Home EstudosSala de AulaPortuguês Funções de linguagem: 1. Homonímia e Polissemia – Estudo de casos

Funções de linguagem: 1. Homonímia e Polissemia – Estudo de casos

by Lucas Gomes

A polissemia, segundo o senso comum, é o nome que se dá à propriedade que define quando uma palavra pode ter mais de uma significação. A definição de polissemia está inserida dentro dos estudos semânticos, área da língua que se refere ao estudo do significado, em todos os sentidos do termo. Já a homonímia é a relação entre duas ou mais palavras que, apesar de possuírem significados diferentes, possuem a mesma estrutura fonológica.

Dependendo da concepção de significado que se tenha, têm-se diferentes semânticas. A semântica formal, a semântica da enunciação ou argumentativa e a semântica cognitiva, por exemplo, estudam o mesmo fenômeno, mas com conceitos e enfoques diferentes.

Por questões de recorte, iremos analisar a polissemia dentro de um produto exclusivo: o filme Caramuru – A Invenção do Brasil, de Guel Arraes. No filme, às vésperas do descobrimento do Brasil, um pintor (Selton Mello) é punido ao roubar um mapa que viria a ser usado por Pedro Álvares Cabral em sua próxima expedição. Como pena, ele é deportado e vai parar na costa brasileira onde conhece as índias Paraguaçu (Camila Pitanga) e sua irmã Moema (Deborah Secco).

Há diálogos no roteiro do filme que colaboram com os estudos ligados à polissemia: temos exclusivamente três momentos chave para esta análise, quando os protagonistas da trama discutem, durante um divertido diálogo, os diversos significados das palavras fiapo, língua, manga e pena. Há também um breve uso da homonímia e da sinonímia.

O objeto de análise: o filme Caramuru – A Invenção do Brasil

Com direção de Guel Arraes e roteiro de Jorge Furtado, o filme traz Selton Mello como Diogo Álvares, o Caramuru, Camila Pitanga, como Paraguaçu, e Déborah Secco como Moema, irmã de Paraguaçu. Também estão no elenco Tonico Pereira (Itaparica), Débora Bloch (Isabelle), Luis Mello (Vasco de Athayde), Pedro Paulo Rangel (Dom Jayme) e Diogo Vilela (Heitor). A concepção musical é de Lenine, a produção musical de Carlinhos Borges, a direção de arte de Lia Renha e os figurinos de Cao Albuquerque.

Eis a sinopse do filme: em 1º de janeiro de 1500 um novo mundo é descoberto pelos europeus, graças a grandes avanços técnicos na arte náutica e na elaboração de mapas. É neste contexto que vive em Portugual o jovem Diogo (Selton Mello), pintor que é contratado para ilustrar um mapa e, por ser enganado pela sedutora Isabelle (Débora Bloch), acaba sendo punido com a deportação na caravela comandada por Vasco de Athayde (Luís Mello). Mas a caravela onde Diogo está acaba naufragando, e ele, por milagre, consegue chegar ao litoral brasileiro. Lá, ele conhece a bela índia Paraguaçu (Camila Pitanga) com quem logo inicia um romance temperado posteriormente pela inclusão de uma terceira pessoa: a índia Moema (Débora Secco), irmã de Paraguaçu.

Caramuru – A Invenção do Brasil narra de forma afetiva, lúdica e bem-humorada uma das histórias mais remotas do imaginário popular brasileiro: o casamento de Caramuru e Paraguaçu tendo como cenário o paraíso tropical que era o Brasil à época do seu descobrimento. E viaja também às cortes de Lisboa quinhentista na época áurea dos descobrimentos portugueses em primorosa recriação de época. Conta a lenda que o português Diogo Álvares teria nascido em Viana do Castelo, norte de Portugal, em 1475, e dado às costas brasileiras em 1510. Por sua vez, Paraguaçu teria nascido na ilha de Itaparica, em frente à cidade de Salvador. Itaparica seria também o nome do chefe dos tupinambás, pai da jovem índia. Logo o encontro amoroso de Caramuru e Paraguaçu ganha um desdobramento inesperado, porém, muito bem-vindo. Não é que Moema, irmã mais jovem de Paraguaçu, também se encanta pelo estrangeiro e é plenamente correspondida? O que em outras épocas poderia provocar uma história de sangue, transformou-se apenas no primeiro triângulo amoroso da história do país.

