira, que lhe faz sentir o corpo agigantado. Atinge, aí, sua epifânia. Sente-se bem. É esposa e mãe de família. Em meio à sensação de que o leite está estourando em seu seio, determina que arrumará sua casa, colocará seu lar nos eixos. Assume majestosamente o seu papel feminino.

Amor – Ana, uma mulher casada, pacata e mãe de dois filhos, tinha uma vida doméstica muito calma, donde cuidava dos seus com o esmero e amor típicos de uma pessoa fraterna e sensível, como uma maneira de ocupar o tempo e fugir de si mesma. Nota-se, pois, que não está feliz. Numa tarde, enquanto todos estavam ausentes, resolve fazer compras. No caminho de volta, no bonde, uma cena inusitada ocorre: vê um cego mascando chiclete. Esse ato maquinal feito na escuridão talvez possa ser comparado ao estilo de vida da protagonista. Com certeza, foi um detonador de desequilíbrio na existência insossa da personagem, o que fica simbolizado no tranco que o bonde dá, provocando a queda de suas compras. Tão atrapalhada a personagem fica, que desce no ponto errado. Dirige-se ao Jardim Botânico. É o momento e o lugar de sua epifânia. Diante das árvores, sua emoção é muito grande. Esses vegetais davam frutos, mas também eram sugados por parasitas, o que lhe deu um incômodo nojo (seria uma metáfora de sua condição feminina?). Perde tanto a noção do tempo que, quando se lembra de que tinha uma família para cuidar, descobre que o parque estava fechado com ela dentro. Enquanto se esforça para encontrar alguém que lhe permitisse a saída, realiza uma inversão de valores. Se antes achava anormal, loucura um cego mascando chiclete, agora é o seu próprio estilo de vida, de dona de casa, mergulhado em rotinas domésticas, que se torna uma loucura.

Consegue voltar, dedicando-se ao seu marido e aos seus filhos. Ama-os, mas agora de uma forma incomodante; ama-os sentindo até nojo.

Uma galinha – Pode ser resumido na seguinte indagação do narrador: “Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser?”. É a história de uma galinha que foi comprada para servir de refeição a uma família, mas que consegue fugir num vôo prodigioso e desajeitado. É a luta por vida, mesmo que numa existência da forma mais instintiva. No entanto, é perseguida pelo chefe da família, numa pândega corrida pelos telhados da vizinhança, até ser agarrada. De volta ao lar opressor, no meio do estresse misteriosamente a ave bota um ovo. Mais uma vez a imagem da feminilidade associada à maternidade. Tal ato mostra-se tão sagrado, pois que à véspera da morte ela dá vida, que acaba sendo poupada, tornando-se o xodó da casa. O tempo passa, e com ele talvez todo o aspecto divino de sua feminilidade. Um dia acaba por servir de refeição.

