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Na Vertigem do Dia, de Ferreira Gullar

by Lucas Gomes

Publicado em 1980, Na vertigem do dia proclama o retorno de Gullar
às terras brasileiras, depois do período em que esteve no exílio.
Em tal obra, encontramos uma poesia mais madura cuja densidade nos permite dimensionar
o constante dialogar de seu obrar com o seu próprio ser-poesia.

Neste sentido, Na vertigem do dia nos apresenta um poeta que, ainda
de dentro da noite veloz – “vida que muda o morto em multidão”
– imundo por seus versos sujos, espelha a queda rumo à reflexão
mais profunda da “vida que sempre muda” e se perpetua configurada
na pausa da noite. Agora, acolhido na vertigem, Gullar se depara com o escuro
em meio à claridade, possibilitando-nos ver o não-visto de tudo
o que se mostra: “punho da vida fechada dentro da lama”. Nascer
dos frutos sob a pele da treva irrompendo como dia dentro do chão.

Ou seja, Gullar em seu obrar, como relâmpago na escuridão, percorre
a travessia em busca da conquista própria de sua propriedade. Tal procura
pode ser percebida, por exemplo, nos poemas intitulados “O espelho do
guarda-roupa”, “OVNI” e “Traduzir-se”:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem

Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Apesar do cunho fortemente ideológico, transparecendo explicitamente
na seleção temática e lexical, o resultado do discurso
poético de Gullar em Na vertigem do dia não é
de modo algum panfletário. Isso porque, antes de um instrumento de combate
político, face à maturidade do exercício poético,
na fase que sucede o movimento militar de 64, ele faz poesia. A linguagem é
elaborada de modo a produzir o melhor efeito como objeto artístico.

A começar pela disposição do papel, mesmo se tomarmos
em consideração a série literária do autor, o poeta
tende mais a uma ruptura com o convencional. No poema “A voz do poeta”,
por exemplo, os versos se alinham de forma usual nas duas primeiras estrofes:
então, na estrofe seguinte, dois versos saem fora desse esquema, não
para o interior da margem, mas, ao contrário, indo mais à esquerda,
sendo que na seqüência os versos voltam ao alinhamento inicial. Em
outros casos, como o poema “O poço dos Medeiros”, ou ainda
“Improviso para um moça do circo”, ou “Bananas podres”,
aparecem versos soltos, isentos de um alinhamento determinado, apesar de que
a maioria dos outros versos, nos mesmos poemas, tenham o alinhamento formal
pela esquerda. O efeito se torna tão especializado em alguns casos, como
o do poema “A ventania”, que a disposição dos versos
no papel dá sentido visual ampliado ao significado do conjunto temático,
numa perfeita alegoria semiótica:

A ventania
não é voz alguma –
é só rumor
               lá
fora
enquanto leio Hoffmann
                                        (enquanto
                                        minha
mãe costura e o arroz
                                        no
fogo
                                        recende
a família)

A impressão que se pode abstrair daí é a de que há
efetivamente uma rajada de vento empurrando o conjunto gráfico do texto
para a direita do papel. Num sentido alegórico, pode-se depreender desse
recurso que o deslocamento da parte entre parênteses enfatiza a ação
do vento; no presente do sujeito poético, empurra o mesmo para o ambiente
familiar da infância – objeto de sua recordação. Esse
expediente construtivo vem, sem dúvida, da experiência concretista,
ou melhor, da neococrentista, pelas quais passou o poeta.

Tanto no aspecto temático, quanto no da seleção vocabular,
percebe-se a preocupação de Ferreira Gullar em pôr-se ao
lado do oprimido. Ao mesmo tempo em
que o poeta, através da sensibilidade privilegiada, observa o mundo,
ou recupera em alegoria as situações do passado, vai-se inserindo
ao meio que pretende focalizar, e se compromete efetivamente com ele, no sentido
de revelar que a ordem social retratada existe de fato, como um aviso até
mesmo para os que fazem parte dela.

