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Prosas seguidas de odes mínimas, de José Paulo Paes

by Lucas Gomes

Publicado em 1992, Prosas seguidas de odes mínimas, de José
Paulo Paes, pertence ao 3º Tempo Modernista e é composto de duas
partes contendo vinte textos em prosa poética e treze odes curtas (à
exceção “A minha Perna”).

O autor recorre, nos títulos de poemas a uma nomenclatura da lírica
tradicional: canção, noturno, balada, ode, e abordam aspectos
memorialísticos, literários, existenciais e sociais, e têm
a presença constante da esposa do autor, Dora. A obra começa falando
de morte e termina falando em nascimento, mostrando, ao que parece ser, uma
experiência de separação.

O livro é uma mistura de temas que vão do lirismo à crítica
política e fazem com que o leitor tenha uma idéia geral da obra.
Por esses motivos é um dos livros mais completos. O autor repassa por
toda sua trajetória e é como se tivesse a preocupação
de lapidar novamente toda sua forma e estilo.

Em “Escolha de túmulo”, coloca o pós-morte como
uma nova vida, um novo vôo. Faz mais uma nova leitura em “Canção
de exílio” do poema de Gonçalves Dias. Existe a presença
da figura de seu pai no poema “Um retrato”, uma homenagem que também
contém a morte como tema de reflexão. Esse mesmo tema encontra-se
embutido no poema “Reencontro”, onde o autor se encontra em sonho
com o teatrólogo Osman Lins, falecido anos atrás. O crédito
de maior destaque pode ser dado ao poema: “À minha perna esquerda”.
Trata-se de uma seqüência de poemetos de características epigramáticas,
num total de sete, onde conta sobre si mesmo de maneira tétrica e sarcástica
sobre a perda de sua perna esquerda. É forte a intenção
interpretativa que se embute no inevitável sacrifício. Nos poemas
finais, tece uma quase crônica dos detalhes, sintetiza no cotidiano de
objetos e lugares sua poética de forma condensada e rebuscada para dentro
de si mesmo.

Contém nesta coletânea: “Escolha de túmulo”,
“Noturno”, “Canção de exílio”,
“Um retrato”, “Outro retrato”, “A casa”,
“Iniciação”, “Nana para Glaura”, “Balancete”,
“Reencontro”, “Balada do Belas-Artes”, “À
minha perna esquerda”, “À bengala”, “Aos óculos”,
“À tinta de escrever”, “Ao shopping center”,
“Ao espelho”, “Ao alfinete” e “A um recém-nascido”.

É uma obra de caráter extremamente conciso, que remonta em alguns
aspectos à literatura de Oswald de Andrade, como a paródia, o
trocadilho, o humor, a poesia sintética, o espírito satírico.
No entanto, o poeta não se aproxima apenas de Oswald de Andrade. Sente-se
nele uma familiaridade com Drummond, principalmente no aspecto gauche de alguns
poemas. Basta ler o texto “Canção do adolescente” transcrito
abaixo:

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

Neste poema o eu-lírico se descreve como uma junção um
tanto desajeitada do adolescente com o amadurecido, criando um híbrido
dotado de uma anatomia que inspira compaixão ou riso. Mas o tom drummondiano
também é percebido pelo cansaço com que enxerga a geração
humana. E, assim como Drummond, o desencanto com a espécie humana não
é suficiente para anular de maneira niilista o desejo por viver. É
o que se vê abaixo, em “Mundo Novo”.

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.
E no entanto sabias de antemão que seria assim.
Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.
Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes,
que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra
mal enxuta do Dilúvio.

Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

Veja que se assume o tom de “no entanto, prosseguimos animadamente vivendo”
de algumas peças preciosas do Rosa do Povo, de Drummond, pois
ocorre também a defesa da existência.

Além de vincular-se a Drummond, José Paulo Paes apresenta a mesma
afetividade com que Bandeira recupera, por meio da memória, personagens
do seu círculo familiar, principalmente as que povoaram sua infância.
É o que pode ser visto, entre tantos exemplos, no texto abaixo, que resume
as características das várias personagens descritas na obra, em
poemas individualizados.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas
com corações de purpurina.

Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de
circo.

Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o
fim dos tempos.

No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última
filha.

Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio
caixão.

Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro
mundo.

No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está
vivo: trouxe- até ali o pássaro dos sonhos.

Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.