A imitação da rosa – Laura, casada e sem filhos, preparava-se para um jantar na casa de amigos. Era a primeira vez que ela faria isto desde que voltara do hospital, onde fora internada. provavelmente por causa de um surto. Ela pretendia estar pronta, de banho tomado, em seu vestido marrom, a casa limpa e a empregada despachada, quando seu marido, Armando, chegasse. Assim teria tempo livre para ficar à disposição dele. e ajudá-lo a arrumar-se. Laura parecia perseguir a perfeição a todo custo, vigiava-se para ser um esposa modelo, submissa e obediente, mediana até na cor dos cabelos, nem loura, nem morena: de modestos cabelos marrons Ela procura parecer normal, premedita todos os seus gostos. Não quer que os outros se preocupem com ela. Pensa o quanto seria bom ver o marido enfim relaxado, conversando como amigo, no jantar, sem lembrar-se de que ela existe. Exausta e feliz, pois acabara de passar em ferro todas as camisas de Armando. Laura sentou-se na poltrona da sala e cochilou um breve instante. Quando acordou, teve a sensação de que a sala estava renovada. Admirou intensamente as rosas que comprara pela manhã, na feira. Eram perfeitas. Resolveu então dá-las á amiga que iria, à noite visitar. Estava decidido, mandaria as flores pela empregada. Mas, logo depois, Laura hesitava. Por que as rosas, tão bonitas, não podiam ser dela mesma? Por que a beleza e exuberância das rosas a ameaçava? Acabou cedendo-as, a empregada levou as flores, e ela não conseguiu voltar atrás. É provável que a perfeição que Laura vira nas rosas tivesse lhe provocado o impulso de romper novamente com seu lado submisso e servil para se tornar incansável. super-.humana, independente, tranqüila, perfeita e serena. Quando o marido chegou do trabalho, Laura ainda estava sentada na poltrona, e nada tinha feito do que planejara. Dirigiu-se a ele: “Voltou. Armando. Voltou. (..) Não pude impedir. disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava ria sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir. repetiu, (…) Foi por causa das rosas, disse cor,, modéstia(…) Ele a olhou envelhecido e curioso. Ela estava sentada com seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável.”

Feliz aniversário – Um dos mais brutais e perturbadores relatos escritos pela autora. Clarice Lispector tem a maestria de revelar as transformações dos sujeitos de modo profundo, denso, transcendente, epifânico. Suas obras colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando razão e sensibilidade por meio de uma linguagem extremamente poética. Leia mais

A menor mulher do mundo – É carregado de aspectos líricos e simbólicos. Narra a descoberta da menor integrante de uma isolada e frágil tribo africana de pigmeus, os Likoualas. É o elemento mais pária dos párias. Assemelha-se à galinha do conto “A Galinha”, ou a Macabéa, de A Hora da Estrela. Encontrada no coração da África, por Marcel Pretre, um caçador e explorador, a menor mulher do mundo tinha 45cm e era escura como um macaco. Vivia numa árvore com o seu concubino e estava grávida. A sua foto, tirada pelo francês, na qual ela aparecia em tamanho natural, foi publicada em jornais de todo o planeta despertando nas famílias o desejo de possuir e proteger aquele pigmeu do sexo feminino, ser humano em miniatura. Os selvagens Bantos, conterrâneos da menor mulher do mundo, adoravam capturar e comer aquelas miniaturas. As crianças queriam a mulher para brincarem de boneca. “Mamãe, se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein”, disse um menino. Sua mãe olhava-se no espelho e enrolava o cabelo quando ouviu isso, Lembrou-se de uma história contada pela empregada, que passara a vida num orfanato. As meninas da instituição não tinham brinquedos. Um dia, uma delas morreu, e as outras esconderam-na das freiras no armário. Quando não estavam sendo vigiadas, pegavam a defunta como se fosse uma boneca, davam-lhe banho, penteavam-lhe os cabelos botavam-na de castigo, punham-na para dormir… Pensando nisso a mulher considerou cruel a necessidade humana de amar e possuir, a malignidade de nosso desejo de ser feliz, a ferocidade com que queremos brincar. A alma das famílias queria devotar-se àquela frágil criatura africana. Enquanto isso, a própria coisa rara, a menor mulher do mundo, grávida, sentia o seu peito morno de amor. Amava e ria. Amava o explorador amarelo, a sua bota, o seu anel brilhante. Amava e ria, e deixava o homem grande perplexo. Pequena Flor, era assim que o francês a chamava, sabia que o amor era não ser comida pelos Bantos, era achar uma bota bonita, gostar da cor do homem que não é negro, e rir. O explorador não entendia o amor que lhe saía por aquele riso. Ele, que já conhecia um pouco da sua língua, fazia-lhe algumas perguntas, às quais Pequena Flor respondia “sim”, “Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo, pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir.”

