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A Abóbada, de Alexandre Herculano

by Lucas Gomes

É neste conto, A Abóbada, de Alexandre Herculano, publicado
em O Panorama em 1839, que encontramos prova inequívoca do amor
do autor pela pátria. Assim, o inflamado discurso do mestre Afonso Domingues,
reclamando para um Português a construção do mosteiro da Batalha
e condenando que tal empresa seja confiada a mestre Ouguet cuja alma “não
é aquecida à luz do amor pela pátria”.

O conto foi inspirado em Afonso
Domingues
, mestre arquiteto. A abóbada do Mosteiro da Batalha é o centro
deste conto. Afonso Domingues, que se desdobrou para colocar D. João I no trono,
estava construindo um mosteiro e no projeto fez uma abóbada incrível. Mas em
1.401 ele ficou cego e o rei, D. João I, direcionado por seus conselheiros,
resolveu chamar um arquiteto irlandês, mestre Ouguet, para concluir o
projeto do mosteiro. Ele alterou o projeto da abóbada e, logo depois da obra
terminada, a abóbada desaba sobre ele enquanto estava tendo um ataque.

D. João I, então, chama Afonso, restitui-lhe o emprego e este o aceita após
muitas desculpas da parte do rei. Ele então passa três dias em jejum debaixo
da abóbada e morre quando conclui que a abóbada tal como a projetou não cairá.
Ouguet, que desdenhava de Afonso pois estava velho e cego, torna-se seu admirador.
 
O que transparece nesse
conto é principalmente o nacionalismo de Herculano: o português honrado e que
fora guerreiro estava certo, e o estrangeiro arrogante (bretão) estava errado
e arrepende-se humildemente no final.
 
As obras de Alexandre
Herculano são de cunho romântico e vão desde a poesia ao drama e ao romance.
Foi, além de um dos mais importantes escritores portugueses do século XIX, o
renovador do estudo da história de Portugal.

Obra na íntegra
I – O CEGO

O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha
amanhecido puro e sem nuvens. Os campos, cobertos aqui de relva, acolá
de searas, que cresciam a olhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam
ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para o lavrador. Era um destes
formosíssimos dias de Inverno mais gratos que os do Estio, porque são
de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade; destes
dias, que Deus só concedeu aos países do Ocidente, em que os raios
do Sol, que começa a subir na eclíptica, estirando-se vívidos
e trémulos por cima da terra enegrecida pela humidade, e errando por
entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se assemelham a
um bando de crianças, no primeiro viço da vida, a folgar e a rolar-se
por cima da campa, sobre a qual há muito sussurrou o último ai
da saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era um destes
dias antipáticos aos poetas ossiânico-regelo-nevoentos, que querem
fazer-nos aceitar como cousa mui poética
Esses gelos do Norte, esses brilhantes
Caramelos dos topes das montanhas; sem se lembrarem de que

Do sol do Meio-Dia aos raios vívidos,
Parvos! – se lhes derretem: a brancura
Perdem coa nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em água chilre;

destes dias, enfim, em que a Natureza sorri como a furto, rasgando
o denso véu da estação das tempestades.

