Home EstudosLivros O Vil Metal, de Ferreira Gullar

O Vil Metal, de Ferreira Gullar

by Lucas Gomes

O livro O Vil Metal reúne poemas esparsos, publicados entre
1954 e 1960. Nesta obra as experiências se entrecruzam, adere ao concretismo
por algum tempo e produz poemas concretos e neoconcretos, substituindo o verso
por novas estruturas, baseadas na associação formal dos vocábulos
e em sua disposição espacial na página, em alinhamentos
geométricos; em lugar da sintaxe convencional.

Nesses poemas predominam a busca do sentido da poesia e do sentido da vida.
Sua luta poética com a palavra ainda é intensa, embora menos perturbadora
do que em A Luta Corporal. O primeiro poema deste livro nos remete
aos últimos de A Luta Corporal, onde há a desestruturação
do código linguístico:

                            fru
                         to
                      lu
                      to
              sedosa
carne
           o lume desatado
                      lu
                      to
o cheiro expõe seu avesso leproso
                  pústula
ar flora isconde ôr rostro dentro êr frô
                 erf’olho
                 cartrera
                 ceca
                 púcaro
                mofo
                 SOLAR

Há a utilização visual da folha em branco. O exercício
da palavra já o encontramos desde o início de sua trajetória
poética. Logo, não é por acaso que Ferreira Gullar, mais
tarde, fará parte do grupo concretista, separando-se depois para fundar
o movimento Neoconcreto.

O poema “Definições” retrata as angústias
de Ferreira Gullar diante de conceitos. Na sua incessante busca, o poeta seleciona
alguns vocábulos, e tenta defini-los através de associações
que, aparentemente, nada têm a ver com o nome indicado com letras maiúsculas.
Há uma analogia pessoal, fruto do inconsciente. Como já havia
feito em outros poemas, o artista, para expor a fragilidade da relação
linguagem/realidade, inventa combinações fônicas que não
existem no nosso código
lingüístico, pois ele procura, contra as formas usuais da linguagem,
unir no particular os pólos distantes da singularidade e da universalidade.

Se, no fim de A Luta Corporal o autor proclama a morte de sua poesia,
aqui ele proclama a sua própria morte – “Réquiem para
Gullar”.

Os domingos cruéis primeiro apeadouro segundo apeadouro aquele que
acredita em mim mesmo depois de morto morrerá, […] Cravo-de- defunto.
Estearina. Moscas no nariz a língua coagulada na saliva de vidro e açúcar.
O esmalte do dente apodrecido já nada tem a ver com o amor a timidez
a injustiça social o ensino precário
.

Vil Metal é um livro melancólico que apela para um tempo
mítico, fora do presente, reunindo poemas esparsos, que não aparecem
sistematizados ou organizados cronologicamente. Em menor quantidade e bem mais
cristalinos, constituem um momento de transição. Temas antigos
são retomados, a partir de uma visão mais tranquila, quase irônica,
sem grandes transbordamentos de angústia. A metáfora – vil
metal – é, sem dúvida, uma alusão à poesia
que, apesar de não conseguir guardar o brilho do momento vivido, e neste
sentido é vil, sem valor, ainda assim resiste, como metal, e se faz presente,
inevitavelmente. Apesar da consciência angustiante dofim, o poema “O
escravo” (p. 149) reafirma a certeza de que só a palavra poética
pode sustentar o tempo, só ela é capaz de deter a morte:

Mas eu sei que a única haste do tempo
é o sulco do riso na terra
– a boca espedaçada que continua falando
.

Nesta obra o sentimento do tempo corrosivo foi algo aplacado por meio de uma
maior espacialização e sensualização do mundo e
das imagens. Em O Vil Metal relativizam-se o sarcasmo e a escatologia
que davam o tom a seções inteiras do livro anterior, A Luta
Corporal
: o regime poético é agora de mais intensa visua-lização,
com menor espaço para a especulação conceitual. Continuam,
porém, as recorrências de um imaginário composto por “luz”,
“flamas”, “facho”, “incêndio”, “archote”,
“fogo”, “sol”, “clarão”, “auréola”,
“íris” etc., persistindo, pois, o leitmotiv do brilho
fátuo agora integrando uma composição mais plástica
dos elementos. Veja-se o poema “Frutas”:

Sobre a mesa de domingo
(o mar atrás)
duas maçãs e oito bananas num prato de louç
aSão duas manchas vermelhas e uma faixa amarela
com pintas de verde selvagem:
uma fogueira sólida
acesa no centro do dia.
O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas:
chamas,
as chamas do que está pronto e alimenta.

