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Literatura Brasileira – Durval Muniz fala sobre o Nordeste e a literatura

by Lucas Gomes


Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Durval Muniz de Albuquerque Júnior possui graduação em
Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da Paraíba
(1982), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1988)
e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1994).
Atualmente é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco, professor
titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência
na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da
História, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste,
masculinidade, identidade, cultura, biografia histórica e produção
de subjetividade.

Em entrevista a Leonardo Campos*, ele nos fala sobre a reedição
de seu livro A Invenção do Nordeste, literatura e muito
mais. Leia a seguir.

Leonardo Campos – Seu livro A Invenção
do Nordeste
terá uma 4ª edição em breve. O que
você acha que mudou em seu olhar sobre o assunto da 1ª edição,
que já faz dez anos ? (dez mesmo ou é de 1994? deu dúvida,
me perdoa?)

Durval Muniz – Acho que o livro continua bastante atual.
Não modifiquei meu ponto de vista desde que o escrevi, até porque
a mitologia em torno do Nordeste, os estereótipos em torno do nordestino
que nele critico continuam circulando e sendo veiculados na região e
fora dela. Acho, infelizmente, que ele não é um livro que envelheceu,
embora nestes dez anos tenha tido uma boa repercussão e levado a que
outros trabalhos fossem feitos na esteira de suas ideias.

LC – Em linhas gerais, o que seria a “invenção
do nordeste”?

DM – O Nordeste, como todo recorte regional, é uma
invenção humana, são os homens que criam e definem as fronteiras
regionais ou nacionais. As regiões não estão inscritas
na natureza e não existiram desde o começo dos tempos. Todo recorte
regional, toda identidade espacial surgiu em um dado momento histórico,
emergiu a partir das ações humanas, sejam elas motivadas por interesses
econômicos, políticos, sociais, ideológicos, etc. Quando
uso o termo invenção é para chamar atenção
para o fato de que o recorte regional chamado Nordeste não existia até
os primeiros anos do século XX. O Brasil costumava ser dividido, até
então, em duas áreas: o Norte e o Sul. Entre o final da década
de dez e a década de 1930 do século XX surgiu o conceito Nordeste,
esta palavra passou a ser usada para nomear uma parte do antigo Norte, aquela
área de ocorrência das secas e, por isso mesmo, definida como a
área de atuação do IFOCS. A partir do aparecimento oficial
da palavra Nordeste no documento que define a área de atuação
deste órgão, este termo passou a ser usado por intelectuais e
políticos, pelas elites sociais desta área para nomear um espaço
que reunia os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará. Nos anos vinte o movimento regionalista e tradicionalista
encabeçado por Gilberto Freyre e o Centro Regionalista por ele ideado
trataram de dar a este conceito um conteúdo histórico, uma memória
e uma pretensa tradição cultural.

LC – Você dedica quase um capítulo inteiro aos
escritores Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto. Considera-os
os principais responsáveis por esse processo de “invenção”
no âmbito da literatura?

DM – Não, os principais inventores literários
do Nordeste são aqueles escritores vinculados as propostas do movimento
regionalista e tradicionalista como José Lins do Rêgo e José
Américo de Almeida. A visão de esquerda sobre o Nordeste, a visão
construída por autores influenciados pelo marxismo, como Graciliano e
João Cabral, embora fosse uma tentativa de denunciar a miséria,
a pobreza, a exploração de que seria vítima o homem do
povo da região, terminou por reforçar uma série de estereótipos
sobre este espaço, que já apareciam formulados nos discursos dos
regionalistas e tradicionalistas. Sendo obras de grande qualidade estética
e de grande repercussão no país, é inegável que
títulos como Vidas Secas ou Morte e Vida Severina serviram
para fixar no imaginário nacional uma série de imagens e de enunciados
sobre o Nordeste, ainda mais porque estas obras foram posteriormente levadas
para o cinema e para a televisão com grande sucesso. À medida
que optaram por mostrar a face mais miserável e cruel da região,
estes dois autores acabaram por reforçar os próprios estereótipos
que eram regularmenrte utilizados pelos discursos das elites deste espaço
para a reivindicação de recursos e cargos públicos.

LC – Diferentemente do cinema novo, o nordeste é mostrado
no cinema da retomada com belas paisagens (Deus é Brasileiro)
e muitas cores e música (Eu tu eles e O Caminho das Nuvens).
O que você diz disso?

