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Memorial de Aires, de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Memorial de Aires, romance psicológico e última obra de Machado de Assis, foi publicado em 1908, mesmo ano da morte do escritor. A obra tem por tema os idílios amorosos e as futilidades de personagens pertencentes à elite brasileira do fim do século XIX. A crítica afirma que foi nesta obra que o genial escritor mais expôs os seus valores subjetivos, fugindo um pouco à sua característica mais marcante: a isenção narrativa.

O romance opera um verdadeiro retrocesso na obra machadiana. Nele o romancista retorna à concepção romântica, mitigada pelo ceticismo risonho do conselheiro Aires. Ai se respira a mesma atmosfera dos seus primeiros romances: os seres são de eleição e a vida gira em torno do amor. Distingue-o, porém, e torna-a muito superior àqueles a mestria do ofício, o domínio do instrumento.

Como novidade, traz a forma de diário e o narrador não é onisciente; observa como simples comparsa os personagens principais, procura adivinhar-lhes o íntimo através de suposições próprias ou através de informações alheias.

Como Memórias Póstumas de Brás Cubas, esta obra não tem propriamente um enredo: estrutura-se em forma de um diário escrito pelo Conselheiro Aires, que é o mesmo personagem-narrador da obra anterior do autor, Esaú e Jacó, que pouco age e passa a maior parte da narrativa contemplando placidamente as aventuras amorosas e existenciais dos jovens ao seu redor.

O diário compreende dois anos na vida de um sexagenário que, com sua proverbial mas plácida sabedoria, ilude e engana o leitor com pequenas observações carregadas de perspicácia. Nele o narrador relata, miudamente, sua vida de diplomata aposentado no Rio de Janeiro, de 1888 e 1889. Sucedem-se, nas anotações do conselheiro, episódios envolvendo pessoas de suas relações, leituras do seu tempo de diplomata e reflexões quanto aos acontecimentos políticos. Destaca-se, dando uma certa unidade aos vários fragmentos de que livro é composto, a história de Tristão e Fidélia. Trata-se de um livro concebido em tom íntimo e delicado, às vezes repleto de melancolia.

Nele Machado de Assis pôs muito dos últimos anos de sua vida com Carolina, falecida quatro anos antes da publicação. Não há muito que contar, senão pequenos fatos da vida cotidiana de um casal de velhos. O estilo é de extrema sobriedade, e o autor, já na velhice, pretendeu com este livro prestar um depoimento em favor da vida, ainda que em tom de mal disfarçada tristeza e até mesmo desolação.

Escrito após a morte de Carolina, revela uma visão melancólica da velhice, da solidão e do mundo. D. Carmo, esposa do velho Aguiar, seria a projeção da própria esposa de Machado, já falecida. A ironia e o sarcasmo dos livros anteriores são substituídos por um tom compassivo e melancólico, as personagens são simples e bondosas, muito distantes dos paranóicos e psicóticos dos romances anteriores. Alguns vêem no Memorial de Aires uma obra de retrocesso a concepções romantizadas do mundo; outros tomam o romance como o testamento literário e humano de Machado de Assis.

Memorial de Aires é apontado como o romance mais projetado da personalidade de Machado de Assis.

Enredo

O conselheiro acompanha com interesse humano (talvez amoroso) a jovem viúva Fidélia, praticamente adotada por um casal de velhos sem filhos, Dona Carmo e Aguiar. Estes tinham experimentando uma grande decepção quando um rapaz a quem se afeiçoaram, como se fosse seu filho verdadeiro, Tristão, mudara-se para Lisboa com o fim de freqüentar a escola de medicina. Tristão retorna e acaba se casando com Fidélia. Em seguida, para tristeza dos velhos, o jovem casal viaja para Europa.

O romance termina com o Conselheiro Aires acompanhando com discreta piedade a solidão do casal Aguiar e Carmo, no qual muito críticos viram as figuras de Machado e de sua esposa, Carolina.

Trechos da obra

Transcrevemos, a seguir, alguns fragmentos do diário do Conselheiro Aires, que nos remete à solidão do casal Aguiar-D. Carmo, após a partida de Tristão e Fidélia. Observe a dolorosa reflexão sobre a velhice.

29 de agosto

“Assim correram as cousas, a mentira e os efeitos. Os dous procuramos levantar-lhes o ânimo. Eu empreguei algumas reflexões e metáforas, afirmando que eles viriam este ano mesmo ou no princípio do outro; bastava saberem a dor que causava aqui a noticia.

D. Carmo não parecia ouvir-me, nem ele; olhavam para lá, para longe, para onde se perde a vida presente, e tudo de se vai depressa. Aguiar ainda pegou na carta que o Desembargador lhe mostrava, leu para si as palavras de Tristão, que eram aborrecidas em si mesmas, além da nota que o autor intencionalmente lhes pôs. D. Carmo pediu-lha com o gesto, ele meteu-a na carteira. A boa velha não insistiu. Campos e eu saímos pouco depois.

30 de agosto

Praia fora (esqueceu-me notar isto ontem) praia fora viemos falando daquela orfandade às avessas em que os dous velhos ficavam, e eu acrescentei, lembrando-me do marido defunto:

– Desembargador, se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos… Viva a mocidade!

Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos deixados pelos dous moços, e conclui que a mocidade tem o direito de viver e amar e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não concordou,- que mostra que ainda então não me entendeu completamente.

Sem data

Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora à tarde lembrou-me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei e parei logo. “Lá estão eles, ” disse comigo.

‘Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D, Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar; consolava-os a saudade de si mesmos”.

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