É interessante perceber que o estilo conciso adotado pelo autor acaba
por tornar todo o poema densamente carregado de significado. Tudo contribui
para o sentido geral do texto. Basta notar as referências, explícitas
ou implícitas, à idéia de morte em quase todas as personagens:
“avisos fúnebres”, “romances policiais”, “caixão”,
“mortalhas”, “outro mundo”, “morreu”. Olhar
para o passado e relembrar figuras que não existem mais é ter
consciência da passagem do tempo, o que implica a noção
de envelhecimento e morte.

Outro aspecto importante e que constitui uma pista interpretativa bastante
útil deixada pelo autor, é o fato de que a recuperação
do seu passado é obtida graças à asa dos sonhos. Podem
ser vistos aqui traços que prestar atenção ao caráter
romântico (sonho, fantasia, emotividade) e algo entre simbolismo e surrealismo,
principalmente este último.

José Paulo Paes detona um conjunto de imagens de relação
absurda entre si, como que ditadas por um pensar em delírio e, portanto,
livre das peias racionalistas. No entanto, é esse pássaro dos
sonhos que lhe dá fôlego suficiente para ter, absurdamente ou não,
uma visão ousadamente perfeita de nossa realidade.

Dentro ainda do campo do absurdo, deve-se lembrar que um esquema muito comum
no poeta é a utilização das antíteses e principalmente
paradoxos (figuras de linguagem ligadas à oposição) na
expressão de sua realidade.

O que José Paulo Paes parece fazer é juntar elementos completamente
contrários e por meio da forte tensão que se forma dessa união
ganhar energia suficiente para que se enxergue mais eficientemente a realidade
do que pela lógica racional (pode-se lembrar que tal procedimento era
muito comum em Machado de Assis, que enxergava a realidade como algo dilemático.

Mas se no autor realista essa elaboração se encaminhava para
a fria análise da condição humana, em José Paulo
Paes é lastreada por uma forte emotividade. É provável
que haja mais familiaridade com o Barroco, famosa arte das oposições.No
entanto, a sofisticação da linguagem da escola seiscentista, gerando
textos que eram verdadeiras elucubrações, é bastante diferente
do tom simples assumido em Prosas seguidas de odes mínimas). É
o que se vê, entre tantos casos, no trecho abaixo:

OUTRO RETRATO

O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.
Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.

Deve-se observar que a idéia de laço, numa análise superficial,
está ligada a prisão, opondo-se, portanto, a vôo. No entanto,
de forma surrealista, o nó corredio é facilmente associado a borboleta.
Um estudo profundo revela que tal associação não é,
porém, absurda, já que remonta à idéia de que todo
retrato faz retomar um passado em que sonhos, desejos eram montados cheios de
idealização. Dessa forma, o poema acaba por avaliar agudamente
o presente, que se desviou grosseiramente das expectativas de um passado ingênuo.

Também é necessário lembrar que José Paulo Paes
possui um ponto de contato com uma qualidade comum a Bandeira e Drummond: a
emotividade retirada das coisas simples, cotidianas. Consegue da mesma forma
que os dois pilares da poesia modernista, ter os mesmos passos de um cronista
moderno, alçando vôos líricos altíssimos.

Assemelha-se ainda a João Cabral de Melo Neto nos seguintes aspectos:
linguagem enxuta, densidade e materialidade verbal, fixação de
elementos concretos, recortados em versos breves, lucidez vigilante, recusa
do supérfluo e do sentimentalismo, rigor intelectual e a imaginação
plástica, escassez de adjetivação e gosto pela rima toante.

Curioso é perceber que os trechos apresentados até agora, tratados
como poemas, na realidade correspondem à primeira parte da obra, composta
de “prosas”. Sua elaboração, no entanto, recebe um
trato de linguagem tal que se aproximam por demais da poesia. Pode-se tratar,
portanto, de um famoso gênero criado pelos simbolistas, o da prosa poética,
já percorrido por Cruz e Sousa, Aníbal Machado e Rubem Braga.

Os poemas têm, tradicionalmente, um tom grandioso. No entanto, o poeta
engrandece coisas simples, como um alfinete, um fósforo, uma garrafa
ou até mesmo a tinta de escrever, como se vê a seguir

À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas
mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia.
Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.

Segundo Antonio Candido, há em José Paulo Paes uma predileção
pelo pequeno, pelo mínimo, que lhe alimenta de fôlego suficiente
para não só engrandecê-lo, mas também de buscar o
gigantesco.

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