Para inventar o Brasil, Guel Arraes e Jorge Furtado pesquisaram as inúmeras influências que fazem parte da história do país – de Macunaíma a textos de Camões, e somaram rigor com irreverência, humor com afeto, confronto com leveza em uma comédia histórica, focalizando a origem de alguns dos bons e maus costumes desta terra. Caramuru – A Invenção do Brasil aborda de forma bem-humorada, lúdica e sensual o encontro de dois mundos e as muitas possibilidades de trocas afetivas e culturais.

É nesse contexto que encontramos as relações polissêmicas para a análise que esse artigo se presta. O contato entre Novo e Velho mundo traz situações divertidas e embrionárias para estudos ligados à semântica, não apenas no campo da polissemia, mas também nos estudos sobre antonímia, homonímia e sinonímia. Portanto, por questões ligadas aos recorte, trataremos aqui apenas da polissemia, que será definida através de uma pesquisa detalhada no próximo tópico, através de diversos gramáticos e lexicógrafos e próximo ao final, analisaremos brevemente outros dois fenômenos semânticos no filme: a homonímia e a sinonímia.

Polissemia: um estudo semântico

Para se entender o conceito de polissemia, é preciso buscar entender outros fenômenos semânticos próximos, como por exemplo, a homonímia, para assim, fazer uso da análise contrastiva e daí analisar adequadamente o fenômeno. Pensa no vocábulo manga, que será analisada mais detalhadamente no próximo tópico: é preciso pensar se existe alguma relação entre a fruta e a manga da camisa. Sendo assim, trata-se de um único vocábulo com dois sentidos. Mas é preciso pensar se são dois vocábulos diferentes com a mesma forma. Quando um vocábulo possui mais de um significado, chamamos isso de polissemia. Quando dois vocábulos diferentes, de origens e significados diversos, terminam convergindo para a mesma configuração fonológica e ortográfica, chamamos de homonímia.

No senso comum, polissemia (do grego poli = “muitos” e sema = “significados”), é o fato de uma determinada palavra ou expressão adquirir um novo sentido além de seu sentido original. Há diversas definições de polissemia, analisada por gramáticos. Para realização deste artigo, pesquisamos alguns mais notáveis, abrangendo as possibilidades de análise de nosso trabalho.

Para William Roberto Cereja & Tereza Cochar Magalhães (1999: 386 e 423), polissemia é a propriedade de uma palavra apresentar vários sentidos. De acordo com o gramático Rocha Lima (1994 : 485 / 487), polissemia – no âmbito puro da denotação, é preciso levar em conta a polissemia – vale dizer a multiplicidade de sentidos imanentes em toda palavra (…). Luiz Antonio Saconni (1995: 431 e 433), a polissemia é a propriedade de uma palavra adquirir multiplicidade de sentidos que só se explica dentro de um contexto, trata–se de uma única palavra que abarca grande número de acepções dentro de seu próprio campo semântico. Na concepção de Luiz Antonio Saconni (1995: 431 e 433), a polissemia é a propriedade de uma palavra adquirir multiplicidade de sentidos que só se explica dentro de um contexto, trata – se de uma única palavra que abarca grande número de acepções dentro de seu próprio campo semântico.

Segundo Evanildo Bechara (1999: 402/ 403), a polissemia é o fato de haver uma só forma (significante) com mais de um significado unitário pertencentes a campos semânticos diferentes (…) A polissemia é um conjunto de significados, cada um unitário, relacionados com uma mesma forma.Por fim, Domingos Pascoal Cegalla (1994: 284 / 285), na polissemia uma palavra pode ter mais de um significado.

As definições dos autores não são muito diferentes.

Outras relações semânticas: homonímia e sinonímia

Outros dois fenômenos semânticos estão presentes no diálogo travado entre Caramuru e Paraguaçu, selecionado para a análise polissêmica do roteiro do filme: são a homonímia e a sinonímia. O primeiro deles, a homonímia, trata da identidade fonética e/ou gráfica de palavras com significados diferentes. Existem três tipos de homônimos e eles podem ser homônimos homógrafos – palavras de mesma grafia e significado diferente. Exemplo: jogo (substantivo) e jogo (verbo); homônimos homófonos – palavras com mesmo som e grafia diferente. Exemplo: cessão (ato de ceder), sessão (atividade), seção (setor) e secção (corte); homônimos homógrafos e homófonos – palavras com mesma grafia e mesmo som. Exemplo: planta (substantivo) e planta (verbo); morro (substantivo) e morro (verbo).

