Em Os papéis do Inglês, obra de ficção
portuguesa publicada em 2000 e primeiro romance do antropólogo Ruy Duarte
de Carvalho, o autor repete um procedimento romanesco que usou em sua obra anterior,
Vou lá visitar pastores, ou seja, escrever a alguém.
Esse procedimento simultaneamente extrapola e estrutura a prosa como pretexto
de relato dirigido, neste caso, a uma destinatária que se insinua e instala
no texto. São e-mails que servem de suporte a uma narrativa densa, povoada
de referências, observações e reflexões pessoais:
“Cada um de nós, aqui ao fim destes anos de perplexidade constante,
transporta para onde vai as marcas do exercício pessoal da sua sobrevivência.”
O autor embrenha-se na decifração do mistério dos documentos
deixados por um caçador inglês, que andara pelo seu território
de eleição nas primeiras décadas do século passado,
e aos quais já se referira, incidentalmente em sua obra Vou lá
visitar pastores.
Em primeira pessoa, conta uma história de ganância, violência
e paixão. Um professor universitário decide viajar para a África
para investigar o suicídio, ocorrido em 1923, de um caçador de
elefantes. Este caçador, depois de matar um companheiro de profissão
grego às margens do rio Kwando, na fronteira com a atual Zâmbia,
e de se entregar às autoridades portuguesas que não lhe dão
ouvidos, volta ao acampamento e abate a tiros tudo o que vê pela frente
terminando por disparar a arma contra o próprio peito. Uma ficção
hesitante que informada pela antropologia, preza o princípio de que a
busca vale mais que o achado. As peripécias vividas pelo protagonista,
o professor, ressoam numa dimensão individual. Ele desconfia que algo
sobre sua personalidade pode ser descoberto na trajetória desse caçador
inglês.
Por esse mesmo princípio, o caminho só pode ser visto pelo acúmulo
e pela sobreposição de histórias. O que ocorre então
é uma narrativa em permanente suspeita perante si mesma, a questionar-se,
interrompendo-se para revelar, por um processo análogo ao relativismo
antropológico.
Com uma prosa de sabor incomum, que explora toda a riqueza vocabular do português
angolano, é uma obra que discute não apenas os limites do homem
num ambiente hostil mas também as possibilidades da linguagem ficcional.
É ela que pode redimir as desilusões do professor, crescentes
à medida que sua investigação se aproxima do desfecho,
e atenuar, quem sabe, a dureza de um mundo no qual os sonhos parecem estar para
além da fronteira, para além de todas as fronteiras.
A impressão que se tem é que Ruy Duarte de Carvalho serve-se
de uma estória angolana para fazer também a sua teoria da literatura,
de dentro de um país em crise permanente, onde se consome e vive como
se o mundo fosse acabar amanhã.
Fonte parcial: Bernardo Carvalho, para o jornal Folha de S. Paulo