No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado da
Batalha, fervia o povo, entrando para a nova igreja, que de mui pouco tempo
servia para as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem el-rei
D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro, cantavam a missa
do dia debaixo daquelas altas abóbadas, onde repercutiam os sons do órgão
e os ecos das vozes do celebrante, que entoava os quíries.
Mas não era para ouvir a missa conventual que o povo se escoava pelo
profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela maravilhosa
fábrica; era para assistir ao auto da adoração dos reis,
que com grande pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja e diante
do rico presépio que os frades tinham alevantado junto do arco da Capela
do Fundador, então apenas começada. A concorrência era grande,
porque os habitantes da Canoeira, de Aljubarrota, de Porto de Mós e dos
mais lugares vizinhos, desejosos de ver tão curioso espectáculo,
tinham deixado desertas as povoações para vir povoar por algumas
horas o ermo do mosteiro. Aprazível cousa era o ver, descendo dos outeiros
para o vale por sendas torcidas, aquelas multidões, vestidas de cores
alegres e semelhantes, no seu complexo, a serpentes imensas, que, transpondo
as assomadas, se rolassem pelas encostas abaixo, reflectindo ao longe as cores
variegadas da pele luzidia e lúbrica. Atravessando a pequena planície
onde avultava o mosteiro, passava o rio Lena, cuja corrente tinham tornado caudal
as chuvas da primeira metade da estação invernosa.
No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá, alevantavam-se
casarias irregulares, algumas fechadas com suas portas, outras apenas cobertas
de madeira e abertas para todos os lados, à maneira de simples telheiros.
As casas fechadas e reparadas contra as injúrias do tempo eram as moradas
dos mestres e artífices que trabalhavam no edifício: debaixo dos
telheiros viam-se nuns pedras só desbastadas, noutros algumas onde se
começavam a divisar lavores, noutros, enfim, pedaços de cantaria,
em que os mais hábeis escultores e entalhadores já tinham estampado
os primores dos seus delicados cinzéis. Mas o que punha espanto era a
inumerável porção de pedras, lavradas, polidas e prontas
para serem colocadas em seus lugares, que jaziam espalhadas pelo terreiro que,
ao redor do edifício, se alargava por todos os lados: mainéis
rendados, peças dos fustes, capitéis góticos, laçarias
de bandeiras, cordões de arcadas, aí estavam tombados sobre grossas
zorras ou ainda no chão, endurecido pelo contínuo perpassar de
trabalhadores, oficiais e mais obreiros desta maravilhosa fábrica. Quem
de longe olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos primores de
escultura, julgara ver o assento de uma cidade antiquíssima, arrasada
pela mão dos homens ou dos séculos, de que só restava em
pé um monumento, o mosteiro. E todavia, esses que pareciam restos de
uma antiga Balbek não eram senão algumas pedras que faltavam para
o acabamento dum convento de frades dominicanos, o Convento de Santa Maria da
Vitória, vulgarmente chamado a Batalha!
Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro, apontava meio-dia. A igreja
tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os habitantes das próximas
povoações, e de todo o ruído e algazarra que poucas horas
antes soava por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas frestas e portas
do templo os sons do órgão, soltando a espaços as suas
melodias, que sussurravam e morriam ao longe, suaves como pensamento do Céu.
Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da frontaria do
edifício. Assentado sobre um troço de fuste, com os pés
ao sol e o resto do corpo resguardado dos seus ardentes raios pela sombra de
um telheiro, a qual se começava a prolongar para o lado do oriente, via-se
um velho, venerável de aspecto, que parecia embrenhado em profundas meditações.
Pendia-lhe sobre o peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma
touca foteada, um gibão escuro vestido, e sobre ele uma capa curta ao
modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas
feições revelavam que dentro daqueles membros trémulos
e enrugados morava um ânimo rico de alto imaginar. As faces do velho eram
fundas, as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e
curva e o perfil do rosto quase perpendicular. Tinha a testa enrugada, como
quem vivera vida de contínuo pensar, e, correndo com a mão os
lavores da pedra sobre que estava assentado, ora carregando o sobrolho, ora
deslizando as rugas da fronte, repreendia ou aprovava com eloquência muda
os primores ou as imperfeições do artífice que copiara
à ponta de cinzel aquela página do imenso livro de pedra a que
os espíritos vulgares chamam simplesmente o Mosteiro da Batalha.
Enquanto o velho cismava sozinho e palpava o canto, subtilmente lavrado, sobre
que repousava os membros entorpecidos, à portaria do mosteiro, que perto
dali ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades estavam em pé
no limiar da porta e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se nos
bicos dos pés e estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir
no horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum objecto; depois de
assim olharem um pedaço, encolhiam os pescoços e, voltando-se
um para o outro, travavam de novo renhida disputa, que levava seus visos de
não acabar.
– Oh homem! – dizia um dos dois frades, a quem a tez macilenta e as barbas e
cabelos grisalhos davam certo ar de autoridade sobre o outro, que mostrava nas
faces coradas e cheias e na cor negra da barba povoada e revolta mais vigor
de mocidade. – Já disse a vossa reverência que el-rei me escreveu,
de seu próprio punho, que viria assistir ao auto da adoração
dos reis e, de caminho, veria a Casa do Capítulo, a que ontem mestre
Ouguet mandou tirar os simples que sustentavam a abóbada.
– E nego eu isso? – replicou o outro frade. – O que digo é que me parece
impossível que el- -rei venha, de feito, conforme a vossa paternidade
prometeu em sua carta. Há muito que lá vai o meio-dia: daqui a
pouco tocará a vésperas, e às duas por três é
noite. Não vedes, padre-mestre, a que horas virá a acabar o auto?
E este povo, este devoto povo que aí está, que aí vem,
há-de ir com o escuro por esses descampados e serras, com mulheres, com
raparigas…
– Tá, tá – interrompeu o prior. – Temos luar agora, e vão
de consum. O caso não é esse, padre-procurador, o caso é
se está tudo aviado para agasalharmos el-rei e os de sua companha.
– Oh lá, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que tenho tido tanto
descanso como hoste ou cavalgada de castelhanos diante das lanças do
Condestável; o pior é que, segundo me parece, e dizei o que quiserdes,
opus et oleum perdidi (1).
– Não falta quem tarda: el-rei não quebrará a palavra ao
seu antigo confessor. O que quero é que todos os noviços e coristas
que têm de fazer suas representações no auto estejam a ponto
e vestidos, para ele começar logo que sua senhoria chegue.
– Nada receeis, que tudo está preparado; do que duvido é de que
comecemos, se por el-rei houvermos de esperar.
O frade mais velho fez, a estas palavras, um gesto de impaciência e, sem
dar resposta ao seu pirrónico interlocutor, estendeu outra vez o gasnate
para a banda da estrada, fazendo com a extremidade do hábito uma espécie
de sobrecéu para resguardar os olhos dos raios do Sol, que, já
muito inclinado para o ocidente, batia de chapa no portal onde os dois reverendos
estavam altercando.
Porém, meio descoroçoado, o dominicano logo abaixou os olhos:
nem o mínimo vulto se enxergava no horizonte; e neste abaixar de olhos
viu o cego, que estava ainda assentado sobre o fuste da coluna.
Para escapar, talvez, às reflexões do seu confrade, o reverendo
bradou ao velho:
– Oh lá, mestre Afonso Domingues, bem aproveitais o soalheiro! Não
vos quero eu mal por isso; que um bom sol de Inverno vale, na idade grave, mais
que todos os remédios de longa vida que em seus alforges trazem por aí
os físicos.
Dizendo e fazendo, o reverendo desceu os degraus do portal e encaminhou-se para
o cego.
– Quem é que me fala? – perguntou este, alçando a cabeça.
– Frei Lourenço Lampreia, vosso amigo e servidor, honrado mestre Afonso.
Tão esquecida anda já minha voz em vossas orelhas, que me não
conheceis pela toada?
– Perdoai-me, mui devoto padre-prior – atalhou o velho, tenteando com os pés
o chão para erguer-se, no momento em que Frei Lourenço Lampreia
chegava junto dele, seguido do seu confrade Frei Joane, procurador do mosteiro.
– Perdoai-me! Foi-se o ver, vai-se o ouvir. Em distância, já não
acerto a distinguir as falas.
– Estai quedo; estai quedo, mestre Afonso – disse Frei Lourenço, segurando
o cego pelo braço. – O indigno prior do Mosteiro da Vitória não
consentirá que o mui sabedor arquitecto e imaginador Afonso Domingues,
o criador da oitava maravilha do Mundo, o que traçou este edifício,
doado pelo virtuoso de grandes virtudes rei D. João à nossa Ordem,