O Jantar – É o primeiro a apresentar o foco narrativo centrado numa figura masculina, que se põe a observar com detalhismo incrível um outro homem jantando. Na realidade, não é uma simples janta, mas um espetáculo do vigor primitivo diante do mais primordial ato da existência: alimentar-se. A metáfora para isso está na mão pesada e cabeluda do faminto manipulando os diferentes manjares. Num restaurante, um homem observa atentamente um velho a comer. Ambos não se conheciam. A brusquidão e a dureza do velho chamaram a atenção do homem, que lhe vigiava cada gesto. Até que o homem, extasiado, e sentindo certa náusea, percebeu no velho uma lágrima. Então, não tocou mais no prato, enquanto o velho terminou a sua refeição, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garçom e atravessou o salão, luminoso, desaparecendo. O observador medita: “eu sou um homem ainda.” “Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruiria. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue”.

Preciosidade – Tematiza delicadamente a iniciação feminina. Sua protagonista é uma menina que vivia a constante tensão de sempre se guardar. Sabia que possuía uma preciosidade, pois é uma mulher, mas nem sequer pensava no potencial que ela permitia. Temia a possibilidade dos homens por onde ela passava fazerem ou mesmo falarem alguma coisa proibida. Vivia, pois, na tensão da possibilidade de um ataque à sua feminilidade. Ela era uma estudante de 15 anos, não era bonita, mas tinha sua preciosidade. A mocinha, protagonista deste conto, atravessará este estado transformando-se em mulher, rito em que se dará a perda do que lhe é precioso possivelmente sua virgindade. Acordava muito cedo para ir à escola, precisava tomar um ônibus e um bonde, além de caminhar até o ponto. O caminho era difícil, não gostava que a olhassem. Andava rígida, severa, não admitindo sequer que os homens no ônibus ou os rapazes na escola pensassem nela. Mas o barulho de seus sapatos com saltos de madeira chamavam a atenção de todos, o que a perturbava terrivelmente. Ela era inteligente e aplicada nos estudos (uma maneira de ser respeitada e manter os homens afastados), À tarde tinha em casa apenas a companhia dos livros e da empregada. Certa manhã, ao sair para a escola, só na rua percebeu que ainda estava muito escuro, quase noite. Prosseguiu, enfrentando a madrugada. A caminho do ponto, viu na rua dois rapazes que andavam em sentido oposto ao seu. Procurou manter o ritmo e a calma, eles passariam por ela e continuariam naquela direção, distanciando-se. Avançou, procurando não olhar para eles, nem demonstrar medo. Mas o que se seguiu não teve explicação. (..) foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada,” Na fuga os sapatos dos dois rapazes fizeram um barulho louco que soou por algum tempo na sua cabeça. Ela premiu-se contra o muro, ficou ali impossibilitada de qualquer ação, até que, lentamente, começou a mover-se, catar os seus livros e cadernos, e neles via a sua antiga caligrafia. Ela era outra. Dirigiu-se à escola, onde chegou com duas horas de atraso. Não falou a ninguém sobre o que ocorrera. No banheiro, gritou: “estou sozinha no mundo!”. Em casa, durante o jantar, reivindicou:” Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção ao que lhe responderam: “Você não é uma mulher e todo salto é de madeira.” “Ate que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, do ser preciosa.

