A peça Os fuzis da Senhora Carrar, foi escrita em 1937 por
Bertold
Brecht em meio a Guerra
Civil Espanhola, que entre os anos de 1936 a 1939 levou centenas de pessoas
para as linhas de frente da guerra.
A obra traz à cena a história de Tereza Carrar, moradora de uma
pequena vila de pescadores e mãe de Pedro e Juan. Ela não quer
que seus filhos sigam para a guerra, mas os generais avançam a cada minuto.
A antagônica luta entre a neutralidade e definição de posicionamento
político é levada até as últimas conseqüências
num desfecho surpreendente.
A obra não exige, necessariamente, do espectador uma participação
intelectual definida. Ao contrário, a proposta do teatro brechtiano é
justamente a de contribuir para a formação intelectual desse mesmo
espectador, demonstrando-lhe a realidade de acordo com os processos, conceitos
e formas de abordagem tomadas pelo autor à sociologia, ao marxismo, à
economia e ao materialismo histórico.
As atrocidades e os terrores da guerra, o sacrifício humano, a barbárie
de toda uma geração entregue à miséria e à
morte nos campos de batalha, ou na vida mesma, diária e cotidiana, uma
geração que sequer é capaz de compreender a realidade grotesca
da qual faz parte, em que está inserida e sobre a qual, não percebe,
atua diretamente ou serve de forma subserviente, tudo isso é descrito
com um realismo invejável na obra dramática de Brecht, obra que
assume, muitas vezes, um tom de denúncia e agravo contra os desmandos
e os absurdos amorais de que se revestem os conflitos descritos, sejam eles
bélicos ou sociais.
Não há romantismo ou heroísmo em Os fuzis da Senhora
Carrar. Há uma espécie de asco, de nojo calculado, de raiva
cega contra a estupidez do homem no mundo, uma visão mordaz e clínica
dos exageros da guerra, dos traumas ocasionados por ela, das dificuldades em
tomar partido, em participar de uma realidade desgastante e corrosiva, angustiante
mesma. É o mundo que se desintegra lentamente. É o homem que já
não pode fazer frente a si mesmo, entregue, abandonado, miserável
e patético: a impotência sempre rediviva.
A peça de Brecht tem como preocupação maior demonstrar
que situações de conflito coletivo, como foi a guerra civil espanhola,
como foi a Primeira Guerra Mundial, desumanizam as pessoas, minam a capacidade
humana de transcender sua desigualdade, de vencer suas diferenças, de
ensaiar um mundo justo, que nenhum véu encubra, levando os homens a um
abismo moral sem precedentes ou justificativas, como o mesmo Brecht demonstraria,
anos mais tarde, com uma outra peça determinante em sua carreira: Mãe
Coragem.
Dessa forma, o público de Brecht não precisa ser um leitor dedicado
e atencioso de todas as teorias sociológicas ou filosóficas da
época para compreender o mundo e a sociedade em que vivia, bastava direcionar-se
a um espetáculo do autor e se deparar, clara e precisamente, com sua
auto-imagem projetada sobre os palcos, com a realidade transfigurada em motivos
cênicos, ainda que, na maioria dos casos, Brecht não deixasse transparecer,
graças ao recurso do distanciamento narrativo, que se referia ao mesmo
público ali presente, à mesma realidade de todos os dias, aos
mesmos dramas, misérias, desesperos e frustrações de que
se compõem mesmo o mais inocente de todos os públicos.
Os fuzis da senhora Carrar procura uma estética do “distanciamento”
para que o espectador não seja conduzido apenas pela emoção,
mas também pela reflexão a respeito dos fundamentos da sociedade
capitalista e da necessidade de criar uma ordem social alternativa.
Créditos: Márcio Scheel, escritor