Já a sinonímia é um processo muito utilizado por falantes de uma língua. Uma das maneiras de sanarmos esse problema é com o uso de sinônimos. Por exemplo, se digo: “Passe um dia na minha casa.” e quiser referir-me novamente ao termo sublinhado “casa”, posso lançar mão de um sinônimo para não o ter que repetir: “Passe um dia na minha casa e verá como meu lar é aconchegante.”

A homonímia no filme Caramuru – A Invenção do Brasil

Antes de realizar a análise das palavras que representam o universo da homonímia no roteiro do filme Caramuru – A Invenção do Brasil é preciso nos ater ao trecho em que acontece a discussão deste fenômeno. Segue abaixo a descrição do momento em que as personagens Caramuru (Selton Mello) e Paraguaçu (Camila Pitanga) discutem o assunto:

Caramuru e Paraguaçu caminha pelo litoral da nova terra descoberta quando de repente, começam a dialogar:

– Língua ! – diz Paraguaçu
– Você fala minha língua? – pergunta Caramuru.
– Uhum ! – diz Paraguaçu, lambendo o rosto de Caramuru em seguida.
– E fala fluentemente – balbucia Caramuru, encantado com a índia.
Ambos continuam caminhando pelo litoral, repleta de árvores frondosas e frutíferas, além da fauna diversificada. De repente, surge um sabiá, e Paraguaçu então exclama:
– Aquele ali é o sabiá-piranga! Ele é primo do sabiá-ponga, do sabiá-urne… são vinte qualidades de sabiá que aqui tem!
Continuam andando. Paraguaçu sobe em uma árvore, colhe uma manga, joga para Caramuru e diz:
– Manga!
– Manga? – indaga Caramuru, fazendo cara de dúvida
– Uhum – responde Paraguaçu
Com isso, Caramuru aponta para a manga da camisa que veste e diz:
-Manga!
– Maaaaaaaannga? – pergunta Paraguaçu, soltando logo depois: Hummm, manga? – sacudindo a cabeça de forma a achar que Caramuru estava curtindo com ela. Tira um fiapo da manga dos dentes e diz:
– Fiapo. Fiapo de manga!
Caramuru, vendo a cena, tira um fiapo do tecido da manga da camisa que veste e entrega a Paraguaçu, dizendo:
– Fiapo. Fiapo de manga!
De repente, surge um pássaro que voa próximo, Caramuru então exclama:
– Arara !
– Nãaaaooo. Urubu! Parece urucubaca – diz Paraguaçu
– Hummm…urubu parece arara. São dois pássaros, cinco letra e uma só vogal! – diz Caramuru.
– É fácil, fácil ! Arara tem dó colorido e urubu só tem dó preto! – diz Paraguaçu
– Dó preto? – pergunta Caramuru. Eu pensei que tivesse falado penas.
– Não foi você quem disse que dó era pena? – pergunta Paraguaçu, lembrando de um diálogo anterior.
– Simmmmmmm… mas dó é pena no sentido de pena, de sentimento ! Pena de pássaro é pena mesmo. É fácil, fácil ! – responde Caramuru, para encerrar o diálogo.
– Eita língua enrolada! É tudo sempre assim é? Uma palavra tem sempre serventia para um monte de coisas? – argumenta Paraguaçu
– As vezes se dá o contrário. Existe uma infinidade de palavras para explicar o amor, por exemplo – fecha a cena Caramuru.

Esta cena quase ao meio do filme. Caramuru já havia chegado ao Novo Mundo e começava a conhecer os atributos da terra, entre eles, a geografia, as índias e a curiosa língua indígena. A primeira palavra para análise do nosso artigo é língua. Segundo o Dicionário Priberam da língua portuguesa, a palavra língua (latim lingua, -ae) s. f. pode ser: 1. Órgão móvel da cavidade bucal. 2. Ling. Sistema de comunicação comum a uma comunidade linguística. 3. Tromba dos insetos! lepidópteros. 4. Fiel da balança. 5. Parte estreita e comprida de terra banhada lateralmente por água.6. Fig. Estilo de escrita, discurso ou expressão característico de alguém.s. m. 7. Intérprete.