Os laços de família – Depois de duas semanas de visita, Catarina levava a sua mãe para a estação, onde a senhora tomaria o trem e se despediria da filha. Elas estão no táxi. Catarina recorda-se do desconforto causado pela breve convivência entre a sua mãe e o seu marido. O genro e a sogra mal se suportavam. Mas, na hora da partida, ambos encheram-se de generosidade e delicadeza. Catarina tinha vontade de rir. Ria então pelos olhos, como permitia seu estrabismo. A mãe desta jovem mulher chamava-se Severina, A severa mãe, em tom de desafio e acusação, lembrava o quanto o menino, seu neto, estava magro. Magro e nervoso.” Catarina concordava, paciente. Antônio, esposo de Catarina e pai do menino nervoso, certa noite irritou-se profundamente com tais observações da sogra. De repente, uma freada do carro lançou as duas mulheres uma contra a outra, provocando entre elas uma brusca intimidade de corpos já esquecida. Era como se lhes acontecesse um desastre, uma catástrofe irremediável. Não esqueci nada?”, perguntava Severina pela terceira vez. Elas evitaram olhar-se até a estação. Catarina nunca fora de muitos carinhos e intimidades com a mãe. Fora, sim. uma filha muito próxima, muito achegada ao pai, cheia de beijos, abraços, cumplicidade. Dentro do trem, como elas não tivessem o que dizer, a mãe retirou um espelho da bolsa, examinando a sua aparência. Quando a campainha da estação tocou, mãe e filha se olharam assustadas, chamando uma pela outra. Parecia que, todos aqueles anos, elas se tinham esquecido de dizer algo, como: ‘sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha”. Mas não o disseram, fizeram-se recomendações. mandaram lembranças para os parentes, e o trem se foi. Agora, sem a mãe, Catarina recuperava o seu modo firme de andar. Caminhar sozinha era mais fácil, nada a impediria de subir mais um degrau misterioso nos seus dias. Catarina voltou para casa “disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito.” Encontrou o marido na sala, lendo os jornais de sábado, o seu dia tomado de volta com a partida da sogra. O menino magro e nervoso estava no quarto, distraído… Procurando chamar a atenção do filho, a mãe sacudia uma toalha na sua frente. Foi quando. pela primeira vez, o menino lhe disse: ‘Mamãe’, sem nada pedir, e num tom diferente do que usava antes. Alguma coisa se quebrara entre eles e Catarina estava extasiada, O seu corpo inteiro riu, não só os olhos. Tomou o seu filho pela mão e saíram para um passeio, deixando Antônio atônito na sala, sem saber aonde iam O homem dirigiu-se a janela e viu, já na calçada, a mulher e o filho. Ele olhava pela janela, a mulher andando depressa com o filho. Sentia-se frustrado, ela tomava sozinha o seu momento de alegria. Decidiu que depois do jantar iriam ao cinema. Depois do cinema, seria noite. E “este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador”.

Começos de uma fortuna – É diferente do conjunto, pois apresenta uma personagem masculina, um adolescente. Trata-se de Artur, alguém que luta por atenção, o que o faz adorar trocas. Como numa psicanálise, o narrador entra na gênese desse sentimento. Quando bebê, o menino adorava que as pessoas o abraçassem, o acariciassem, apertassem sua bochecha. Mas estranhava que logo se cansavam e o largavam, tão cheio de vida, tão carente, tão sedento por mais atenção. Paravam, saciavam-se, mas ele não, sempre ficando no vácuo. Artur é um garoto obcecado por dinheiro. O conto gira em torno das suas preocupações em como ganhá-lo: dai, a presença de palavras como mesada e frases como: “logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro” ou “basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima. Indo ao cinema com o seu colega Carlinhos, com Glorinha e uma amiga desta, Artur se mostra menos preocupado em divertir-se do que em imaginar se está sendo explorado ou não. De certo modo, Carlinhos é o oposto de Artur: acredita que dinheiro existe para ser gasto, preocupando-se menos em ganhá-lo do que em ganhar uma garota. Já Artur não pretende tomar quantias emprestadas (para não ter de devolvê-las), não planeja empregá-las em coisas. No entanto, ele se vê obrigado a fazer um empréstimo com Carlinhos, uma vez que não tem como pagar a entrada de cinema para Glorinha.

Mistério em São Cristóvão – Denso de simbologia. Em uma noite tranqüila de maio, uma família composta de avó, mãe, pai, crianças e uma filha aproveitam a abastança a que atingiram. A única insatisfação está no coração da moça.

