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O calor das coisas (Livro), de Nélida Piñon

by Lucas Gomes

A obra O calor das coisas, de Nélida Piñon, é
um livro de contos que tratam de circunstâncias presentes no cotidiano
das pessoas. São treze histórias nas quais é fácil
perceber as mesmas preocupações da autora: a importância
da palavra e a manipulação política da linguagem. Desta
vez, porém, há uma grande carga de humor. De fina ironia e construção
complexa para desvendar os mais recônditos cantões da alma de seus
personagens.

Nélida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixões
humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso.
Nélida alterna poesia e crítica, racionalidade e erotismo em páginas
de leitura voraz e provocadora.

A obra de Piñon é instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura
temática o desdobrar e o atualizar em cada publicação,
seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupação
constante com questões referentes à criação do texto,
à linguagem, à religião (panteísta ou cristã),
ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, à paixão,
à solidão humana e, entre outras, à realização
feminina

Nesta obra têm-se personagens do mundo contemporâneo vivendo momentos
significativos – mas não necessariamente excepcionais – e
historicamente
marcados.

A multiplicidade das histórias deixa ver um certo número de
temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros.
Tem-se assim, por exemplo, o tema fantástico da união (im)possível
de espécies diferentes e o da mutação humana, o do incesto
e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem infrator, ora por
sua ação, ora pela inação que, nesses contos, não
significa jamais fraqueza mas escolha e assunção de força.
Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais são os verbos
recorrentes na gramática nelidiana.

Nas histórias que nesse livro se conta, não há reorganização
(construção) do mundo destruído pelos personagens, pelas
circunstâncias, pela narração. Quando ocorre, a auto-organização
do protagonista implica a desvalorização de seu contexto, que
só lhe interessa como cenário, palco de experiências próprias
e não partilháveis.

De fato, tem-se nesses contos, em vários níveis e em vários
matizes, a mesma narrativa de solidão, em que toda relação
interpessoal é vista como radicalmente
impossível e na qual é lesiva toda tentativa nesse sentido.

É por isso que não se pode, a rigor, falar da existência
de diálogos nesses textos. Entre os personagens só há monólogos
e o preenchimento do silêncio pelo
pastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que são feitas.

Os contos “O calor das coisas”e “A sombra da caça”
destacam-se na composição do livro de que participa. O primeiro
por dar nome à coletânea de que faz parte, o outro por ocupar o
significativo lugar de último conto do livro, como a indicar que nele
se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistério(s)
de sentido que se teriam enovelado até então.

Se, quando apreciados tematicamente, vê-se atravessar tais textos o
sentimento de erosão, este também se exprime na linguagem. Assim,
já à primeira abordagem, a dicção destes contos
se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a atenção
do leitor para a percepção do seu sentido.
Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experiência
sobre as possibilidades de expressão da tensão pensamento/linguagem
fora da norma lingüística e que daí advém a dificuldade
que oferece a seu leitor.

Nesse discurso pode-se também identificar a presença de alguns
aspectos da retórica do “carnaval”, tais como o estilo grotesco
como em “O calor das coisas” e “O sorvete é um palácio”.

É a presença do mecanismo da paródia que melhor caracteriza
a estruturação dos mais significativos textos do livro em questão.
Através de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos,
narrativas advindas de lugares tão variados quanto a Bíblia em
“O jardim das oliveiras”; o repertório artístico popular
brasileiro em “Disse um campônio a sua amada”; um determinado
corpus de valores e padrões de comportamento em “I love my husband”
(leia abaixo na íntegra) ou “Tarzan e Beijinho”. Esses textos
básicos (e considera-se como texto também o conjunto de valores
e padrões de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do século
XX) constituem o indispensável pano de fundo do conto nelidiano, que
os relativiza sem jamais os anular.

Estão, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora
deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a
tonalidade
irônica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo é
convocada na expressão da angústia daquele que renega seus antigos
valores, em “O jardim
das oliveiras”, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira
pessoa, a história de um preso que não suporta ser torturado,
que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim
como Pedro nega Cristo, o protagonista desta história pretende negar
a si mesmo.

CONTO ESCOLHIDO:

I love my husband

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe
café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa
a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café
esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não
quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará
como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.

Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe
unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo,
capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita
um pão sempre quentinho e farto.

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras,
e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos
tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o
cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas
e visíveis.

A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes,
senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto
que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela
casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele
não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário,
através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra
coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu
peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente
trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo
uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso
apartamento.

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão
de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém
tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me
a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum.

Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado,
antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos
amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria
fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele,
tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se
com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar
cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera,
batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições
e datas.

Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado
do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem
mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no
meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na
fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então
o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre
para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar
minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura
da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa
que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo,
e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?

Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de
tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade
do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras
longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal
abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas
tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que lhe é estranha,
que ele cobriu de mistério para não me ter inteira?

De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem
trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo,
marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria
as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar
a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de
amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em
que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de
escravo.

Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem
pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às
vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos
anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro
com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia
de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por
um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus
caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo
meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor.
Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em
busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar.
A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios
pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me
a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde
nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então
o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas.
Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças,
evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga
e miríade das heranças.

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído
no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de
amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal?
E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos
pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto
que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não
lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição
de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me
outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro
agora ainda há tempo de salvar-te?

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça
do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria
homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias.
Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único
a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei
meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se
para a jornada seguinte.

Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate.
Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço
da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse
com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de
um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze
meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me
eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido
era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não
se poderia contabilizar.

Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição
dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar
que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro
do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos,
acariciava a casca, podando seus excessos.

Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque
matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se
esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada
desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais
uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe.
Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina?
O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da
mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.

Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém
colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos
sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento.
Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher,
não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada
em troca a juventude.

Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque
viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através
deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar
o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração,
surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara
antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na
noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me
que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na
pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido
com mulher.

Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido
seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais
parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio,
longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens
sempre frescas e quentes.

Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo
novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano
acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos
dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão
felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única
a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história
de uma família.

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu
a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo
até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso
interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes
que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são
aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar
um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar
meu casamento.

Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço
da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido.
É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de
naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para
que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los
no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar?
Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes
numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos
juntos.

Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto
que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada,
caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através
do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua,
um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os
que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente,
é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas
familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos,
os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.

Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra
do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe
esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à
distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos
obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha,
não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para
mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague
no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida
de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu
arrebato.

Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não
suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes
penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro.
Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou
uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois
deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada.

Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão
do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou
em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele
responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais
comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar
os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim
do dia já não sei quantos anos tenho.

E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já
não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário,
para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias,
ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando
a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara
no jornal, no mundo só nós existimos.

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo,
ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho,
que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais
quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma
o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará
amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos
anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento
que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

Créditos parciais: Elvia Bezerra, escritora, colaboradora/redatora
da Enciclopédia Barsa Planeta Internacional.

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