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O jardineiro Timóteo (Conto), de Monteiro Lobato

by Lucas Gomes

O conto “O jardineiro Timóteo”, de Monteiro
Lobato, apesar de “escorregões” em esteriótipos racistas,
é um relato sensível e triste sobre a violência contra os
negros no Brasil, podendo ser lido ainda como um lamento sobre certo lado destruidor
da humanidade. Lobato parece questionar a modernização a qualquer
preço, aquela que destrói sem critérios, sem pesar os sentimentos
de quem participou da construção no momento anterior.

O conto relata a história do negro Timóteo, um “preto
branco por dentro”
, negro descendente de escravos, que cuida, há
mais de quarenta anos, do jardim de uma fazenda. Por ser zeloso e bom, conforme
será reforçado várias vezes, é aceito pela família
do senhor e pode viver feliz naquele lugar. Timóteo criado desde pequeno
na fazenda onde trabalha, vive em um mundo no qual a comunicação
é exclusivamente oral, os códigos sociais estão alicerçados
em valores estáveis, e a “palavra de homem” sustentada vale
mais que qualquer documento escrito. O jardineiro é assim apresentado:

Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.
Não desses que fazem versos, mas dos que sentem a poesia sutil das coisas.
Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso
que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera,
desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.
O jardim tornara-se a memória viva da casa.

O narrador, que desta vez não é apresentado como personagem,
tem para Timóteo um olhar generoso, quase cúmplice, atribuindo-lhe
um valor marcadamente positivo, de depositário de um saber a um só
tempo profissional e social.

O texto desenha a postura humilde, servil e dócil do jardineiro em relação
aos proprietários da fazenda, como mostram os trechos

O canteiro principal consagrava-o Timóteo ao ‘Sinhô
Velho’, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria
muito antes da Lei Áurea.

Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim do Cabo, de galhos
negros e copa dominante ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que
outra planta sobreexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado
por dois contos de réis, dum importador de escravo de Angola.

Dessa perspectiva, o no mundo de Timóteo e seus senhores não
havia as contradições ou conflitos que a escravidão gerou;
há, pelo contrário, até uma inversão, a escravidão
é “doce” e dá lugar a uma afetividade que a neutraliza
por completo:

O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de
um coração de mulher. Tal qual a moça, que desde menina
se habituara monopolizar os carinhos da família e a dedicação
dos escravos, chegando ao ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter
ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem,
uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

Timóteo era feliz. (…) Sem família, criara uma família
de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.(…) era feliz sim. Trabalhava
por amor.

Como podemos perceber, a bondade de Timóteo e sua benevolência
são cada vez mais acentuadas, procurando enternecer o leitor e desviando-lhe
a atenção, nunca o levando a uma reflexão, pelo contrário,
dando aos fatos cores sentimentais. No texto, brancos e negros parecem conviver
harmonicamente, uma vez que não há nenhum vestígio de qualquer
conflito racial. Todos vivem pacificamente; o negro liberto era feliz vivendo
ligado ao seu senhor:

Essa idéia do negro tutelado eternamente é reforçada quando
o personagem morre ao ser deixado na fazenda, tendo sido esta vendida. A família
parte e Timóteo permanece na fazenda e é “passado”
para outra família como se fosse um móvel, um utensílio
qualquer ou fizesse parte do “seu” jardim. A idéia de viver
sem a tutela do “bom senhor” será insuportável ao
doce serviçal e culminará com a sua morte:

Eu vou, mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um
cachorro fiel. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

Vale observar ainda, que o texto atribuirá ao personagem características
eminentemente infantis, de adulto-criança ou do “negro/criança/grande”.
Ao pintar sua espontaneidade, sua simplicidade e ingenuidade, o discurso textual
passará sutilmente a idéia de total impossibilidade de uma convivência
de iguais; dessa forma, sendo o negro ainda criança, precisará
de alguém que o guie e que o proteja. A morte de Timóteo apenas
virá confirrmar essa idéia. A afetividade do negro em relação
aos seus patrões pode ser resumida como uma apologia ao senhor branco.

Iletrado, Timóteo domina e recria um alfabeto vegetal, escrevendo com
as mudas que planta a história da família. Assim, o canteiro central
é dedicado ao “Sinhô velho”, “tronco da estirpe”,
representado por um “nodoso pé de jasmim do cabo, de galhos negros
e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra
planta sobreexcedesse em altura”. À volta do jasmineiro, periquitos
e cravinas, porque o “Sinhô” “era homem simples, pouco
amigo de complicações”.