se alevante para estar em pé diante do pobre frade…
– Mas esse religioso – interrompeu o cego – é o mais abalizado teólogo
de Portugal, o amigo do mui excelente doutor João das Regras e do grande
Nun’Álvares, e privado e confessor de el-rei; Afonso Domingues é
apenas uma sombra de homem, um troço de capitel partido e abandonado
no pó das encruzilhadas, um velho tonto, de quem já ninguém
faz caso. Se vossa caridade e humildosa condição vos movem a doer-vos
de mim e a lembrar-vos de que fui vivo, não achareis nisso muitos de
vossa igualha.
– De merencório humor estais hoje – disse o prior, sorrindo. – Não
só eu vos amo e venero: el-rei me fala sempre de vós em suas cartas.
Não sois cavaleiro de sua casa? E a avultada tença que vos concedeu
em paga da obra que traçastes e dirigistes, enquanto Deus vos concedeu
vista, não prova que não foi ingrato?
– Cavaleiro!? – bradou o velho. – Com sangue comprei essa honra! Comigo trago
a escritura. – Aqui, mestre Afonso, puxando com a mão trémula
as atacas do gibão, abriu-o e mostrou duas largas cicatrizes no peito.
– Em Aljubarrota foi escrito o documento à ponta de lança por
mão castelhana: a essa mão devo meu foro, que não ao Mestre
de Avis. Já lá vão quinze anos! Então ainda estes
olhos viam claro, e ainda para este braço a acha de armas era brinco.
El-rei não foi ingrato, dizeis vós, venerável prior, porque
me concedeu uma tença!? Que a guarde em seu tesouro; porque ainda às
portas dos mosteiros e dos castelos dos nobres se reparte pão por cegos
e por aleijados.
Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a voz tinha-lhe
ficado presa na garganta, e dos olhos embaciados caíam-lhe pelas faces
encovadas duas lágrimas como punhos. A Frei Lourenço também
se arrasaram os olhos de água. Frei Joane, esse olhou fito para o cego
durante algum tempo, com o olhar vago de quem não o compreendia. Depois,
a ideia da tardança de el-rei e da tardança do auto, que, entrando
pelas horas de cear e dormir, iria fazer uma brecha horrorosa na disciplina
monástica, veio despertá-lo como espinho pungente. Começou
a bufar e a bater o pé, semelhante ao corredor brioso do Livro de Job
e da Eneida. Entretanto, o arquitecto havia-se posto em pé: um pensamento
profundamente doloroso parecia reverberar-lhe pela fronte nobre e turbada, e
houve um momento de silêncio. Por fim, segurando com força a manga
do hábito de Frei Lourenço, disse-lhe:
– Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum traslado da Divina Comédia
do florentino Dante.
– Li já, e mais de uma vez – respondeu o prior. – É obra-prima,
daquelas a que os Gregos chamavam epos, id est, enarratio et actio, segundo
Aristóteles; e se não houvesse nessa escritura algumas ousadias
contra o papa…
– Pois sabei, reverendo padre – prosseguiu o arquitecto, atalhando o ímpeto
erudito do prior –, que este mosteiro que se ergue diante de nós era
a minha Divina Comédia, o cântico da minha alma: concebi-o eu;
viveu comigo largos anos, em sonhos e em vigília: cada coluna, cada mainel,
cada fresta, cada arco, era uma página de canção imensa;
mas canção que cumpria se escrevesse em mármore, porque
só o mármore era digno dela. Os milhares de favores que tracei
em meu desenho eram milhares de versos; e porque ceguei arrancaram-me das mãos
o livro, e nas páginas em branco mandaram escrever um estrangeiro! Loucos!
Se os olhos corporais estavam mortos, não o estavam os do espírito.
O estranho a quem deram meu cargo não me entendia, e ainda hoje estes
dedos descobriram nessa pedra que o meu alento não a bafejara. Que direito
tinha o Mestre de Avis para sulcar com um golpe do seu montante a face de um
arcanjo que eu criara? Que direito tinha para me espremer o coração
debaixo dos seus sapatos de ferro? Dava lho o ouro que tem despendido? O ouro!…
Não! O Mestre de Avis sabe que o ouro é vil; só é
nobre e puro o génio do homem. Enganaram no: vassalos houve em Portugal
que enganaram seu rei! Este edifício era meu; porque o gerei; porque
o alimentei com a substância da minha alma; porque necessitava de me converter
todo nestas pedras, pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar
perpetuamente por essas colunas e por baixo dessas arcarias. E roubaram me o
filho da minha imaginação, dando me uma tença!… Com uma
tença paga se a glória e a imortalidade? Agradeço vos,
senhor rei, a mercê!… Sois em verdade generoso… mas o nome de mestre
Ouguet enredar se á no meu ou, talvez, sumirá este no brilho de
sua fama mentida…
O cego tremia de todos os membros: a veemência com que falara exaurira
lhe as forças: os joelhos vergaram lhe, e assentou se outra vez em cima
do fuste. Os dois frades estavam em pé diante dele.
– Estais mui perturbado pela paixão, mestre Afonso – disse Frei Lourenço,
depois de larga pausa –, por isso menoscabais mestre Ouguet, que era, talvez,
o único homem que aí havia capaz de vos substituir. Quanto a vós,
pensaram os do conselho de el rei que deviam propor lhe vos desse repouso e
honrado sustentamento para os cansados dias. Ninguém teve em mente ofender
o mais sabedor e experto arquitecto de Portugal, cuja memória será
eterna e nunca ofuscada.
– Obrigado – atalhou o velho – aos conselheiros de el rei pelos bons desejos
que em meu prol têm. São políticos, almas de lodo, que não
compreendem senão proveitos materiais. Dão me o repouso do corpo
e assassinam me o da alma! Acerca de mestre Ouguet, não serei eu quem
negue suas boas manhas e ciência de edificar: mas que ponha ele por obra
suas traças, e deixem me a mim dar vulto às minhas. E demais:
para entender o pensamento do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, cumpre
ser português; cumpre ter vivido com a revolução que pôs
no trono o Mestre de Avis; ter tumultuado com o povo defronte dos paços
da adúltera; ter pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido em Aljubarrota.
Não é este edifício obra de reis, ainda que por um rei
me fosse encomendado seu desenho e edificação, mas nacional, mas
popular, mas da gente portuguesa, que disse: não seremos servos do estrangeiro
e que provou seu dito. Mestre Ouguet, escolar na sociedade dos irmãos
obreiros, trabalhou nas sés de Inglaterra, de França e de Alemanha,
e aí subiu ao grau de mestre; mas a sua alma não é aquecida
à luz do amor da pátria; nem, que o fosse, é para ele pátria
esta terra portuguesa. Por engenho e mãos de portugueses devia ser concebido
e executado, até seu final remate, o monumento da glória dos nossos;
e eis aí que ele chamou de longes terras oficiais estranhos, e os naturais
lá foram mandados adornar de primorosos lavores a igreja de Guimarães.
Sei que não seriam nem eles nem eu quem pusesse esse remate; mas nós
deixaríamos sucessores que conservassem puras as tradições
da arte. Perder se á tudo; e, porventura, tempo virá em que, nesta
obra dos séculos, não haja mãos vigorosas que prossigam
os lavores que mãos cansadas não puderam levar a cabo. Então
o livro de pedra, o meu cântico de vitória, ficará truncado.
Mas Afonso Domingues tem uma pensão de el rei…
Em uma das casas que ficavam mais próximas, daquelas de que fizemos menção
no princípio deste capítulo, ergueu se a adufa de uma janela no
momento em que o cego proferia as últimas palavras, e uma velha, em cuja
cabeça alvejava uma toalha mui branca, gritou da janela:
– Mestre Afonso, quereis recolher-vos? Está pronta a ceia, e começa
a cair a orvalhada, que a tarde vai nevoenta.
– Vamos lá, vamos lá, Ana Margarida; vinde guiar-me.
E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da porta com a roca ainda
na cinta, e o fuso espetado entre o linho e o ourelo que o apertava. Chegando
ao pé do velho, tocou-lhe com o braço, em que ele se firmou, tornando
a erguer-se.
– Boas tardes, padre-prior – disse a ama, fazendo sua mesura, seguida de um
lamber de dedos e de dois puxões nas barbas da estriga quase fiada.
– Vá na graça do Senhor, filha – respondeu Frei Lourenço,
e acrescentou, dirigindo-se ao cego:
– Meu irmão, Deus aceita só ao homem, em desconto da grande dívida,
a dor calada e sofrida. Resignai-vos na sua divina vontade.
– Na dele estou eu resignado há muito: na dos homens é que nunca
me resignarei.
E Ana Margarida, que tinha a ceia ainda no lume, foi puxando o cego para a porta
de casa.
– Ai, Afonso Domingues, Afonso Domingues! Vai-se-te após a vista o siso.
Aborrecida cousa é a velhice. Não vos parece, Frei Joane?
Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que supunha estaria atrás
dele; mas Frei Joane tinha desaparecido dali manso e manso. Alongando os olhos
ao redor de si, Frei Lourenço viu-o em pé sobre uma pedra a alguma
distância.
O prior ia a perguntar-lhe o que fazia ali, quando o reverendo procurador saltou
a correr, bradando:
– Ganhastes, padre-prior; ganhastes!… Eis el-rei que chega.
E, com efeito, Frei Lourenço, volvendo os olhos para o cimo de um outeiro,
viu uma lustrosa companhia de cavaleiros, que, com grande açodamento,
descia para o vale do mosteiro.

