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Budapeste, de Chico Buarque

by Lucas Gomes

Em seu quarto livro, Budapeste, Chico Buarque, o que chama a atenção, principalmente em relação
aos enredos asfixiantes dos livros anteriores, é a linguagem mais palatável,
sedutora até, com que envolve o leitor para enfim aprisioná-lo numa armadilha
estilística: o que é verdade e o que não é? Para Schwarcz, um filho de húngaro
e editor da obra, a escolha do idioma foi aleatória. “Chico nunca esteve em
Budapeste”, afirma o editor, divertindo-se com a decisão do autor de transformar
em dialeto um regionalismo falado na Transilvânia oriental.

Pode-se dizer que a
história contada na obra seja uma meta-linguagem de si mesma, isto é, duas vezes
‘meta’, já que seu protagonista é um escritor de escritores – também denominado
ghost-writer – e trabalha para que outros assinem o resultado de seu esforço.

O nome de quem abdica
da fama e reconhecimento em troca do orgulho egoísta e silencioso é José Costa,
o narrador-personagem, um aficcionado por palavras e sons. Uma personagem
deliciosamente explorada devido à sua pretensão e ego inflado reprimidos que,
numa viagem para o Congresso dos Escritores Anônimos, acaba num quarto de hotel
na capital húngara por conta dessas burocracias aeronáuticas e se vê totalmente
enamorado pelo idioma local.

O essencial é o jogo
claro-escuro entre os dois idiomas, o português e “a única língua do mundo que,
segundo as más línguas, o diabo respeita”. José é capaz de escrever sobre
qualquer assunto, desde que seja sob a forma de prosa. Atinge o cume de sua
carreira ao criar O ginógrafo, autobiografia erótica de Kaspar Krabbe, um
executivo alemão que “zarpou de Hamburgo e adentrou a Guanabara”. No Brasil,
aprendeu a escrever o português no corpo de uma certa Tereza, e mais tarde nos
corpos de prostitutas e estudantes que chegavam a fazer fila para merecer tal
atenção.

Na pele de Zsoze, ele
só escreve em versos. Assim que começa a dominar o idioma magiar, cria um livro
de poemas, Titkos Háramsoros Versszakok ou Tercetos secretos, que sai assinado
por um tal de Kocsis Ferenc, poeta em franca decadência.

São referências
cruzadas que se repetirão pelo livro. Em certo momento, José abandona Vanda no
Rio de Janeiro para descobrir-se Zsoze nos braços de Krista, em Budapeste, e
vice-versa. Sempre que está na capital húngara ou na Cidade Maravilhosa
hospeda-se no Hotel Plaza, nome genérico que obedece à estranha regra de nunca
se localizar numa praça. Mas Vanda acaba se apaixonando pela autobiografia do
alemão Krabbe, escrita por José, enquanto Krista considera os poemas nada mais
que “exóticos”, o que leva Zsoze a romper com ela.

Tecnicamente, Budapeste
é um romance do duplo, tema clássico na literatura ocidental desde que a identidade
do sujeito tornou-se problema e enigma. A questão desfila nas narrativas do
século XIX, através dos motivos da sombra, do sósia, da máscara, do espelho,
e evolui para a indagação dessa esfinge impenetrável e desencantada que é a
própria pessoa como persona e ninguém. Na criação literária, no entanto, o escritor
é o duplo de si mesmo, por excelência e por definição, aquele que se inventa
como outro e que escreve, por um outro, a própria obra. Aos que se identificam
mais com histórias do que com estruturas, porém, a liberdade de José-Zsoze em
lidar com seus devaneios guarda ecos de Phillip Roth e Rubem Fonseca nos seus
melhores momentos. A diferença é que o personagem de Chico Buarque se revela
voyeur de si próprio e de seus delírios.

O esqueleto narrativo
diz muito pouco, no entanto, da textura ao mesmo tempo cômica e poética do
livro, sustentada em tom sóbrio e marcada ponto a ponto por aquela agudeza
estonteante de observação.

Em Budapeste,
Chico Buarque abusa de um linguajar sofisticado, não como um escritor
pretensioso que cospe palavras chavões numa tentativa de agradar a crítica, mas
como um profundo conhecedor dos ingredientes que se dispôs a cozinhar. Das
qualidades de cada tempero e das condições necessárias para melhor exaltá-los,
ele possui pleno controle, que o permite brincar com as palavras num espontâneo
trabalho árduo. Além, claro, da sensualidade irresistível que sempre habita
qualquer coisa que tenha uma pitada sua.

A imensa anedota, que
Budapeste tem o mérito de não deixar de ser, passa a ser também um
reflexão aguda e sibilina sobre o papel da literatura e o papel do literato,
sobre o descompasso gritante entre o fetiche do nome autoral e o enigma da
língua anônima, sobre o comércio obscuro e o mercado negro entre o eu e o reino
surdo e sonoro das palavras. Pois partindo da picaretagem estabelecida a
literatura vicária reivindica – e ganha -, no romance, a dignidade, paródica, de
um gênero literário: quem escreve é sempre um outro no lugar de um outro. Um
vigarista se exibe às custas do outro que escreve; um vigarista escreve pelo
outro que se exibe.

Mas o livro não é uma mera sátira do narcisismo por tabela, posto em abismo,
além da revanche, que é também, contra o pesadelo da celebridade compulsória.
Nele se cria uma cidade arquitetada com matéria de sonho e de realidade, uma
Budapeste que nasce do magma sonoro e significante da língua, um contraponto ao
Rio de Janeiro, seu avesso ao mesmo tempo familiar e estranho.
 
Enredo

José Costa
(personagem central da obra) vive no Rio de Janeiro. É casado com Vanda, que
engravidou num momento em que ele se sentia despojado de amor próprio. Gerou
Joaquinzinho. Na qualidade de sócio-proprietário da Cunha & Costa Agência
Cultural, fundada pelo amigo de infância, Álvaro Cunha, seu trabalho é escrever
para outras pessoas discursos, declarações, notas e artigos inteiros que, não
raro, alcançam sucesso, são comentados, forjam jargões, mas o mantêm anônimo.

Sua solidão, contudo,
é relativa. Existem tantos como ele espalhados pelo mundo que chegam a se reunir
em congressos mundiais de escritores desconhecidos. Na volta de um desses
eventos, realizado em Istambul, Turquia, seu avião é desviado para Budapeste,
Hungria, onde pernoita. Como ninguém por lá sabe pronunciar José Costa, surge,
então, Zsoze Kósta, um brasileiro apaixonado, ou melhor seduzido, subjugado pela
língua magiar a ponto de passar a viver com a bela Krista, mulher que lhe ensina
o novo idioma.

É do diálogo
(monólogo?) entre os dois personagens que se alimenta Budapeste, quarto
livro de Chico Buarque, que o escreveu na sua casa no Rio de Janeiro e no
apartamento em Paris.

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