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O caso da vara (Conto da obra Páginas Recolhidas), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

O caso da vara

é um dos contos mais famosos de Machado de Assis,
publicado inicialmente na Gazeta de Notícias, no ano de 1891, e republicado
no livro Páginas Recolhidas.

Neste conto, Machado enfoca o drama pessoal de Damião, o protagonista,
que deseja abandonar o seminário. Trata da questão da escravidão
e do jogo de poder que a relação encerra, onde a vilania do protagonista
rege seus atos na luta pela autoconservação.

O foco narrativo é em em terceira pessoa.

Damião, seminarista sem vocação, fugido do seminário,
troca a vara com que Sinhá Rita irá castigar a negra Lucrécia
– pelo trabalho não terminado – pelos favores que a mesma Sinhá
Rita lhe prestará intercedendo junto ao padrinho e, por este, ao pai,
no caso da fuga do seminário. Neste conto, que o autor situa em 1850,
fica clara a relação de favor que caracterizava as relações
sociais no século XIX brasileiro.

Pode-se perceber a intenção do autor em analisar as cruéis
relações de dominação entre seres iguais, todos
subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo,
mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que
são vítimas. O caso da vara é um dos exemplos
da crítica machadiana, sutil, mas repleta de uma ironia amarga.

Machado de Assis monta uma situação que revela algo do mundo
interior dos personagens, destacando valores éticos ou morais. O enredo
é o menos importante: o caso da fuga de Damião fica em aberto,
pois é secundário saber se o rapaz voltou ou não para o
seminário. O importante é observar sua conduta moral.

Leia o conto na íntegra:

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã
de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados
alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos
olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo.
Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para
casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário,
depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque
a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita
a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas
o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não
faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou
ao reitor:
— Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também
humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço…
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui
o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem
conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se
fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe
que quer que eu saia do seminário… Talvez assim…
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião
tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar.
Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns
minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se
na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa,
vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna
não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela
rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da
casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui!
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse
medo, não era nada; ia explicar tudo.
— Descanse; e explique-se.
— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas
espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de
fora, que estavam sentadas ern volta da sala, diante das suas almofadas de renda,
todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente
de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego,
ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião
contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que
não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto
em negócios de sua família, que mal conheço; e então
seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as
mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo
que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte,
porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou
chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe
ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um
dia… Não nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça
e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita
hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com
o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende,
duvido que atenda a ninguém…
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios.
Ora, eu lhe mostro se atende ou não…
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro
chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse
onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe
falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que
dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro
fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como
ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte
e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha,
brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação,
não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe
anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma
destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá
Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá
Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

— Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não
veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse
pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou
para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz
na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião
reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper
a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la,
se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o
perdão… Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua,
se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e
olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos.
Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não
tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre
de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir
a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar
durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por
ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que
o castigaria.
— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por
quê? Vá, vá falar a seu compadre.
— Não afianço nada, não creio que seja possível…

— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser,
continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe
muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não
volta para o seminário; digo-lhe que não volta…
— Mas, minha senhora…
— Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre
um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz
acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa,
vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os
sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se
este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra
era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha
de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com
a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares
que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue
raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não
ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá?
Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho… Conhecia o
velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse
ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução —
cruel, é certo, mas definitiva.
— Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando
um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou,
pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João
Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro
de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz… Mas
a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava
cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu
e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou
da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se
estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinha Rita puxou-lhe
desta vez o queixo.
— Ande jantar, deixe-se de melancolias.
— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?
— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita
cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio
espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira
parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo,
jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã.
A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

— Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas
que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam
até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do
trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora.
O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos,
tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por
eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte
das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha,
ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa.
Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota
que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que
as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado
o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste
e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião,
contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver
se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar
a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se
fazendo tenebrosa, antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante,
ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra
do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros,
foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo
à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou
a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu
ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo
de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse
o favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse
arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha… Sinhá Rita dispunha justamente
de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está
com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta
para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o
pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta
havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na
presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não
resolvesse logo, qne dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar
à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava
na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por
ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía
dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não
tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá
Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta
escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço,
ou nunca mais nos vemos”. Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo,
para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra
vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse,
que aquele negóclo era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não
sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as
discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia
estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá
Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa,
e agarrou-a por uma orelha.
— Ah! malandra!
— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que
está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora,
e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.
— Anda cá!
— Minha senhora, me perdoe!
— Não perdôo, não.
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando
e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
— Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá
Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.
— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio… Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos.
Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho…

— Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha
pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe,
pelo pai, por Nosso Senhor…
— Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela
vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião
sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou
à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

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