II – MESTRE OUGUET

Uma das inumeráveis questões que, em nosso entender,
eternamente ficarão por decidir, é a que versa sobre qual dos
dois ditados Voz do povo é voz de Deus ou Voz do povo é voz do
Diabo seja o que exprima a verdade. É indubitável que o povo tem
uma espécie de presciência inata, de instinto divinatório.
Quantas vezes, sem que se saiba como ou porquê, corre voz entre o povo
que tal navio saído do porto, tão rico de mercadorias como de
esperanças, se perdeu em tal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa
o tempo, e a voz popular realiza-se com exacção espantosa. Assim
de batalhas; assim de mil factos. Quem dá estas notícias? Quem
as trouxe? Como se derramaram? Mistério é esse que ainda ninguém
soube explicar. Foi um anjo? Foi um demónio? Foi algum feiticeiro? Mistério.
Não há, nem haverá, talvez, nunca, filósofo que
o explique; salvo se tal fenómeno é uma das maravilhas do magnetismo
animal. Esse meio ininteligível de dar solução a tudo o
que se não entende é acaso a única via de resolver a dúvida.
Se o é, os sábios explicarão o que nesse momento ocorria
na Igreja de Santa Maria da Vitória.
Foi o caso: quando a cavalgada de que fizemos menção no fim do
antecedente capítulo vinha descendo a encosta sobranceira à planície
do mosteiro, entre o povo que estava dentro da igreja, impaciente já
pela demora do auto, começou-se a espalhar um sussurro, que cada vez
crescia mais. O motivo dele, não era fácil sabê-lo: nenhuma
novidade ocorrera; ninguém tinha entrado ou saído. De repente,
toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja e principiou a
borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o líquido deitado
de alto. Tinham sabido que el-rei chegava, e todos queriam vê-lo descavalgar,
porque D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho
de D. Pedro, rei eleito por uma revolução e confirmado por cinquenta
vitórias, era o mais popular, o mais amado e o mais acatado de todos
os reis da Europa. Vinha montado em uma possante mula, e, assim mesmo, em outras
os fidalgos e cavaleiros de sua casa. Trazia vestida sobre o brial uma jórnea
de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em punho, em maneira de caçada.
Chegando à porta do mosteiro, onde o esperava já Frei Lourenço
com parte da comunidade, apeou-se de um salto e, com rosto risonho e a mão
no barrete, agradeceu sua cortesia e aquelas mostras de amor aos populares,
que gritavam, apinhados à roda dele: Viva D. João I de Portugal;
morram os Castelhanos!
, grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos
os tempos; porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor
o bramido que revela a sua índole sanguinária.
Por baixo daquelas soberbas arcadas desapareceu brevemente el-rei da vista da
multidão, que tornou a sumir-se no templo para ver o auto, que não
podia tardar.
– Muito receoso estava de que vossa real senhoria nos não honrasse nosso
auto; porque o Sol não tarda a sumir-se no poente – dizia Frei Lourenço
a el-rei, a cujo lado ia para o guiar ao seu aposento.
– Bofé, mui devoto padre-prior, que, por pouco, estive a ponto de ter
que levar a vossos pés mais uma mentira, com os outros pecados, que me
não falecem, se amanhã me quisesse confessar ao meu antigo confessor
– tornou-lhe el-rei, sorrindo-se.
– E certo estou de que, entre todos os pecados de que teríeis de vos
acusar, este não fora o menos grave, e de que eu a muito custo absolveria
vossa mercê – retrucou o prior, que tinha aprendido ainda mais depressa
as manhas cortesãs no paço, do que a teologia no noviciado da
sua Ordem.
– Mas, para onde me guiais, reverendíssimo prior? – disse el-rei, parando
antes de subir uma escada, para a qual Frei Lourenço o encaminhava.
– Ao vosso aposento, real senhor; por que tomeis alguma refeição
e repouseis um pouco do trabalho do caminho.
– Não foi grande o feito, para tomar repouso – acudiu el-rei –, que de
Santarém aqui é uma corrida de cavalo; muito mais para quem, em
vez de cota de malha, arnês e braçais, traz vestidos de seda. Despi-los-ei
bem depressa, já que el-rei de Castela quer jogar mais lançadas,
e não vieram a conclusão de tréguas o Mestre de Sant’Iago
com o Condestável. Mas vamos, meu doutíssimo padre; mostrai-me
a Casa do Capítulo, a que mestre Ouguet acabou de pôr seu fecho
e remate. Onde está ele? Quero agradecer-lhe a boa diligência.
– Beijo-vos as mãos pela mercê – disse mestre Ouguet, que, sabendo
da chegada de el-rei, e certo de que ele desejaria ver aquela grande obra, tinha
corrido ao mosteiro, e estava entre os da comitiva. – Se quereis ver a Casa
do Capítulo, vamos para a banda da crasta.
Dizendo isto, sem cerimónia tomou a dianteira e encaminhou-se ao longo
de um dos cobertos do claustro.
David Ouguet era um irlandês, homem mediano em quase tudo; em idade, em
estatura, em capacidade e em gordura, salvo na barriga, cujos tegumentos tinham
sofrido grande distensão em consequência da dura vida que a tirania
do filho de Erin lhe fazia padecer havia bem vinte anos. Desde muito moço
que começara a produzir grande impressão no seu espírito
a invectiva do apóstolo contra os escravos do próprio ventre,
e, para evitar essa condenável fraqueza, resolvera trazê-lo sempre
sopeado. Não lhe dava tréguas; se em Inglaterra o fizera muitos
anos vergar sob o peso de dez atmosferas de cerveja, em Portugal submetia-o
ao mais fadigoso mister de canjirão permanente. Mortificava-o assim,
para que não lhe acudissem soberbas e veleidades de senhorio e dominação.
De resto, David Ouguet era bom homem, excelente homem: não fazia aos
seus semelhantes senão o mal absolutamente indispensável ao próprio
interesse; nunca matara ninguém, e pagava com pontualidade exemplar ao
alfaiate e ao merceeiro. Prudente, positivo, e prático do mundo, não
o havia mais: seria capaz de se empoleirar sobre o cadáver de seu pai
para tocar a meta de qualquer desígnio ambicioso. Com três lições
de frases ocas, dava pano para se engenharem dele dois grandes homens de estado.