Os cinco primeiros versos oferecem-nos a visão descritiva das frutas;
os cinco restantes elaboram liricamente o material apresentado. Duas naturezas
se oferecem, em dois tempos destacados: a reconhecida pelos olhos (com formas,
cores, planos, perspectiva) e a trabalhada pelas impressões (por meio
de metáforas, sinestesias e paradoxos). Uma “natureza morta”,
picturalmente imobilizada, torna-se convulsa e sugestiva em outra que a traduz.
Como pano de fundo à apresentação das frutas atua, no entanto,
“o mar atrás”, signo da inquietação do que está
“atrás” não como cenário, mas como perturbadora
infinitude. Os elementos plásticos da primeira cena temporalizam-se no
segundo momento: a “mesa no domingo” torna-se “o centro do dia”.
A “faixa amarela” desdobra-se em “fogueira sólida”
e contrasta com o insólito “fogo escuro”, “que não
cabe hoje nas frutas”. Por que não cabe? Porque as frutas estão
no auge do viço (maçãs vermelhas, bananas amarelas), e
a ameaça mortal do “escuro” diz respeito ao fogo destrutivo,
que ainda não surgiu. Os olhos do poeta, diversamente do que ocorrera
em “As peras”, do livro anterior, pararam desta vez na vitalidade
da fogueira, apenas deixando entrever, como um “mar atrás”,
a ameaça do “fogo escuro”.

Gullar encontra nas imagens do fogo e da luz a concreção poética
capaz de figurar a íntima ambivalência do que queima e do que ilumina.
Em O vil metal, o corpo não se identifica sempre com a fenomenologia
da destruição, também a observa e a traduz plasticamente.
Gullar impõe-se agora maior mediação entre a reação
vital e a forma artística, entre o momento do impulso e o momento da
formalização. Vê-se neste segundo livro um maior amadurecimento,
com maior controle da linguagem, e com a mesma visão amarga, temperada
agora com a espécie de calma que têm os grandes artesãos.
De fato, com exceção de três ou quatro poemas, que ainda
ressoam ecos do primeiro livro, os textos de O vil metal não
querem figurar com o próprio corpo da linguagem a perversão destrutiva
do tempo. Pode-se também pensar que aqui se reduziu boa parcela da busca
dramática dos poemas de estreia. À maior maturidade do artista
corresponderá certo recuo daquele sujeito febril, poeticamente mais vivaz.
De fato, o poema pode fornecer agora um ângulo de observação
que afeta neutralidade, como em “Ocorrência”;

Aí o homem sério entrou e disse: bom dia.
Aí outro homem sério respondeu: bom dia.
Aí a mulher séria respondeu: bom dia.
Aí a menininha no chão respondeu: bom dia.
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores
as paredes, o relógio, a lâmpada, o retrato, os livros
o mata-borrão, os sapatos, as gravatas, as camisas, os lenços
.

ou combinar o anedótico e o grotesco, como em “Um homem ri”.
O melhor estilo moderno entra como irônica rubrica para o “Poema
de adeus ao falado 56”, e uma enxuta nota lírica homenageia “Oswald
morto”. A sensação é a de que Gullar está,
defato, compondo mais organicamente os elementos dramáticos de sua poesia.
Com crescente lucidez, essa poesia continua a rejeitar o aspecto ilusório
(“o vil metal “) da unidade do mundo; ao mesmo tempo, não alimenta
a ingenuidade (por vezes fundamental, para a lírica) de se imaginar em
si e por si inteiramente reveladora.

A pesquisa pessoal de Gullar não ignora o peso da convenção
literária, da tradição moderna dos códigos poéticos,
da metalinguagem mais refinada. Sua luta vai-se deslocando do corpo para a palavra,
do mundo plural para as coisas singularizadas, do discurso perplexo para os
signos concentrados. Em “Vida”, Gullar quer retirar as palavras de
seu curso temporal, fixá-las na página, reduzi-las a átomos
essenciais de significação: os substantivos “corpo”,
“fogo”, “gullar”, “facho”, “lepra”,
“vertigem”, “cona”, “câncer”, “vento”
e “laranjal” graficamente constroem um eixo vertical que atravessa
os enunciados discursivos, como a totalizá-los no mínimo e no
essencial. Note-se, porém: essa cadeia de substantivos preserva a já
familiar polarização entre os elementos que fulguram e os que
destroem, entre a luz e o avesso das coisas. Fogo e câncer, facho e lepra:
é ainda o “corpo esmerilado do tempo” que essa palavra poética
quer denunciar e fixar. O mundo surge como fonte impura dos múltiplos
tumultos que assaltam o sujeito poético; a vingança deste está
em processá-los no interior da consciência irônica – consciência
de fato idealizante, em sua busca de um metal verdadeiro.

Créditos: Profª. Drª Thereza da C. A. Domingues
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CESJF) | Alcides Villaça,
para Cadernos de Literatura Brasilera, nº 6, Set. 1998, Instituto Moreira
Sales

Posts Relacionados