Havia também dois canteiros em forma de coração, um “de
Sinhazinha” e o outro reservado para o “Sinhô moço”,
com o qual ela viesse a casar-se. O dela era o mais alegre de todos: “livro
aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores
toda a sua vidinha de moça”; primeiro “flores alegres de
criança – esporinhas, bocas-de-leão, ‘borboletas”;
em seguida, “flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos,
damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótis”; até
brotar nele a primeira “planta séria”, o pé de flor-de-noiva
que marcou o dia em que foi pedida em casamento; “os primeiros tufos de
violeta” Timóteo plantou “quando lhe nasceu, entre dores,
o primeiro filho”; “e no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho
de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os
primeiros goivos e as primeiras saudades”. O canteiro do Sinhô-moço,
ao contrário, “revelava intenções simbólicas
de energia”: “cravos vermelhos”, “roseiras fortes”,
“ouriçadas de espinhos”, “palmas de Santa Rita, de
folhas laminadas”, “junquilhos nervosos”.

O jardim também consagrava uma planta “a cada subalterno ou animal
doméstico”:

Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-Adão
do Tibúrcio cocheiro; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita
enredeira, de cara fuchicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Mangerona,
a Tetéia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali
estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas,
uma touça de perpétuas. […] Também os gatos tinham memória. Lá estava a cinerária
da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo
do velho gato Romão.

Vendida a fazenda, os novos proprietários impõem o padrão
do gosto da moda, tanto na reforma da casa, incluindo a renovação
da mobília, quanto no jardim, que para os recém-chegados, não
tem nenhum valor, sendo até ridicularizado: “É incrível!
Um jardim destes, cheirando a Tomé de Souza, em pleno século das
crisandálias!” E riam “como perfeitos malucos”, correndo
o jardim: “É inconcebível que haja esporinhas no mundo”;
“E periquito, Odete! Peri- qui-to!”

Uma vez condenado o jardim, mandam “vir o Ambrogi para traçar
um plano novo de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses”.
A reforma segue a tendência da época, quando “a fazenda passa
a ser extremamente requintada e elementos da arquitetura urbana são levados
para a arquitetura rural – móveis, estuques, lustres, etc., além
dos jardins de traçado elaborado e com plantas importadas.”

Desde meados do séc. XIX as famílias ricas da Corte vinham introduzindo
espécies exóticas, símbolo de status, em seus jardins,
que embora privados eram
exibidos ao público em frente às fachadas das casas:

Os proprietários das residências senhoriais de Botafogo,
das chácaras e de outros recantos da cidade embelezam seus jardins e,
possivelmente, recorrem aos “jardins floristas franceses”, que anunciam
“plantas exóticas tais como: camélias, azaléias,
espirradeiras, peônias, magnólias (…) roseiras de novas espécies,
árvores frutíferas. As plantas floríferas e frutíferas
vêm diretamente da França”.

O jardineiro como personagem recupera portanto a idéia de trabalho,
de cultivo, de execução, que esteve associada, durante séculos,
à palavra jardim, mas que foi abandonada em prol da percepção
da coisa pronta, no ato da fruição ou do consumo. No caso de Timóteo,
seu jardim é o produto de um trabalho que o novo senhor despreza, resultante
de um processo do qual não foi testemunha e que de forma alguma é
de seu interesse.

A criação de um jardim pode ser considerada uma pintura no espaço,
em que estão presentes noções como profundidade, volume,
contraste claro-escuro e uso de diferentes tons de uma mesma cor.

Esta observação é particularmente interessante no caso
de Lobato por tratar-se de um escritor com imenso gosto pelo desenho e pela
pintura, como já foi apontado anteriormente neste trabalho. Mas para
o autor de “O jardineiro Timóteo”, o jardim, além
de pintura, é também texto, e como tal deve ser lido.

O conto exibe o choque entre tempos e experiências paradoxais vividos
pelos diferentes segmentos da sociedade brasileira que, obrigados pelas circunstâncias
a conviver no espaço, fazem emergir o inevitável conflito. Situação
que vai sendo apresentada ao leitor de maneira a fazê-lo simpático
ao jardineiro, à medida que o acompanha no seu desvelo com o jardim por
meio do qual registra a história dos patrões.

O jardim criado por Timóteo: é um jardim com história.
As plantas significam, são encaradas como seres vivos e não como
objetos que entram ou saem de moda. Esse jardim foi destruído. Os antigos
patrões de Timóteo, vivendo por um longo período no ambiente
rural, haviam aprendido a respeitar o conhecimento dos subalternos sobre plantas
e animais, adquirido e acumulado no contato estreito do trabalho e no cuidado
com os mesmos, e transmitido de uma geração a outra pela tradição
oral. A entrada em cena dos novos patrões é marcada pela arrogância
e pela insensibilidade:

– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega
ponho aquele macaco a me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.
– Ó tição, vem cá!
Timóteo aproximou-se, com ar apatetado.
– Olha, ficas encarregado de limpar este mato e deixar a terra nuazinha.
Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?
Timóteo, trêmulo, não pôde engrolar uma palavra:
– Eu?
– Sim, tu! Por que não?
O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:
– Eu? Eu, arrasar o jardim?
O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender
daquela resistência.
– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?
E não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera
– o primeiro e o único de sua vida.
– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como
um cachorro fiel. Mas olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto
aqui há de virar uma tapera de lacrais! A geada há de torrar o
café. A peste há de levar até as vacas de leite. Não
há de ficar aqui nem uma galinha, nem um pé de vassoura! E a família
amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros
lazarentos… Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina
assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre
negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém
sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana!
Deixa estar!…
E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às
arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:
– Deixa estar!…Deixa estar!…

O novo fazendeiro, representante da “modernidade” que despreza
o passado, e com ele os saberes tradicionais, torna impossível para Timóteo
a vida na fazenda. Além disso, ao apagar-lhe a história, arrancando
uma a uma todas as páginas do livro que escrevera, inviabiliza também
qualquer possibilidade de plano para o futuro.

Conflito insolúvel, como na tragédia clássica. Já
que não existe conciliação possível, o jardineiro
encontra no amaldiçoamento e na morte as únicas respostas à
altura daquela desgraça, sendo alçado assim à estatura
de um herói trágico. Seu corpo será encontrado na manhã
seguinte, “ao pé da porteira”, “enrigecido pelo
relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda
num derradeiro gesto de ameaça”.

A morte de Timóteo retoma a idéia do primeiro projeto de livro
feito por Lobato, “Dez mortes trágicas”. Ao escolher a maneira
como quer morrer, lançando, contra o “branco de má casta”,
pragas que conjuram contra ele as forças da natureza afrontada, Timóteo
se vinga e inscreve pela última vez sua experiência na memória
dos vivos, que contarão sua história.

Timóteo seria, enquanto representante de uma tradição
de narradores, também alguém que se relaciona de maneira intensa
com a morte. Morrer para ele é um ato, um gesto totalmente afirmativo,
pleno de sentidos.

O conto na íntegra:

O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias coloniais:
frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também
à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um
saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros
o bom Timóteo, um preto branco por dentro. Timóteo o plantou quando
a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo
recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos –
ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu
jardim”.
Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.
Não desses que fazem versos, mas dos que sentem a poesia sutil das coisas.
Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso
que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera,
desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.
O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a
uma significação familiar de suave encanto, e assim foi desd’o
começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente
a escavação. O canteiro principal consagrava-o Timóteo
ao “Sinhô velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe
dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro
e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes e
embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semi-desfeitos
pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos
esverdecem nos musgos da velhice.
(…)
Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim.
Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:
– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo.
Ninguém sabe apanhar flor…
Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção
e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de
anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes
vivas. Colhia-as resmungando.
– Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje.
É festa alegre. Nem você, dona violetinha! … Rosa maxixe? Ah!
Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!…
(…)
Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no
trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía alma
do velho patrimônio.
– Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços,
acomodando-se no veículo.
– Adeus! Adeus!…
E lá partiu o trole, a galope… Dobrou a curva da estrada… Sumiu-se
para sempre…
Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se
plantado a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:
– Branco não tem coração…
Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades.
Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.
– Velharias, velharias…
E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram
móveis pechisbeques, com veludinhos e frisos.
Determinaram o empapelamento das salas, abertura de um hall, mil coisas esquisitas…
Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas.
– É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé
de Souza, em pleno século das crisandálias!
E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.
– Ó tição, vem cá!
Timóteo aproximou-se, com ar apatetado.
– Olha, ficas encarregado de limpar este mato e deixar a terra nuazinha.
Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?
Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:
– Eu?
– Sim, tu! Por que não?
O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:
– Eu? Eu, arrasar o jardim?
O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender
daquela resistência.
– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?
E não podendo mais conter-se explodiu num assomo estupendo de cólera
– o primeiro e o único de sua vida.
– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro
fiel. Mas olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há
de virar uma tapera de lacraias! A geada há de torrar o café.
A peste há de levar até as vacas de leite! Não há
de ficar aqui nem uma galinha, nem um pé de vassoura! E a família
amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros
lazarentos!… Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina
assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre
negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém
sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana!
Deixa estar! …
E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às
arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça: “Deixa estar! Deixa
estar!…”.
E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto
mudo:
– Deixa estar…
Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosos vôos de sombra
pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas.
Os sapos coaxavam nos brejos e vaga-lumes silenciosos piscavam piques de luz
no sombrio das capoeiras.
Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.
Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao
pé da porteira. Lá morre. E lá o encontrará a manhã,
enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida
para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:
– Deixa estar!…

Créditos parciais: PUC Rio – Teses abertas

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