Quanto à seleção lexical, observa-se, ao longo dos versos
de A vertigem do dia, a convivência, tornada natural pelo procedimento
alegórico, ainda que soe estranha, de símiles e metáforas
ao lado de expressões populares, formas comuns de comunicação
coloquial. Frases e termos tais como: “quebrada a pau”, “vida
de merda”, “Meu espaço, cara”, ou do calão: “culhões”,
“putas”, “amásias”, “bacano” etc., ao
lado de formas literárias bem compostas e jogos verbais: “dopá-las
com emulsões de castidade “, “é como um acrobata/estendido
sobre um relâmpago”. Da mesma forma, é interessante como o
poeta recolhe elementos para a formação de alegorias, a partir
de substantivos que identificam objetos comuns do cotidiano da média
dos brasileiros, como é o caso de “neocid”, “Fla-Flu”,
“CPF”, “desodorante”, “leite de magnésia ”
etc… Isso representa uma estética que se institui a partir do que é
preterido pelo chamado bom-gosto, pelo refinamemento das elites. Gullar nomeia
e tematiza, revestindo de um sentido novo, como é próprio do alegorista
benjaminiano, tudo o que é relegado a um segundo plano numa sociedade
de consumo, marcada pelo descartável ou pelo indesejado, o que envolve
inclusive os indivíduos que formam as camadas inferiores (assim classificadas
segundo a ótica da ideologia dominante). Mesmo a história oficial
recebe um tratamento de banalização, para reforçar a opção
de classe feita pelo poeta que privilegia a verdade do cotidiano, em detrimento
da falácia histórica dos opressores.

Em alguns momentos, o próprio sujeito poético se apresenta como
trivialidade, entre ociosas, como diz no poema “Rés do chão”:
O espelho reflete o vidro de colônia (…) não reflete
a mim / deitado fora de ângulo como um objeto que respira
“;
ou, ainda, como em “OVNI”: “SOU uma coisa entre coisas
(…) uma coisa onde o tempo / deu d
efeito”. Noutras situações,
o poeta reduz os fatos e caracteres humanos a um nível que os aproxima
dos animais ou vegetais. Nessas alegorias há uma dimensão inusitada
das condições humanas encareci das em outras esferas do conhecimento.
Por exemplo, no poema “A alegria”, em que trata do sofrimento, paradoxalmente,
o poeta começa afirmando que “o sofrimento não tem nenhum
valor”, e mais adiante coloca “A dor / te iguala a ratos e baratas”.
No poema “Bicho urbano”, ao contrário do que comumente se faz,
compara o morador da cidade a um “bicho”, qualitativo usual em relação
ao morador do meio rural: “bicho do mato”. Na inversão que
propõe, muito ao caráter da alegoria, o poema vai mais além,
quando trata da desumanização do homem urbano em seus processos
mecânicos de relacionamento. Esses, ao invés de valorizarem o homem,
retiram o que de mais digno ele tem, tornando-o menos nobre:

me perdi, necessito
deste rebuliço de gente pelas ruas
e meu coração queima gasolina (da comum)
                      como
qualquer outro motor urbano

No poema citado, ainda merece atenção o fato já mencionado
da voz coletiva em Gullar. O poeta diz: “Como tantos outros brasileiros”.
Duas são as preocupações constantes na sua poética,
que se podem notar neste poema: a ação do poeta, em produzir o
verso, e a situação do povo, tematizada por ele. No poema “A
voz do poeta”, professa o cuidado em construir uma poesia a partir da
experiência humana, cujas representações alegóricas
(a busca de um particular para o universal) se dão pela sua própria
vivência e a do homem comum brasileiro. Para o poeta, o poema não
é “voz de passarinho”; ainda que agradável, essa é
uma manifestação natural, espontânea, à parte da
experiência do homem; não é flauta, viola ou violão,
pois a música, como arte não mimética, não reproduz
concretamente uma experiência de choque; o poeta propõe: “é
a voz de gente – poema”.