Tendo vindo a Portugal como um dos cavaleiros do duque de Lencastre, procurou
obter e alcançou a protecção da rainha D. Filipa, que,
havendo Afonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do Mosteiro da
Batalha, mostrando ele por documentos autênticos ter na sua mocidade subido
ao grau de mestre na sociedade secreta dos obreiros edificadores.
Esta é, em breve resumo, a história de David Ouguet, tirada de
uma velha crónica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça
encadernada em um volume juntamente com os traslados autênticos das Cortes
de Lamego, do Juramento de Afonso Henriques sobre a aparição de
Cristo, da Carta de feudo a Claraval, das Histórias de Laimundo e Beroso,
e de mais alguns papéis de igual veracidade e importância que,
por pirraça às nossas glórias, provavelmente os Castelhanos
nos levaram durante a dominação dos Filipes.
O lanço da crasta, fronteira ao coberto por onde ia el-rei, estava ainda
por acabar. Apenas D. João I entrou naquele magnífico recinto,
olhou para lá e, voltando-se para mestre Ouguet, disse:
– Parece-me que não vão tão aprimorados os lavores daquelas
arcarias como os destas. Que me dizeis, mestre Ouguet?
– Seguiu-se à risca nesta parte – tornou o arquitecto – o desenho geral
do edifício, feito por mestre Afonso Domingues; porque seria grave erro
destruir a harmonia desta peça: mas se vossa mercê mo permite,
antes de entrardes no Capítulo tenho alguma cousa que vos dizer acerca
do que ides presenciar.
– Falai desassombradamente – respondeu el-rei –, que eu vos escuto.
– Tomei a ousadia – prosseguiu mestre Ouguet – de seguir outro desenho no fechar
da imensa abóbada que cobre o Capítulo. O que achei na planta
geral contrastava as regras da arte que aprendi com os melhores mestres de pedraria.
Era, até, impossível que se fizesse uma abóbada tão
achatada, como na primitiva traça se delineou: eu, pelo menos, assim
o julgo.
– E consultastes o arquitecto Afonso Domingues, antes de fazer essa mudança
no que ele havia traçado? – interrompeu el-rei.
– Por escusado o tive – replicou David Ouguet. – Cego, e por isso inabilitado
para levar a cabo a edificação, porfiaria que o seu desenho se
pode executar, visto que hoje ninguém o obriga a prová-lo por
obras. Sobra-lhe orgulho: orgulho de imaginador engenhoso. Mas que vale isso
sem a ciência, como dizia o venerável mestre Vilhelmo de Wykeham?
Menos engenho e mais estudo, eis do que havemos mister.
Dizendo isto, o arquitecto metera ambas as mãos no cinto, estendera a
perna direita excessivamente empertigada e, com a fronte erecta, volvera os
olhos solene e lentamente para os circunstantes.
– Mestre Ouguet – acudiu el-rei, com aspecto severo –, lembrai-vos de que Afonso
Domingues é o maior arquitecto português. Não entendo de
vossas distinções de ciência e de engenho: sei só
que o desenho de Santa Maria da Vitória causa assombro a vossos próprios
naturais, que se gabam de ter no seu país os mais afamados edifícios
do Mundo: e esse mestre Afonso, de quem vós falais com pouco respeito,
foi o primeiro arquitecto da obra que a vosso cargo está hoje.
– Vossa mercê me perdoe – tornou mestre Ouguet, adocicando o tom orgulhoso
com que falara. – Longe de mim menoscabar mestre Domingues: ninguém o
venera mais do que eu; mas queria dar a razão do que fiz, seguindo as
regras do mui excelente mestre Vilhelmo de Wykeham, a quem devo o pouco que
sei, e cuja obra da Catedral de Winchestria tamanho ruído tem feito no
Mundo.
Com este diálogo chegou aquela comitiva ao portal que dava para a Casa
do Capítulo. Frei Lourenço Lampreia, como dono da casa, correu
o ferrolho com certo ar de autoridade, e encostado ao umbral cortejou a el-rei
no momento de entrar e aos mais fidalgos e cavaleiros que o acompanhavam. Mestre
Ouguet, como pessoa também principalíssima naquele lugar, colocou-se
junto do umbral fronteiro, repetindo com aspecto sobranceiro-risonho as mesuras
do mui devoto padre-prior.
Quando el-rei entrou dentro daquela espantosa casa, apenas através da
grande janela que a alumia entrava uma luz frouxa, porque o Sol estava no fim
de sua carreira, e o tecto profundo mal se divisava sem se afirmar muito a vista.
Mestre Ouguet ficara à porta, mas Frei Lourenço tinha entrado.
– Reverendo prior – disse el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, vim
tarde para gozar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração,
e amanhã voltaremos aqui a horas de sol.
E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o prior.
Mestre Ouguet entrou na Casa do Capítulo, quando já os últimos
cavaleiros do séquito real iam saindo pelo lado oposto, caminho da igreja.
Com as mãos metidas no cinto de couro preto que trazia, e o passo mesurado,
o arquitecto caminhou até o meio daquela desconforme quadra. O som dos
passos dos cavaleiros tinha-se desvanecido, e mestre Ouguet dizia consigo, olhando
para a porta por onde eles haviam passado:
– Pobres ignorantes! Que seria o vosso Portugal sem estrangeiros, senão
um país sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes
dos primores das artes ou, sequer, de entendê-los?… Lá vão,
lá vão os frades celebrar um auto! Não serei eu que assista
a ele: eu que vi os mistérios de Covêntria e de Widkirk! Miseráveis
selvagens, antes de tentardes representar mistérios, fora melhor que
mandásseis vir alguns irmãos da Sociedade dos Escrivães
de Paróquia de Londres, que vos ensinassem os verdadeiros mornos, ademanes
e trejeitos usados em semelhantes autos.
Mestre Ouguet estava embebido neste mudo solilóquio em louvor da nação
que lhe dava de comer, e, o que deveria pesar-lhe ainda mais na consciência,
da nação que lhe dava de beber, quando, erguendo casualmente os
olhos para a maciça abóbada que sobre ele se arqueava, fez um
gesto de indizível horror e, como doido, correu a bom correr pela crasta
solitária, apertando a cabeça entre as mãos, e gritando
a espaços:
– Oh, mal-aventurado de mim!