Na cena descrita acima, temos a discussão acerca da palavra em dois sentidos: o primeiro, órgão móvel da cavidade bucal, e na segunda, quando Caramuru pergunta sobre língua, e Paraguaçu responde lambendo-o, usando a mesma expressão do sistema de comunicação comum a uma comunidade lingüística, nesse caso, a língua portuguesa falada em Lisboa, Portugal, Europa, terra natal do degredado Caramuru.

No diálogo seguinte, temos o uso da palavra manga, que é uma das mais clássicas escolhas contemporâneas no que tange aos estudos da homonímia e da formação de palavras em português: segundo o mesmo dicionário citado acima, manga é s f. 1. Parte do vestuário que cobre o braço. 2. Filtro em forma de saco. 3. Mangueira de bomba. 4. Chocalho grande. 5. Extremidade do eixo em que entra a roda. 6. Chaminé de candeeiro de malha metálica que aumenta a intensidade da luz. 7. Redoma. 8. Tromba (meteoro). 9. Fruto da mangueira. 10. A própria mangueira. 11. Fig. Turba, multidão (de gente). 12. Bras. Pastagem cercada para cavalos e bois. No diálogo extraído do roteiro do filme, temos o uso da palavra manga em três diferentes acepções: a primeira delas, ligado a manga como fruto tropical, próprio do Brasil.

Logo depois, Caramuru indaga o uso da palavra para a fruta, mostrando como a mesma palavra pode ser usada para definir a parte da camisa em que cobre os braços. Ainda no mesmo diálogo, Paraguaçu sorri para Caramuru e diz novamente a palavra manga, no sentido de palavra originária do verbete mangar, que significa zombaria, curtição, como se a mesma dissesse, está mangando de mim, não é?

Foi dada uma conceituação de polissemia no início deste trabalho, portanto, é a homonímia que vai figurar com maior freqüência. Ainda existem estudos que confundem estas definições semânticas da língua portuguesa.

Logo depois temos o uso da palavra fiapo. Nele, podemos ver os dois usos distintos da palavra fiapo para designar coisas similares, portanto, em situações diferentes (observe imagem ao lado). Temos aí o uso da homonímia. Fiapo, sim. Portanto, fiapo de manga e fiapo de camisa. Mesmo não sendo o recorte central da nossa análise, decidimos colocar esta observação no artigo, visto que muitos autores fazem uma análise da homonímia e da polissemia de forma paralela, contrastiva.

Por fim, temos o uso das palavras dó e pena. Segundo o dicionário Priberam, a palavra pena pode ser definida das seguintes formas: s. f. 1. Punição, castigo imposto por lei a algum crime, delito ou contravenção. 2. Desgosto, tristeza. 3. Lástima, dó, compaixão. 4. Caneta; bico de escrever; cálamo. 5. Escritor. 6. Pluma. 7. Asa de rodízio de moinho. 8. Veio de água da grossura de uma pena de pato. 9. Parte espalmada da bigorna. 10. Mar. Penol. 11. Ant. Penha. 12. Ant. Espinho, pua. No caso do filme, dó e pena são sinônimos pois são palavras que possuem mesmo significado, mas grafia diferentes.

Considerações finais

Pode-se concluir que o filme Caramuru – A Invenção do Brasil, dirigido por Guel Arraes, é um ótimo exemplar para se trabalhar as relações semânticas na sociedade, através de recursos audiovisuais. O filme traz trechos que explicitam essa relação do significado das palavras e suas definições e propriedades semânticas, como no trecho extraído e exposto neste trabalho.

Em nosso cotidiano, temos o uso constante das relações semânticas estudadas neste artigo, além de muitas outras que aqui não podem ser esclarecidas por questões de recorte. A polissemia é um fenômeno semântico estudado dentro desse contexto, além da homonímia e da sinonímia.

O uso do filme Caramuru – A Invenção do Brasil visou analisar estas relações aliadas às teorias semânticas de diversos gramáticos e lexicógrafos citados neste trabalho, buscando mostrar que com o uso de recursos audiovisuais, as mensagens acerca das teorias possam ser explanadas de forma mais dinâmica, ampliando assim as opções de estudo dos fenômenos citados.

Créditos: Leonardo Campos, graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua Estrangeira Moderna – Inglês – UFBA | Membro do grupo de pesquisas “Da invenção à reivenção do Nordeste” – Letras – UFBA | Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura

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