Quando de madrugada todos foram dormir, surgem três homens fantasiados para um baile. Um galo, um touro (o mais gordo) e um cavaleiro. Passam diante da casa abastada e admiram o jardim. Invadem-no, para colher um jacinto, curiosamente a flor que chega a representar os prazeres da existência. A idéia de equilíbrio, comodismo, abastança, é oposta à de intensidade da vida. Viver é de fato um desequilíbrio. Mas a flor não chega a ser de fato colhida. Fica pendurada no ramo quebrado. É que no momento em que ia ser colhida, o homem-touro nota que estão sendo observados, justo pela moça. O lar desequilibra-se. Terror. Medo. Todos acordam, mas não conseguem ver o motivo do desassossego da moça – os rapazes haviam fugido, entregando-se desajeitadamente à festa que os esperava. A ex-abastada família chega a duvidar que alguém tivesse estado lá, mas obtém a certeza quando vê o talo quebrado da flor de jacinto. A partir desse momento, todos se esforçam para reconquistar o equilíbrio em suas vidas. Menos a moça, agora dotada de fios de cabelo branco.

O crime do professor de matemática – Dotado de elementos religiosos como missa, pecado, juízo final. Seu protagonista, um professor de Matemática (símbolo da frieza, precisão, objetividade) vai até a parte mais alta da cidade enterrar um cachorro. É uma forma de compensar o seu cão de estimação que havia abandonado. O que o animal havia feito de errado? Nada. Apenas tinha feito do pedagogo o homem que seria seu dono. Ser humano era uma tarefa que incomodava, assustava o mestre, principalmente quando o bicho encarava, não cobrando nada, apenas humanidade. No final, o homem desenterra o cão e se esquece do crime que havia cometido (abandonar o cão ou não ter coragem de ser humano?). Desce a montanha (como se estivesse em posição mais elevada, mais consciente de suas falhas e caísse na alienação?) e volta para o “seio de sua família”. Mergulha, provavelmente, na apatia de sua existência. Era domingo, os católicos dirigiam-se à igreja. Um homem os observava da colina mais alta da chapada. Carregava um saco pesado na mão e, nas costas, a culpa de um dia ter abandonado um cão com o qual tinha uma relação de afeto. De dentro do saco o senhor retirou um cachorro morto. Era-lhe desconhecido, sentou-se ao seu lado e observou, solitário, a paisagem ao redor, a chapada deserta com a sua única árvore. Do saco tirou uma pá e começou a pensar onde enterraria o defunto. Talvez rio centro da chapada, lugar em que ele mesmo gostaria de ser enterrado. Diante da dificuldade de determinar a exata posição do centro da chapada, resolveu enterrá-lo ali mesmo, precisamente embaixo dos seus pés. Pegou a pá e pôs-se a cavar. O crime do professor de matemática não consistia em ter matado o cão desconhecido. Encontrara-o já morto, numa esquina, e surpreendera-se com a idéia de enterrá-lo. O corpo do cão representava para ele o cão verdadeiro, o que abandonou ao mudar-se com a família de uma cidade para aquela em que agora vivia. Enfim, o professor enterrou o cão, bem à superfície, para que não perdesse a sensibilidade. Para o homem, esse ato era a maneira que achara de redimir-se do seu pecado, de punir-se do seu crime com o outro cão, o abandonado. Sentindo-se finalmente livre, o homem pôs-se a pensar no verdadeiro cão, como quem pensasse na verdadeira vida, Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias á tua”, pensou com saudades. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma, (…) Quanto me amaste mais do que te amei. Refletindo a relação que estabelecera com o cão, o homem revelará aos poucos os motivos que tornaram impossível a convivência entre ambos: “E, abanando tranqüilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. (…) Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era o ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que entendêssemos. Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso que pouco a pouco me ensinavas, e era isso também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada , me pedias demais. De ti mesmo exigias que fosses um cão. De mim exigias que eu fosse um homem.” A cabeça matemática e fria do homem pouco a pouco entendeu que o que fizera ao cão era impune e definitivo, pois “não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições’. O professor, então, passou a olhar a cova onde havia enterrado sua “fraqueza e sua condição, e era como se “José, o cão abandonado, exigisse dele (…) num último arranco, que fosse um homem e como homem assumisse o seu crime. O professor não queria mais se sentir livre de seu crime, não seria nunca um homem se abandonasse tão facilmente também sua culpa. “Agora. mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido.” O homem. lentamente, desenterrou o cachorro desconhecido e renovou o seu crime para sempre. transformando em um verdadeiro homem, o professor desceu a chapada.