III – O AUTO

Junto a uma das colunas da Igreja de Santa Maria da Vitória
estava alevantado um estrado, sobre o qual se via uma grande e maciça
cadeira de espaldas, feita de castanho e lavrada de curiosos bestiães
e lavores. Era este o lugar onde el-rei devia assistir ao auto da adoração
dos reis. No mesmo estrado havia vários assentos rasos, para neles se
assentarem os fidalgos e cavaleiros que o acompanhavam. Defronte do estrado
e colocado ao pé do arco da Capela do Fundador, corria para um e outro
lado da parede um devoto presépio, meio erguido do chão e representando
serranias agrestes, ao sopé das quais estava armada uma espécie
de choça, onde, sobre a tradicional manjedoura, se via reclinado o Menino
Jesus e, de joelhos junto dele, a Virgem e S. José, acompanhados de vários
anjos, em acto de adoração. Diante da cabana e no mesmo nível,
corria um largo e grosseiro cadafalso de muitas tábuas, para o qual,
por um dos lados, davam serventia duas grossas e compridas pranchas de pinho,
por onde deviam subir as personagens do auto.
Tanto que el-rei saiu da porta do cruzeiro que dá para a sacristia, encaminhou-se
pela igreja abaixo e veio assentar-se na cadeira de espaldas, conduzido por
Frei Lourenço, que, com todos os modos de homem cortesão, ofereceu
os assentos rasos aos demais cavaleiros e fidalgos.
Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto,
as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de
que fizemos menção.
Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo
ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança
e a Caridade; após elas, vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas
com suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enlevava os olhos
da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de peles de
cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e seu forcado na mão,
mui vistoso e bem-posto.
Feitas as vénias a el-rei, a Idolatria começou seu arrazoado contra
a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em
que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé
acudia com dizer que, ab initio, estava apontado o dia em que o império
dos ídolos devia acabar, e que ela Fé não era culpada de
ter chegado tão asinha esse dia. Então o Diabo vinha, lamentando-se
de que a Esperança começasse de entrar nos corações
dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a
gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia;
e, com isto, careteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar,
o mais devotamente que era possível. Ainda que o Diabo fizesse de truão
da festa, nem por isso a sua contendora, a Esperança, dava descargo de
si com menos compostura do que a tão honrada virtude cumpria, dizendo
que ela obedecia ao Senhor de todas as cousas, e que este, vendo e considerando
os grandes desvairos que pelo mundo iam, e como os homens se arremessavam desacordadamente
no Inferno, a mandara para lhes apontar o direito caminho do Céu; e por
aqui seguia com razões mui devotas e discretas, que moveriam a devotíssimas
lágrimas os ouvintes, se a devoto riso os não movesse o Diabo
com seus trejeitos e esgares, como, com bastante agudeza, reflecte o autor da
antiga crónica de que fielmente vamos transcrevendo esta verídica
história. A Soberba, que estava impando, ouvidas as razões da
Esperança, travou dela mui rijo e, com voz torvada e rosto aceso, começou
de bradar que esta dona era sandia, porque entendera enganar os homens com vaidades
de incertos futuros e sustentá-los com fumo; que pretendia, contra toda
a ordem de boa razão, que a gente vil houvesse igual quinhão no
Céu com os senhores e cavaleiros, o que era descomunal ousadia e fora
da geral opinião e direito, indo por aqui discursando com remoques mui
orgulhosos, como a Soberba que era. Não sofreu, porém, o ânimo
da Caridade tão descomposto razoar da sua figadal inimiga, e lho atalhou
com tomar a mão naquele ponto e notar que os filhos de Adão eram
todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a Soberba inventara as vãs
distinções entre os homens, e que à vida eternal mais amorosamente
eram os pequenos e humildosos chamados, do que os potentes, o que provou claramente
à sua contrária com bastos textos das santas escrituras, de que
a Soberba ficou mui corrida, por não ter contra tão grande autoridade
resposta cabal. E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, para
dar sua sentença, que foi mandar recolher ao abismo a Idolatria, o Diabo
e a Soberba, e anunciar às três virtudes que as ia elevar ao Céu,
onde reinariam em glória perdurável. Então o Diabo, fazendo
horribilíssimos biocos, pegou pela mão às suas companheiras
e fugiu pela igreja fora, com grandes apupos e doestos dos espectadores. Guiando
as três virtudes, o anjo (por uma daquelas liberdades cénicas que
ainda hoje se admitem, quando, nas vistas de marinha, o actor que vem embarcado
desce dois ou três degraus das ondas de papelão para a terra de
soalho), em vez de subir ao Céu, como anunciara, desceu pelas pranchas
que davam para o pavimento da igreja, e, caminhando ao longo da nave, se recolheu
à sacristia, acompanhado da Fé, Esperança e Caridade, tão
vitoriadas pelos espectadores, como apupados tinham sido o Diabo e as suas infernais
companheiras.
Ainda bem não eram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma porta
do cruzeiro, saíram os três reis magos, ricamente vestidos ao antigo,
com roupas talares de fina tela, mantos reais, e coroas na cabeça. Adiante
vinha Baltasar, homem já velho, mas bem-disposto de sua pessoa, com aspecto
grave e autorizado e com umas barbas, posto que brancas, bem povoadas; logo
após ele, vinha o rei Belchior, e a este seguia-se Gaspar. Traziam todos
suas bocetas, em que eram guardados os preciosos dons que ao recém-nascido
vinham de longes terras ofertar. Subindo ao cadafalso, disseram como uma estrela
os guiara até Jerusalém e como desta cidade, depois de mui trabalhado
e duvidoso caminho, tinham acertado em vir a Belém e, com grande folgança,
encontravam aí o presepe, para fazer seu ofertório, o que, em
verdade, era cousa mui piedosa de ouvir. O rei Baltasar, como mais velho e sisudo,
foi o primeiro que ajoelhou junto do presepe e, com voz mui entoada e depondo
ante o Menino seus presentes, disse:

Santo filho de David,
Divinal
Salvador da triste raça
Humanal,
Que descestes lá do assento
Celestial,
Vós da glória imperador
Eternal,
Aceitai este ofertório
Não real,
Pobre si. É quanto posso:
Não hei al.
O que fora compridoiro
De auto tal
Bem o sei. Andei más vias,
Por meu mal;
Que dez dias prantei tendas
De arraial
Nas soidões fundas d’Arabia:
Mui fatal.
Meus camelos há tisnado
Sol mortal;
E um, de vento do deserto,
Vendaval.
O presente que aí vedes
Pouco val;
É somente algum incenso
Oriental;
Que o tesouro que eu trazia,
Mui cabal
Soterrou-mo a tempestade
No areal.