DM – Embora os filmes de maior bilheteria no Brasil hoje
sejam, quase sempre, aqueles produzidos com a participação da
Globo Produções, levando para a tela do cinema, autores, diretores
e atores consagrados pela televisão e, nestes fimes, como aqueles dirigidos
por Guel Arraes continue sendo explorada a mesma estereotípia em torno
do Nordeste, toda a série de filmes locados na cidade de Cabaceiras na
Paraíba, alimenta os mesmos lugares comuns sobre este espaço,
a mesma visibilidade do regional, existindo sim alguns filmes inovadores no
que tange a maneira como se mostra e aborda a região Nordeste. Baile
Perfumado
é, neste aspecto, um filme pioneiro, ao tratar do cangaço,
um dos quatro temas nucleares na definição da nordestinidade,
articulando-o com o moderno, o tecnológico e não com o tradicional
ou o arcaico, como é comum, além do que foge da imagem estereotipada
da caatinga seca e da terra gretada, das caveiras e urubus. Amarelo Manga
é outro filme inovador, ao trazer para a tela do cinema a metrópole
do Nordeste, o fenômeno urbano e não o campo ou a cidadezinha do
interior. Sempre digo que meu livro foi possível, ele surgiu, porque
a forma de ver e dizer o Nordeste, a narrativa regionalista nordestina não
mais se sustentava diante de todas as mudanças que ocorreram na realidade
regional, esta narrativa se esgarçou, perdeu legitimidade, perdeu sustentação
na realidade. Acho que esta filmografia começa a olhar para o que é
a realidade regional hoje sem se deixar dirigir e cegar pela olhar clichê,
pelo olhar do senso comum, do já esperado.

LC – A novela global “Senhora do destino” está
sendo exibida novamente e seu personagem principal é uma nordestina de
sotaque carregado. Qual a sua opinião sobre esses clichês que são
disseminados na maioria das vezes pelas novelas do horário nobre?

DM – As novelas de temática nordestina testemunham
um fenômeno que é comum na produção televisiva brasileira,
notadamente nos programas do chamado horário nobre, que é o da
falta de ousadia ou de criatividade, são programas feitos para atender
a uma recepção acrítica, para atender aquilo que já
se espera, já se sabe e já se viu. Parte-se do pressuposto falso
de que o público deste horário não está muito disposto
a consumir o inesperado, o inovador, aquilo que rompa com formas de ver e dizer
já consagradas, portanto, não há nada de surpreedente que
a novela das oito horas, de temática nordestina não saia do clichê,
da fala arevesada, do sotaque pretensamente regional, mas que não se
fala em lugar nenhum da região, do folclórico, do exótico,
do bizarro.

LC – Vidas Secas, de Graciliano Ramos está
presente em diversas listas de vestibulares do país. Você acha
que ainda exista esse interesse de continuar inventando um nordeste?

DM – Enquanto o regionalismo e estas imagens e enunciados
clichês funcionarem, enquanto servirem para atender a demandas e interesses
das elites regionais e de outras regiões, o Nordeste vai continuar sendo
reproduzido. Enquanto as camadas populares no Nordeste continuarem tendo na
nordestinidade um elemento tido como positivo de suas identidades, ele continuará
sendo consumido e oferecido como elemento fundamental na elaboração
das identidades coletivas. Enquanto a narrativa regionalista nordestina tiver
auditório e funcionar no sentido de carrear recursos e dádivas
para as elites regionais, o Nordeste será reposto, inclusive pelas elites
ditas de esquerda que costumam também se arrepiarem e se emocionarem
em nome do Nordeste e em nome do nordestino e da cultura popular nordestina.
Todas as chamadas gestões populares das cidades ou dos Estados na região,
todos os governos ditos de esquerda alimentaram como ninguém as mitologias
que compõem a identidade regional nordestina e a pretensa cultura popular
da região, tratada sempre a partir da ideia de resgate e de preservação,
repondo o lugar comum de pensarmos a cultura nordestina como uma cultura tradicional,
artesanal, folclórica, rural, uma cultura vinda de outros tempos, uma
cultura que não é do nosso tempo, uma cultura sobrevivência,
relíquia, que deve ser artificialmente mantida com as beneces, patrocínio
e mecenato dos poderes públicos.

LC – Jorge Amado talvez seja um dos maiores (se
não o maior) colaboradores dessa idéia de nordeste, em destaque,
a Bahia, pela tradução de seus romances para diversas línguas
e pelas adaptações televisivas de suas obras. Você concorda?

DM – Jorge Amado não é propriamente um inventor
do Nordeste, ele pouco utilizou ou se referiu a este recorte espacial em suas
obras. Amado é um inventor da Bahia e da baianidade, Bahia e baianidade
centradas na vida do Recôncavo, na memória da sociedade do cacau,
do sul da Bahia. Mas, a medida que após a criação da SUDENE
passou a ser interessante para as elites baianas inserir o Estado na região
Nordeste, assumir a identidade regional nordestina, pelo menos sempre que atendesse
a dados interesses, as formulações de Amado em torno da Bahia
vão ser incorporadas à imagem do Nordeste, e isto se faz com muita
facilidade porque a obra amadiana elabora uma visão do Brasil, da sociedade
brasileira e, por extensão, da sociedade nordestina, muita próxima
daquela elaborada por Gilberto Freyre, justamente o intelectual que foi nuclear
na elaboração da identidade regional nordestina. Ambos tratam
de chamar atenção para o caráter aristocrático,
estamental e, ao mesmo tempo, popular da sociedade brasileira. Ambos tratam
de enfatizar a contribuição africana, negra, para os costumes,
para a cultra e a sociedade brasileiros.

*Graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua
Estrangeira Moderna – Inglês – UFBA | Membro do grupo de pesquisas “Da
invenção à reivenção do Nordeste” –
Letras – UFBA | Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura

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