Também há uma relação naquela alegoria no sentido
de que a voz produzida por essa “gente” se aproxima do som que os
objetos, os vegetais e os animais produzem: barulho. Aliás, alegoria
empregada comumente quando trata das manifestações populares em
reivindicações públicas. As coisas em geral, para o poeta,
só fazem sentido pelo barulho que possam produzir. As imagens por si
só pouco representam:

barulhos
sem os quais
não haveria tardes nem manhãs

O aspecto acima apontado junta-se a outro para compor o procedimento alegórico
do poeta, em seu relacionamento com o universo enfocado. Processo pouco usual
em termos de produção poética, é recorrente, em
Na vertigem do dia, o reconhecimento de coisas ou situações pela
percepção de seus cheiros. A par do que já se disse sobre
barulhos, há uma forte preferência do poeta pelo olfato, o que
o difere do geral, em que predomina a visão, o sentido considerado mais
nobre no homem. Diante de uma realidade inóspita, agressiva, não
basta olhar, ou, falando de construção poética, manifestar
uma impassibilidade parnasiana, é preciso tomar contato integralmente.
Algumas vezes a fusão de cheiros resulta ambígua, mas não
menos enfática que a presença de um mau cheiro, o que ressalta
a importância que o olfato, um sentido apurado no reino animal, tem para
o poeta neste seu afã de recuperar alegoricamente a crueza do contexto.

Esse conjunto de elementos já dá mostras da obsessão
pela alteridade, em que o poeta abre espaços no universo poético
para a inserção, em sua identidade, da
identidade de um povo, cuja nacionalidade, em crise, recompõe alegoricamente
a sua própria busca de afirmação individual: “Para
uma vida de merda / nasci em 1930 / na Rua dos Prazeres.
” Como se
pode notar, a opção pela alegoria desfaz um possível tom
emotivo, intimista e particular; o arranjo instala a função poética
para além da trivialidade do discurso. Ainda que faça referências
a lugares e tempos concretos, como no trecho: “Sobre a cômoda em
Buenos Aires”, a perspectiva de tal lirismo é atingir o interesse
permanente e universal, pois, através de uma construção
bizarra, associando um móvel próprio do ambiente restrito e íntimo
do quarto com uma cidade, a maior da América do Sul, tanto a cômoda
ganha um superdimensionamento, como o espaço urbano enfocado se reduz
ao âmbito restrito da intimidade doméstica. No exagero da metonímia,
perdura a alegoria de um cidadão exilado, distante e próximo ao
contexto que coloca em xeque a dignidade humana do homem humilde, trabalhador
– no Brasil.

No outro trecho, anteriormente citado, a expressão “vida de merda”
se opõe ao nome que aparece como endereço: “Rua dos Prazeres”;
quer dizer, o sujeito enunciador afirma de imediato que não veio para
se estabelecer segundo a oficialidade da ordem vigente, professando que a sua
trajetória deve ser outra, que se constrói ao longo do discurso
poético como sendo o da superação da vivência pessoal
do choque, elevada a um plano e um valor abrangentes, o de ser voz do povo,
sempre e contudo tendo como gênese o concreto.

O fazer poético não se encaminha, desse modo, ao vazio, mas
a uma experiência de transformação. Nesse sentido é
que o acervo de lembranças da infância denuncia uma insatisfação
com o presente, retratado como carente de modificação. “Os
homens se amparam em retratos
.” Mas não é apenas de
passado que se constrói a sua poesia, e sim de um resgate do que de positivo
o passado é feito, como uma projeção para o futuro:

pelo que virá enfim
não digo que a vida é bela tampouco me nego a ela:
– digo sim.

A rima, quase ocasional no conjunto da obra analisada, neste poema reforça
a relação de uma expectativa em relação ao vindouro
e à necessidade de resistir no presente, ainda que a realidade se mostre
adversa: combinam-se duas palavras importantes para este significado –
“enfim”, o que está no futuro, mas que é inelutável,
e “sim”, a afirmação para uma realidade não desejável,
mas à qual cumpre resistir em nome da vida.

O poema “Traduzir-se” reflete a profissão de fé de
Gullar no exercício de uma poética em um discurso que só
abrange a sociedade, porque investiga o mais fundo da subjetividade. O poeta
se revela contido e grave durante o que vai expondo. Nas rimas que apresenta
este poema, segue seu esquema peculiar de ajustar dois vocábulos fortes
e de importância capital para o significado total: “mundo/fundo”,
“multidão/solidão”, “pondera/delira”, e
assim por diante.

