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O espelho (Conto de Papéis Avulsos), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

O conto O Espelho, de Machado de Assis, foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias em 1882 e reunido em livro com o título de Papéis Avulsos do mesmo ano. Esta obra, segundo alguns críticos de Machado, é uma espécie de divisor de águas e marca o ápice de seu amadurecimento literário e, portanto, é considerada um de seus melhores livros de contos.

Machado de Assis esboça em O Espelho uma nova teoria da alma humana, subtítulo que dá para o conto; aliás, um estudo sobre o espírito contraditório do
homem, simbolizado pelo espelho. Tem como tema a alma humana, metaforizada no espelho. Carregado de simbolismo e significados que vão da filosofia à mitologia, o espelho é um antigo tema ligado à alma e, neste conto, representa a alma exterior de Jacobina, personagem principal da narração. O conto trata, pois, da dualidade da alma, da alma externa e da alma interna, do homem como um ser controvertido, dividido entre o consciente e o inconsciente.

Neste conto, o autor ironiza a sociedade da época em uma das mais arraigadas crenças do povo cristão, que é a existência de uma única alma portadora de expressão única e inabalável até então.

Ao escrevê-lo, Machado de Assis lança a idéia de que o indivíduo está sujeito a duas “almas”. Segundo ele, o ser possui uma alma interna, a qual “olha de dentro para fora” transmitindo seus anseios particulares e valorizando sua consciência individual. Além disso, há uma alma externa, que “olha de fora para dentro”, composta de valores alheios ao indivíduo que são, porém, indispensáveis para a concepção do mesmo. Machado exemplifica: “a alma exterior daquele judeu (Shylock) eram seus ducados; perdê-los equivalia a morrer“.

O conto em questão tem início e fim com o foco narrativo em terceira pessoa; neste intervalo ocorre o discurso do personagem principal, Jacobina, que narra “um caso de sua vida” aos cavalheiros presentes na “casa do morro de Santa Tereza”.

A narrativa de Jacobina é linear, interrompida uma vez ou outra por pequenas perguntas dos outros cavalheiros que o ouviam atentamente, mas significativamente
interrompida uma única vez pelo narrador em terceira pessoa que denuncia: “Santa Curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da
concórdia
”(p. 347).

Na trajetória de sua narrativa, o personagem percorre o caminho da tradição bíblica, mitológica, literária e filosófica para melhor expor os acontecimentos, afinal,
como ele mesmo diz, “os fatos são tudo”.

Trata-se da história de Jacobina, rapaz pobre que se torna alferes aos 25 anos, nomeação que gerava status e despertava inveja em muitas pessoas, “Houve choro e ranger de dentes”. Era um rapaz pobre; seu fardamento foi dado por amigos e depois disso passou a ser visto como o cargo que ocupava na guarda nacional, “o alferes eliminou o homem”.

Sua tia Marcolina convidou-o a passar uns dias em seu sítio e cercando-o de mimos por todos os lados, mandou colocar um grande espelho, relíquia da casa,
em seu quarto, “obra rica e magnífica”. Tudo corria bem, até que sua tia Marcolina recebe notícias da doença de sua filha e viaja para vê-la, deixando-o sozinho com os escravos.

Jacobina sentiu uma grande tristeza, “coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere”, e os escravos o trataram muito bem, era “nhô alferes, de
minuto a minuto”. Mas no dia seguinte Jacobina estava só, os escravos haviam fugido, e com eles todos os paparicos, não havendo ninguém mais no sítio, “nenhum ente humano” para reconhecer nele o “alferes”. Jacobina perdera então sua motivação para a vida, “nunca os dias foram mais compridos”. Tinha medo de olhar-se no espelho, “era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois”. Não era mais possível ver sua imagem refletida no grande espelho. Sua imagem era agora difusa, e sua figura era completa apenas nos sonhos, “o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior”. Até que ele tem a idéia de colocar a farda e olhar-se diante do espelho. Assim fardava-se uma vez ao dia e colocava-se diante do espelho, retomando sua identidade, já “não era mais um autômato, era um ente animado”.

Revela-se no início da narrativa um tom de incerteza e volubilidade das coisas, que permeia toda a estrutura do texto. O conto começa com “quatro ou cinco
cavalheiros” que debatem acerca da natureza da alma, sobre metafísica enfim.

“Por que quatro ou cinco?” Porque o quinto personagem, Jacobina, mantém-se quieto durante a conversa e somente se propõe a contar um caso de sua vida se os outros lhe ouvirem calados.

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos” (p. 345).

Na caracterização do ambiente, assim como da narrativa, cria-se uma atmosfera difusa na descrição da casa do morro de Santa Tereza, cuja “luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora”. Também, quando o narrador se refere a “quatro ou cinco cavalheiros”, ou lhes atribui a idade de “quarenta ou cinqüenta anos”, desencadeia-se no texto uma duplicidade, um turvamento de imagens.

Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas” (v. 2, p. 345).

Com esta frase, “Entre a cidade…, e o céu…”, o narrador machadiano faz uma alusão, a qual nos remete, embora com o uso de outras palavras, à célebre frase de Shakespeare, “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

A seguir, Jacobina descarta a possibilidade de conjeturar sobre coisas metafísicas e assim se dispõe a contar aos cavalheiros um caso concreto de sua vida e inicia seu relato:

Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas…
– Duas?
– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro(…).
” (p. 346).

E assim, Jacobina define a alma “metafisicamente falando”, como “uma laranja”. Utilizando-se da citação literária para melhor expor seus argumentos, e melhor
esclarecer sobre a alma exterior das pessoas, o narrador machadiano cita Shylock, personagem da peça O Mercador de Veneza de Shakespeare.

A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados: perdê-los equivalia a morrer. Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele (p. 346).

Com maestria, Machado traz da peça de Shakespeare a cena que mostra a verdadeira alma de Shylock, um judeu que no auge de sua avareza prefere a filha
morta a perder suas pedras e ducados. Por meio dessa citação, Jacobina consegue transpor para o conto a “alma exterior” do judeu ao citar o momento em que ele recebe de Tubal notícias de que sua filha Jéssica teria gasto, em apenas uma noite em Gênova, oitenta ducados do dinheiro que lhe havia roubado.

O ofício da segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira” (p. 346).

Continuando a expor sobre a alma e a capacidade de transformação de sua natureza, Jacobina deixa claro que não se refere a certas almas absorventes. Assim
cita a pátria de Camões como sua absorvente alma exterior e o poder como alma externa e única de César, imperador romano, e de Cromwell, estadista inglês.

Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma…
– Não?
– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras embora enérgicas, de natureza mudável
“. (p. 346).

Essas referências levam, primeiramente, à história de Camões e seu poema épico Os Lusíadas, obra que exalta o povo português e é dedicada a D.Sebastião,
rei de Portugal na época de sua publicação.

Voltando aos estadistas, Jacobina cita César e Cromwell, ditadores que viveram e tudo fizeram pelo poder, e embora tendo recusado o título de rei, ambos
morreram soberanos em seu próprio despotismo.

Se pensar na alma externa como uma motivação para a vida, ou seja, os objetos de desejos de uma pessoa, essa alma será “de natureza mudável”.

Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano.
– Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião…
” (p. 347).

Jacobina alude à Bíblia quando chama de “Legião” a senhora que troca de alma exterior por várias vezes no ano. Citações bíblicas são freqüentemente encontradas em sua obra. Nesse trecho, Jacobina refere-se à passagem bíblica “O endemoninhado geraseno” (Mc 4-5), na qual Jesus se depara com um homem
possuído que morava no cemitério e apresentava fenômenos misteriosos.

O narrador fala a seguir da “Santa curiosidade” e a denomina como alma da civilização e também como o pomo da concórdia:

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia” (p. 347).

O narrador, depois de ter lançado o pomo da concórdia, continua então a narração:

Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional” (p. 347).

Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perderam” (p.347).

Mais uma vez o narrador recorre à Escritura, e, desta vez, para comparar as atitudes das pessoas em relação ao seu posto de alferes.

Em ambos os casos, a ironia do personagem-narrador estaria fundamentada no descompasso entre o universo sagrado e solene da Bíblia, deslocando esse
universo para um fato secular, a sua nomeação de alferes; soam ridículas aos olhos do leitor a pretensão e a aspiração de grandeza da personagem Jacobina,
que traz para o plano pessoal, do cotidiano, um tema que concerne ao plano religioso como um forte argumento em seu discurso.

No trecho a seguir, aliado a outros elementos que compõem a caracterização do objeto, o espelho serve também para dar ênfase ao aspecto social do personagem e seu posto de alferes.

Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples… Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição” (p. 347).

A palavra espelho, além de dar nome ao conto e ser munida de importantes significados para o entendimento do texto, encerra aqui um outro sentido. O grande
espelho, “obra rica e magnífica”, denota a vaidade do homem, que mistura a tradição do objeto com o prazer de ser visto por si próprio e pelos outros. E o fato
de o espelho ter pertencido a nobres vindos com a corte de D. João VI deixa ainda mais nítida a intenção do autor em colocar a importância da tradição, da imagem na sociedade, a importância de ser visto pelo outro.

Em O Espelho, Machado trata da alma humana e também igualmente, da alma nacional do Brasil, que corre também o perigo de não existir quando se contempla ao espelho. O que ocorre neste trecho, na descrição do espelho, é uma analogia à política nacional da época:

O espelho estava naturalmente muito velho, mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom” (…) (p. 347).

