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Sol sanguíneo, de Salgado Maranhão

by Lucas Gomes

Salgado Maranhão destaca-se pelo trato apurado da linguagem e pelo domínio
da mesma. Sua relação de intimidade com a palavra escrita denota
uma postura centrada diante do fazer poético e da vida. Influenciado
pela filosofia oriental, o poeta traz para seus versos o estado de equilíbrio
empenhado na relativização dos valores instituídos. O ser
humano mostra-se cada vez mais limitado e distanciado da realidade em que vive
e torna-se necessário soltar as amarras do convencionado e experimentar
o desconhecido. É isso que o autor faz com sua poesia: toma a palavra
e desnudando-a de seus significados usuais, explora sua condição
polissêmica apontando para o caráter simples e transitório
das coisas.

Numa dicção arraigadamente pessoal, Salgado Maranhão,
em Sol Sanguíneo, atinge o (até agora) ponto máximo
de sua obra, num conjunto coeso de poemas, em que a inteligência especulativa
e a celebração da corporalidade do mundo se expressam com grande
rigor metafórico. Nesta obra são preservadas todas essas características
e percebe-se ainda um aperfeiçoamento da técnica escrita.

A poesia de Salgado Maranhão procura libertar a palavra de seu caráter
usual (com a qual nos deparamos diária e cotidianamente), desvinculando-a
das amarras do convencionalismo, e, através de um sofisticado trabalho
poético experimentar a polissemia da palavra, expandindo indefinidamente
as suas significações. Nesse sentido, as palavras se desdobram
em suas múltiplas e possíveis interpretações, ao
mesmo tempo em que interagem entre si, a fim de formar o corpo coeso do poema.
É por essa razão que nos poemas de Salgado se encontra presente
uma “escrita ascética (quase sem palavras)” visando a “sinergia
do signo”. Ao distender ludicamente a palavra e ao expandir a sua significação
imediata, o poeta impede que esta se esgote.

A ressignificação assumida pela palavra, produzida de forma
proposital pelo poeta, causa no leitor certo estranhamento que altera o curso
normal de suas
interpretações e certezas, levando-o a novas percepções
e experiências. Como o próprio Salgado afirma em uma entrevista:
(…) cada rasgo de autêntica poesia nos ensina a desconfiar
das certezas. Nos revela, através da linguagem, a força sutil
que dá vertigem ao esqueleto das palavras
” (SOUZA, revista
Agulha online, 2003). Através de suas observações,
o poeta nos leva a crer que a fragilidade e a efemeridade da existência
humana podem ser compensadas através da perenidade e imanência
da palavra poética. Segundo essa perspectiva, o poema possui o poder
de fixar as experiências e percepções da existência
caracterizada pela transitoriedade. Tal é o desejo do poeta descrito
no poema “Sol Sanguíneo” que abre o livro:

Voltar ao desolado abrigo
da terra
chã.
Voltar aos limítrofes
da palavra (larva fulminante
e alarde) que assiste
da despensa
ao rapto da existência.
Voltar ao solo atávico
onde os loucos
riem-se
à sombra da neblina.

Percebe-se pela leitura do poema, que a “terra chã” é
uma metáfora da palavra poética, terreno que deve ser conquistado
pelo poeta, mas que se apresenta
simultaneamente como abrigo e desolação. Como os versos sugerem,
a palavra “assiste da despensa” – uma vez que ela se encontra
à espera para ser transformada em poesia – “ao rapto da existência”,
pois a vida humana nada mais é do que um “sopro itinerante”,
fugaz e passageiro. A palavra atemporal assiste à inexorável temporalidade
da existência humana.

Este poema remete ao tempo da posse de terras. Tudo que nela existia também
foi violado e tratado como bens comerciais. “Sol sanguíneo: terra
chã” faz esse movimento de volta às origens de seu povo
quando o eu lírico narra a chegada do navio negreiro no cais. Enquanto
isso as noites, “a terçar atabaques”, esperavam os cativos
que estavam a chegar, evidenciando o sincretismo de elementos da cultura européia
e africana.

Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.

Minha terra é minha pele.

vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.

Nesse trecho do poema, o eu enunciador assume sua especificidade étnica
e cultural encarando a terra como segmento de sua pele. Nota-se um cuidado na
opção pelo vocábulo que irá representar a sua cor:
o azeviche, tipo de carvão fóssil utilizado em joalheria. O efeito
seria outro se em seu lugar estivesse simplesmente “carvão”.
Além disso, destaca que junto com os escravos vieram as “moendas
de açúcar”, que representa uma das contribuições
dos negros à
economia brasileira, e as súplicas dos cativos tratados como mercadoria.
Desse regime vieram os açoites que duraram séculos e a imposição
cultural dos brancos
sobre os negros.

Tratados apenas como corpo vazio de cultura e espírito, esses homens
foram entregues ao cativeiro devido à ganância do branco que se
julgava superior. Além de terem sido separados do seu povo, viram-se
obrigados a receber os valores dos senhores, que lhes eram impostos, em geral,
de maneira violenta.

Já em “Mater”, o eu lírico faz uma homenagem à
mãe África e chama a atenção para o descaso da história
em representar sua herança entre o povo brasileiro. Seus descendentes
em nosso país foram obrigados a se curvarem diante do branco. Porém
o fio de sua memória ancestral, como “impressões digitais
num rio”, mantém ligados seus filhos ao longo dos tempos:

I
De ti não há sequer
um álbum de família:

retratos da infância
nos campos de arroz e gergelim.

Talvez reste em pensamento
pedaços de tua voz

no vento
como impressões digitais
num rio
.

II
No dia em que o azul
roubou teus olhos
e o silencio rival rasgou
teu nome,
cotovias cantaram no teu rastro.
No dia em que a manhã
cerrou teus olhos.

No poema, o azul aparece como metonímia para o mar e metáfora
para o traficante que levara os filhos da mater africana. Silenciosa foi como
se deu a captura e dura foi a partida. Porém quando não havia
mais corpo, foi ao som das cotovias, aves que voam para a África no inverno,
que o espírito retornou a terra mãe.

Noutra linha, totalmente metapoética, ”Fero” descreve a
inquietação que a escrita causa ao poeta e este, que tenta representar
o mais inimaginável como a oração dos pássaros,
vê-se numa luta constante com a palavra quando esta parece se fechar às
possibilidades de figuração:

Tento esculpir a Litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.

insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.

O processo de escrita configura-se conflituoso; o poeta é tomado por
uma onda de embriagante loucura e perseguição. Seu maior inimigo
então se vislumbra na “página em branco” a exibir
o não-resultado de trabalho. É este, portanto um forte veio da
poesia de Salgado Maranhão, escritor comprometido com a reflexão
da linguagem, empenhado em recriá-la, explorá-la ao máximo
e encontrar, nas bordas da palavra, o sentido buscado. Foi possível perceber
também o envolvimento com situações íntimas de um
sujeito que, assumindo-se como negro filho de África, deixa vozes de
tempos remotos falarem em seus poemas, aludindo às atrocidades do passado
escravo e rebelando-se contra as do presente.

Créditos: Eduarda Rodrigues Costa, Graduada em Letras pela
UFMG | Edimilson de Almeida Pereira, Pós-doutor em Literatura
Comparada – Universidade de Zurique, Professor Titular da Faculdade de
Letras – UFJF | Fabrício Tavares de Moraes, Graduando em Letras
– UFJF

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