Até o sexto verso há a reiteração, quase que como
um refrão, dos dois aspectos fundamentais abordados no texto: “Uma
parte de mim/outra parte”. Em quase todos os poemas de Gullar é
possível traçar dois paradigmas, que se resumem em antinomias
existenciais, reveladoras da missão do poeta em seu desdobramento de
sujeito poético e sujeito histórico. Pelo esquema de pontuação
adotado, pode-se obter uma alegoria da relação entre o eu-indivíduo
e o eu-coletivo. A primeira parte, denominada de “Uma parte”, seguida
de uma identificação, introduz a parte seguinte, denominada de
“outra parte”, através de dois pontos. Esse sinal é
usado, em linguagem corrente, como indicativo de uma enumeração,
citação ou aposto. O que, numa leitura alegórica, denuncia
a indicação de que a “outra parte”, na verdade, está
contida na primeira, ou talvez lhe é predicativa; ou seja, uma não
exclui a outra, melhor, definem-se pela complementaridade.

Na primeira parte encontra-se aquela identificada apelos termos “todo
mundo” e “multidão”; a ela são apresentados alguns
atributos, ao longo das estrofes: é a que “pesa e podera”,
portanto racional e lúcida; também almoça e janta. Para
a “outra parte” reserva os predicativos: “ninguém”,
“estranheza e solidão”. Quando apresenta o pronome indefinido
“ninguém”, acrescenta o aposto metafórico, “fundo
sem fundo”.

Pode-se inferir na alegoria que esta é a parte que fica por detrás
(pano de fundo), ou a mais íntima, e neste caso, sem fundo, inatingível
em seu extremo ou remoto, incompleto e incompletável – o inconsciente.
A ela também é atribuído o delírio, como oposição
à racionalidade da parte anterior, e mais o ato de se espantar, como
oposição à acomodação da rotina. Adiantando
o sentido da estrofe final, parece haver uma ambiguidade na proposição
das duas estrofes que a antecedem. Aquela parte que vinha em primeiro lugar
nas estrofes iniciais se atribui agora o valor de permanente. Contudo, ao que
parece, esta parte é aquela que alegoriza o ser humano, de carne e osso,
racional, social (na multidão) e portanto finito, contingente, perecível.
Ao contrário, a “outra parte”, mais ligada ao imaginário,
“ninguém” abstração pura, agora é apresentada
como inteirada da sua efemeridade, quando na verdade, como diz Neruda, os velhos
poetas permanecem vivos nos seus poemas. Da mesma forma, na estrofe seguinte:
da “primeira parte” se diz que é só vertigem, estado
físico de fraqueza, tontura, perda de sentidos, e também delírio.
Estado que, por extensão pode ser aplicado ao êxtase, ao fato de
alguém ser tomado de súbita compulsão para a expansão
do imaginário. Mas é a outra parte que aí aparece, a que
cria, que constrói a partir da linguagem. Contudo, a outra parte, a humana
e civil também pretende ser voz, ser fala efetiva. A estrofe final aponta
para a chave desta ambigüidade: o que o poeta se propõe é
justamente, no âmbito da poesia, traduzir uma parte na outra parte, até
que sejam uma.

Não apenas por uma simples simbiose, mas numa dimensão existencial.
“Ninguém”, no poema, é uma alegoria do espaço
em aberto, democrático, a intenção de dar lugar a “todo
mundo”. “Ninguém” é o povo, o zé-ninguém,
o marginalizado. Tal poesia é mais do que arte, é estand/arte,
grito de alerta. A linguagem dos que são só vertigem, e a vertigem
dos que são linguagem sem ação. Só se torna permanente
porque o povo é permanente em sua união, pela sucessão
de heranças culturais. A unidade, no único, é perecível,
mas a multidão, no todo, é perene – se não no mundo,
na realidade brasileira, ao menos na alegoria, como índice de possibilidades
históricas.

A obra Na vertigem do dia reúne não só poemas
que sucederam Poema Sujo, mas também textos escritos há
muito tempo e que não tinham sido publicados.

Créditos: Orlando Fonseca – Professor do Departamento de Letras
Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) | Bianka Barbosa
Penha, V Congresso de Letras da UERJ – São Gonçalo

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