Pode-se notar que Machado traça um paralelo entre a alma de Jacobina e a alma nacional brasileira, duas imagens que se projetam ou se dissolvem na moldura
velha, mas tradicional. Enquanto Jacobina precisava de sua farda de alferes para compor sua imagem, a alma do povo brasileiro talvez precisasse da tradição monárquica para sua representação no espelho da sociedade, como a velha moldura coberta de madrepérolas, mas corroída pelo tempo. Há implicitamente nesta
caracterização do espelho uma crítica à oligarquia brasileira, tão presente na Monarquia quanto seria na iminente República. Era a tradição oligárquica, o poder
centralizador como moldura de nossa sociedade, moldura velha mas boa, difícil de quebrar, “era a tradição”. E assim, neste conto, coexistem os focos de duas correntes da interpretação literária sobre Machado de Assis, o caráter universalizante de um lado e de outro o histórico-social.

Jacobina recorre agora à filosofia para continuar sua narrativa, e introduz em seu discurso uma anedota filosófica:

Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando”. (p. 348).

Quando o personagem diz que “um filósofo antigo demonstrou o movimento andando”, ele está se referindo à famosa anedota do filósofo Diógenes, que, andando
de um lado para outro, disse: o ser é imóvel.

A próxima citação surge com o famoso estribilho do poeta americano Longfellow:

-Never, for ever! – For ever, never!” para representar o pêndulo do “relógio da tia Marcolina”, que feria-lhe “a alma interior”. Com esses versos, o narrador alude não somente ao poeta americano, mas também à epígrafe utilizada por este, que cita Bridaine, “L’eternité est une pendule…”, no início do poema The old clock on the stairs (Bradley, 1970, p. 1509). Jacobina utiliza-se dos versos de Longfellow para expressar o seu desespero diante do tempo, tempo que mediante seu sofrimento lhe parecia, portanto, uma eternidade.

Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever , never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada” (p. 349).

Para o personagem-narrador, não basta apenas explicar ou narrar o fato de o relógio parecer marcar a eternidade e a estabilidade do tempo. Naquele momento,
o relógio revelava para Jacobina total angústia mediante a solidão, e, com ela, a impossibilidade de ser o “alferes”, perdendo sua alma exterior.

Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes” (p. 350).

No trecho acima, fica claro que Machado conhecia a importância do que Freud definiria como inconsciente e a relação disso com os sonhos.

No momento de maior tensão do conto, no qual o personagem Jacobina se sente perdido no tempo e espaço, pela eternidade do “tic-tac” do relógio, o narrador
utiliza-se da citação de O Barba-Azul, de Charles Perrault. No conto francês, a esposa de Barba-Azul não consegue conter sua curiosidade e entra no único aposento em que o marido a proibe de entrar quando sai em viagem. É também na história francesa, o momento de maior tensão para a personagem, que se vê
perdida com o regresso do marido que descobre que ela entrou no aposento proibido.

Sem chances de continuar viva, ela espera ansiosamente pela chegada dos irmãos, para que a salvem da morte, e chama incessantemente pela irmã “Souer
Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir?
” (p. 350). “E tal qual como a lenda francesa”, na espera angustiante de Jacobina, ele não via “nenhum sinal de regresso”. E enquanto a moça da lenda francesa via “o sol que cintilava e o capim que verdejava” (Perrault, 1994, p. 97), Jacobina “quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel” (p. 350).

Nessa citação, o tempo é a vertente que se divide em dois caminhos: o tempo de Jacobina, que custa a passar e é marcado pela eternidade do “tic-tac” do relógio, e o tempo da mulher de Barba-Azul, que possui apenas um quarto de hora e nem mais um segundo para se salvar da morte. Portanto, o tempo é o principal perigo que os dois personagens enfrentam. O desespero de Jacobina diante de sua imagem difusa no espelho à espera de alguém, e da hora que demorava uma eternidade a passar, contrapõe-se ao desespero da esposa de Barba-Azul; para ela restava apenas um quarto de hora, nem um segundo a mais, para que seus irmãos chegassem e a salvassem das mãos de seu marido. Portanto, sentidos diferentes que nos levam a idéias semelhantes. A passagem rápida do tempo para a esposa de Barba-Azul acarreta na sensação da iminente morte, e no caso de Jacobina a passagem lenta do tempo contribui para a dissolução do seu “eu”.

Fonte: Revista ARGUMENTO (Revista das Faculdades de Educação, Ciências e Letras e Psicologia Padre Anchieta Jundiaí – SP,: Sociedade Padre Anchieta de Ensino) – Ano VI – nº 12 – Dezembro/2004

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