E com isto, o venerável rei Baltasar, depois de fazer
sua oração em voz baixa, ergueu-se, e o rei Belchior, ajoelhando
e depondo a urna que trazia nas mãos ante o presepe, disse:

Vindo sou lá do Cataio
A adorar-vos, alto infante,
Redentor:
Não me pôs na alma desmaio
Ser de terra tão distante
Rei, senhor!
É bem torva a minha face:
Minhas mãos tingidas são
De negrura;
Mas na terra onde o Sol nace
Mais se cobre o coração
De tristura;
Porque o torpe Mafamede
Sua crença mui sandia
Mandou lá,
E não há quem dela arrede
Essa gente, que aperfia
Em ser má.
Real tronco de Jessé,
Mui fermoso, se eu pudera,
Vos levara,
E, convosco, à vossa fé
Os incréus eu convertera,
E os salvara.
Ora quero ver se peito
São José, que é vosso padre…

Um sussurro, que começara no momento em que o rei preto
ajoelhou e que mal deixara ouvir a precedente loa (obra mui prima de certo leigo,
afamado jogral daquele tempo), cresceu neste momento a tal ponto, que o corista
que fazia o papel de Belchior não pôde continuar, com grande dissabor
do poeta, que via murchar a coroa de louros que neste auto esperava obter. O
povo agitava-se, e do meio dele saíam gritos descompostos, que aumentavam
o tumulto. El-rei tinha-se erguido, e juntamente os demais cavaleiros e fidalgos:
todos indagavam a origem do motim; mas não havia acertar com ela. Enfim,
um homem, rompendo por entre a multidão, sem touca na cabeça,
cabelos desgrenhados, boca torcida e coberta de escuma, olhos esgazeados, saltou
para dentro da teia, que fazia um claro em roda do tablado. Apenas se viu dentro
daquele recinto, ficou imóvel, com os braços estendidos para o
tecto, as palmas das mãos voltadas para cima, e a cabeça encolhida
entre os ombros, como quem, cheio de horror, via sobre si desabar aquelas altíssimas
e maciças arcarias.
– Mestre Ouguet! – exclamou el-rei espantado.
– Mestre Ouguet! – gritou Frei Lourenço, com todos os sinais de assombro.
– Mestre Ouguet! – repetiram os cavaleiros e fidalgos, para também dizerem
alguma cousa.
– Quem fala aqui no meu nome? – rosnou David Ouguet, com voz comprimida e sepulcral.
– Malvados! Querem assassinar-me?! Querem arrojar sobre mim esse montão
de pedras, como se eu fora um cão judeu, que merecesse ser apedrejado?!
Oh meu Deus, salvai a minha alma! – E depois de breve silêncio, em que
pareceu tomar fôlego: – Não vos chegueis aí! – bradou ele.
– Não vedes essas fendas, profundas como o caminho do Inferno? São
escuras: mas, através delas, lá enxergo eu o luar! Vós
não, porque vossos olhos estão cegos… porque o vosso bom nome
não se escoa por lá!… Cegos?… Não vós!… mas
ele! Ele é que se ri e folga em sua orgulhosa soberba! Vede como escancara
aquela boca hedionda; como revolve, debaixo das pálpebras cobertas de
vermelhidão, aqueles olhos embaciados!… Maldito velho, foge diante
de mim!… Maldito, maldito!… Curvada já no centro… senti-a escaliçar
e ranger… Estavas tu assentado em cima dela? Feiticeiro!… Anda, que eu bem
ouço as tuas gargalhadas!… Não há um raio que te confunda?…
Não!
Dizendo isto, mestre Ouguet cobriu a cara com as mãos e ficou outra vez
imóvel.
El-rei, os cavaleiros, os padres mais dignos que estavam de roda do estrado
real, os reis magos, os populares, todos olhavam pasmados para o arquitecto,
que assim interrompera a solenidade do auto. Silêncio profundo sucedera
ao ruído que a aparição daquele homem desvairado excitara.
Milhares de olhos estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condenado
saída das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um cérebro
passou este pensamento; em mais de uma cabeça os cabelos se eriçaram
de horror; mas, dos que conheciam mestre Ouguet, nenhum duvidou de que fosse
ele em corpo e alma. Que proveito tiraria o demónio de tomar a figura
do arquitecto para fazer uma das suas irreverentes diabruras? Só uma
suposição havia que não era inteiramente desarrazoada:
David Ouguet podia estar possesso, em consequência de algum grave pecado;
pecado que, talvez, tivesse omitido na última confissão, que fizera
na véspera de Natal. Isto era possível e, até, natural;
que não vivia ele a mais justificada vida. Supor que endoidecera parecia
grande despropósito; porque nenhum motivo havia para tal lhe acontecer,
quando merecera os gabos de el-rei e de todos, por ter levado a cabo a grandiosa
obra que lhe estava encomendada. Estes e outros raciocínios, hoje ridículos,
mas, segundo as ideias daquela época, bem fundados e correntes, fazia
o reverendo padre-procurador Frei Joane, que tinha vindo assistir ao auto e
estava em pé atrás do estrado, perto de Frei Lourenço Lampreia.
Revolvendo tais pensamentos, no meio daquele silêncio ansioso em que todos
estavam, não pôde ter-se que, pé ante pé, se não
chegasse ao prior e lhos comunicasse em voz baixa, ao ouvido.
– Não vou fora disso – respondeu o prior, que, enquanto o outro frade
lhe falara, estivera dando à cabeça, em sinal de aprovação.
– O olhar espantado, o escumar, o estorcer os membros e o falar não sei
de que feiticeiro, tudo me induz a crer que o demónio se chantou naquele
miserável corpo, como vós aventais. Se assim é, pouco juízo
mostrou desta vez o diabo em vir com seus esgares e tropelias atalhar o mui
devoto auto da adoração. Examinemos se assim é, e eu vo-lo
darei bem castigado.
Dizendo isto, Frei Lourenço chegou-se a el-rei e disse-lhe o que quer
que fosse. Ele escutou- -o atentamente e, tanto que o prior acabou, assentou-se
outra vez na sua cadeira de espaldas e fez sinal com a mão aos fidalgos
e cavaleiros para que também se assentassem.
Frei Lourenço, acompanhado de mais alguns frades, subiu pela igreja acima
e entrou na sacristia. Todos ficaram esperando, silenciosos e imóveis
como mestre Ouguet, o desfecho desta cena, que se encaixava no meio das cenas
do auto.
Tinham passado obra de três credos, quando, saindo outra vez da porta
da sacristia, Frei Lourenço voltou pela igreja abaixo, revestido com
as vestes sacerdotais, chegou à teia, abriu-a e encaminhou-se para mestre
Ouguet. Depois, olhando de roda e fazendo um aceno de autoridade, disse:
– Ajoelhai, cristãos, e orai ao Padre Eterno por este nosso irmão,
tomado de espírito imundo.
A estas palavras, rei, cavaleiros, frades, povo, tudo se pôs de joelhos.