O búfalo – Nele a protagonista, vinda de um fracasso amoroso de não ser correspondida, quer odiar. É provavelmente um mecanismo de defesa, de acordo com uma frase que se fixa em sua mente: “Onde aprender a odiar para não morrer de amor?” Dirige-se, portanto, ao zoológico, na esperança de que, em contato com formas tão primitivas, conseguisse tão destrutivo sentimento. No entanto, não encontra esse sentimento, muito menos atenção. Sua  experiência parece fadada ao fracasso. Até que passeia na montanha russa. Sentir-se jogada em todas as direções é um solavanco semelhante ao vivenciado pela personagem de “Amor”. É um desequilíbrio que abre caminho para experiências superiores. Até que se depara com o torso volumoso de um búfalo, algo próximo da simbologia sexual masculina. A protagonista parece desejá-lo, mas momentaneamente cai na mesma armadilha do amar: é ignorada, pois o animal lhe dá as costas. No entanto, em pouco tempo, como que instintiva e intuitivamente, o animal sente a presença da mulher. Aproxima-se dela e a encara. É um contato fortíssimo, em que ela sente a explosão de algo como um misto de ódio e amor, da forma mais primitiva e, talvez por isso, mais intensa. É a sua epifânia, que se assemelha a um êxtase sexual.  O conto termina com o desmaio da protagonista, que tem em seus últimos momentos de consciência as idéias do céu e do búfalo misturando-se. “Eu te odeio” disse a mulher, muito depressa, a um homem que não a amava. Mas a mulher só sabia amar e perdoar, e ‘se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida’. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim zoológico em busca de um animal que lhe ensinasse a odiar. Encontrara amor nos leões, na girafa, nos macacos. O camelo fizera-lhe topar com a paciência e a poeira. Só a última, e a sua aridez, a interessava. A aridez e não mais as lágrimas. Onde estaria o bicho que lhe daria o sentimento que procurava? Com a sua violência, sozinha, foi para a ‘fila dos namorados”, esperando a sua vez de entrar no carrinho da montanha russa. Depois de ser sacudida no ar como uma boneca, saiu pálida, como se fora “jogada fora de uma igreja”. Voltou a andar, procurando o animal e o ódio. Encontrou o búfalo, que a espiava ao longe. Ele era negro e seus cornos muito alvos. A mulher ficou desconfiada, parecia que o búfalo a olhava. Ela desviou os olhos, o seu coração batia descompassado. “O búfalo deu uma volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco. (…) Uma coisa branca espalhara-se dentro dela (…). A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo e longo suspiro ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera.’ O animal agora lhe parecia mais negro e maior. Começou a provocá-lo, gritando e jogando-lhe pedras. O ódio, como um fio de “sangue negro’, como gotas de “óleo amargo” começou a pingar dentro dela, “fêmea desprezada”. O búfalo voltou-se para ela e encarou-a de longe. “Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo’. O búfalo, provocado, aproximou-se lentamente. “Ele se aproximava, a poeira erguia-se’. Como a mulher não recuava um só passo, os seus olhos e os do animal fitaram-se diretamente. “Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. O olhar a mantinha presa “ao mútuo assassinato (.) como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo’.

Posts Relacionados