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Perdoando Deus (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Este texto de Clarice externa, com sua peculiaridade de expressão, uma experiência
interior de grande impacto à protagonista.

O espaço da rua volta a se transformar em local de perigo, no qual a personagem
é forçada a reconhecer sua situação de desamparo. No início da narrativa, uma
mulher descreve, em primeira pessoa, a prazerosa experiência de caminhar livremente
pela Zona Sul do Rio de Janeiro, vivenciando a harmonia com a paisagem urbana
e a plenitude de um sentimento maternal totalizante:

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga
de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que (…) estava era
de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. (…)
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti
a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.

Esse pacto de comunhão e proteção ideais é rompido bruscamente quando a mulher,
logo em seguida, tropeça em um rato morto, um rato ruivo morto (a escolha da
cor pode ser pela aliteração, pois, em Clarice, quando ocorre o momento do “transe”,
ou da percepção aguçada, a linguagem se torna densamente poética). Espanta-se:
“Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos
de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, (…)”
. Corre espavorida. Revolta-se.
E pensa em vingar-se de Deus. E aí, Deus confunde-se com a natureza: “Então
era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando
de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me
feria e insultava-me. Deus era bruto.”

A brutalidade da natureza é usada como metáfora de Deus. Eis, então, que ocorre
um processo de auto-conhecimento, pelo reconhecimento das próprias fraquezas,
limitações, e a reconciliação com Deus, mas não com o Deus perfeito, sereno
e distante do início. É um processo de quitação, incondicional, portanto baseado
no espírito de renúncia, sem prerrogativas, agora com uma visão mais humana
de Deus (e de si mesma). Só então ocorre o amor a Deus. Assim o amor, antes
interditado, pode ser dirigido e ofertado.

Confrontando-se com a sua vulnerabilidade, a mulher vive a desagregação e a
desordem íntima, a que se segue a vontade de vingança contra a autoridade onipotente
que a ferira com sua “grosseria”. Entretanto, a personagem vislumbra a possibilidade
de transformar a dimensão trágica de seu sofrimento em sabedoria – possibilidade
que já se anuncia no modo verbal presente no título do conto. E o texto termina
com o reconhecimento da alteridade, do “mundo que também é rato”.

Como na maioria dos contos de Clarice, o enredo de “Perdoando Deus” é desossado,
inacentuado, e quando eventualmente ocorre, é composto não de uma trama, mas
de um incidente que dispara o transe psicológico, subjetivo e estético. Neste
conto o que se ressalta é a função do incidente como a senha para o transe e
a imersão no estado de hiper-sensibilidade poética.

Concluiu a narradora então que a sensação tão solene que tivera era falsa, estivera
amando um mundo que não existe (“no fundo eu quero amar o que eu amaria – e
não o que é. E porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo
que não é ele.(…) Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o
tamanho da minha natureza?”)

Finalmente, ficou esclarecido na mente dela que estava querendo amar a um Deus
só porque ela não se aceitava. Ela estaria amando um Deus que seria seu contraste,
esse Deus seria apenas um modo de ela se acusar. “Enquanto eu inventar Deus,
Ele não existe”.

Estar caminhando pela praia, representa seu contato mais subjetivo com o mundo,
com a natureza, de forma singela e espontânea. Deixa-se levar pelo movimento
que arrebata todos os seus sentidos, provocando-lhe uma experiência inédita
integralizante. Por uns momentos sente-se parte do cosmo, e nesta percepção
de Unidade vive a consciência de Deus, e sente por este Ser um carinho indescritível
que a envolve e consome todos os espaços de sua consciência.

Neste estado de ser, vive momentos em que se desliga de toda materialidade,
experimentando a suspensão dos limites impostos por ela, e nesta expansão do
todo sua relação com Deus é atípica, misto de ternura, força criadora e entrega
como parte da unicidade que o simples caminhar lhe proporciona.

Ao pisar num rato morto, a personagem do texto assusta-se e reage com infantilidade,
num pavor desmedido.

A figura grotesca do repugnante animal, morto, a desconecta de imediato do mundo
da essência, das idéias e da emoção mais pura, colocando-a em contato direto
e sem possibilidade de fuga, com a realidade concreta e factual.

A rejeição que lhe provoca tal situação é tanta que se revolta com Deus. O mesmo
Deus que segundos antes lhe despertara sentimentos dos mais nobres, belos e
sutis.

O que fazia algo tão deplorável em meio a tanta beleza e harmonia?

Sua primeira reação é negar Deus, rejeitá-lo, culpá-lo, ignorá-lo.

O rato tem então a função de colocá-la frente ao seu próprio julgamento, onde
a idéia e o fato se entrelaçam e formam a mais concreta realidade.

Sente-se desnuda de justificativas. Não há como fugir nem disfarçar.

Percebe que ao deparar com sua própria fraqueza, essa mesma fraqueza cria a
rejeição, como para se proteger. Talvez num movimento que busque culpar alguém
pela desordem, pelo aspecto feio, pela falha de sua própria vida.

Num súbito impulso conclui que a sensação que experimentou é falsa. Não existia.
Uma lucidez dolorosa a envolve e percebe com clareza como a felicidade, em sua
plenitude, pode ser algo alienante.

Enfrenta a verdade crua, sem possibilidade dela se apartar. A ilusão deste mundo
fictício embriaga e causa um torpor que a mantém afastada da realidade.

Por um tempo questiona-se sobre sua própria identidade, considerando a possibilidade
de ser ela própria uma mera ilusão.

Nesse raciocínio vai delineando o provável equívoco em sua maneira de amar.
E não pode fugir de uma questão vital: Como amar a essência real do mundo se
não ama sua própria realidade do ser? Se não a percebe com clareza?

Ao ver-se negando uma parte de si mesma compreende a fragilidade das premissas
em que baseia seu contato com a vida.

Vai conjeturando, perseguindo a lógica que lhe escapa, ate que se dá conta de
que talvez, Deus seja apenas e tão somente uma criação sua; uma projeção daquilo
que não aceita em si mesma.

Termina sua caminhada num silencio quase mórbido, envolto em sentimentos de
tristeza e quietude, uma vez que fixa sua atenção ao movimento interior de seus
pensamentos.

Conclui neste estado de espírito: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.

Fonte parcial: Fátima Cristina Dias Rocha – UERJ (Círculo
Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos)

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