E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das orações.
Só mestre Ouguet ficou sem se bulir, com o rosto metido entre as mãos.
O prior lançou a estola à roda do pescoço do possesso e
queria atar os três nós do ritual; mas o paciente deu um estremeção
e, tirando as mãos da cara, fez um gesto de horror e gritou:
– Frade abominável, também tu és conluiado com o cego?
– Não há dúvida! – disse por entre os dentes o prior. –
Mestre Ouguet está endemoninhado.
Tirando então da manga um pergaminho, em que estavam escritas várias
cousas de doutrina, pô-lo sobre a cabeça do mestre, fazendo sobre
ele três vezes o sinal-da-cruz.
David Ouguet soltou então uma destas risadas nervosas que horrorizam
e que tão frequentes são, quando o padecimento moral sobrepuja
as forças da natureza.
– Cão tinhoso – bradou Frei Lourenço –, espírito das trevas,
enganador, maldito, luxurioso, insipiente, ébrio, serpe, víbora,
vil e refece demónio; enfim, castelhano. Em nome do Criador e senhor
de todas as cousas, te mando que repitas o credo ou saias deste miserável
corpo.
Mestre Ouguet ficou imóvel e calado.
– Não cedes?! – prosseguiu o prior. – Recorrerei ao sétimo, ao
mais terrível exorcismo. Veremos se poderás a teu salvo escarnecer
das criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.
Depois de várias cerimónias e orações, Frei Lourenço
chegou-se ao pobre irlandês e começou a repetir o conjuro, fazendo-lhe
uma cruz sobre a testa, a cada uma das seguintes palavras, que proferia lentamente:
– Hel – Heloym – Heloa – Sabaoth – Helyon – Esereheye – Adonay – Iehova – Ya
– Thetagrammaton – Saday – Messias – Hagios – Ischiros – Otheos – Athanatos
– Sother – Emanuel – Agla…
– Jesus! – bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja.
– Diabo! – gritou mestre Ouguet; e caiu no chão como morto.
E houve um momento de angústia e terror, em que todos os corações
deixaram de bater, e em que todos os olhos, braços e pernas ficaram fixos,
como se fossem de bronze.
Um ruído, semelhante ao de cem bombardas que se houvessem disparado dentro
do mosteiro e que soara da banda da sacristia, tinha arrancado aquele grito
de mil bocas e convertido em estátuas essa multidão de povo.
Há situações tão violentas que, se durassem, a morte
se lhes seguiria em breve; mas a providente Natureza parece restaurar com dobrada
energia o vigor físico e espiritual do homem depois destes abalos espantosos.
Então, melhor que nunca, ele sente em si que, posto que despenhado, não
perdeu a sublimidade da sua origem divina. A reacção segue a acção;
e quanto mais tímido o indivíduo se mostrou, mais viva é
a consciência da própria força, que, depois disso, renasce
com o destemor e ousadia.
Foi o que sucedeu a D. João I, aos cavaleiros do seu séquito e
ao povo que estava na Igreja de Santa Maria, passado aquele instante de sobrenatural
pavor. A terribilidade da cerimónia que Frei Lourenço executava,
o ruído inesperado que rompera o exorcismo, o grito blasfemo do arquitecto,
no momento de cair por terra, o lugar, a hora, eram cousas que, reunidas, fariam
pedir confissão a uma grande manada de enciclopedistas e que, por isso,
não é de admirar fizessem impressão vivíssima em
homens de um século, não só crente, mas também supersticioso.
Todavia, o ânimo indomável do Mestre de Avis brevemente fez cobrar
alento a todos os que aí estavam.
– É, em verdade, descomunal maravilha o que temos visto e ouvido – disse
ele com voz firme, voltando-se para os que o rodeavam –; mas cumpre indagar
donde procede o ruído que veio interromper o mui devoto padre-prior no
exercício de seu ministério tremendo. Soou esse medonho estampido
da banda do claustro; vamos examinar o que seja: se diabólico, estamos
na casa de Deus, e a Cruz é nosso amparo; se natural, que haverá
no mundo capaz de pôr espanto em cavaleiros portugueses?
Dizendo isto, el-rei desceu do estrado e encaminhou-se para a sacristia. Os
cavaleiros da comitiva, os frades, os três reis magos (que ainda estavam
em pé sobre o tablado) e grande parte do povo tomaram o mesmo caminho.
El-rei ia adiante, e o prior era o que mais de perto o seguia. Cruzaram o arco
gótico que dava comunicação para a sacristia: aí
tudo estava em silêncio; uma lâmpada que pendia do tecto dava luz
frouxa e mortiça, e, a esta luz incerta e baça, encaminharam-se
para a porta do Capítulo. Ao chegar a ela, todos recuaram de espanto,
e um segundo grito soou e veio morrer sussurrando pelas naves da igreja quase
deserta:
– Jesus!
As portas haviam estoirado nos seus grossíssimos gonzos, e muito cimento
solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fora, entulhando-lhe quase
um terço da altura. Olhando para o interior daquela imensa quadra, não
se viam senão enormes fragmentos de cantos lavrados, de laçarias,
de cornijas, de voltas e de relevos: a Lua, que passava tranquila nos céus,
reflectia o seu clarão pálido sobre este montão de ruínas,
semelhantes aos monumentos irregulares de um cemitério cristão;
e, por cima daquele temeroso silêncio, passava o frio leste da noite e
vinha bater nas faces turbadas dos que, apinhados na sacristia, contemplavam
este lastimoso espectáculo.
Dos olhos de el-rei e de Frei Lourenço caíram algumas lágrimas,
que eles debalde tentavam reprimir.
A abóbada do Capítulo, acabada havia vinte e quatro horas, tinha
desabado em terra!

IV – UM REI CAVALEIRO

Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro
da Batalha, à roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés,
torneados em linha espiral, eram travados por uma espécie de escabelo,
que pelos topos se embebia neles, estavam assentadas várias personagens
daquelas com quem o leitor já tratou nos antecedentes capítulos.
Eram estas D. João I, Frei Lourenço Lampreia e o procurador Frei
Joane. El-rei estava à cabeceira da mesa, e no topo fronteiro o prior,
tendo à sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros indivíduos
aí estavam, que as pessoas lidas nas crónicas deste reino também
conhecerão: tais eram os doutores João das Regras e Martim de
Océm, do conselho de el-rei, cavaleiros mui graves e autorizados, e,
afora eles, mais alguns fidalgos que D. João I particularmente estimavam.
Atrás da cadeira de el-rei, um pajem esperava, em pé, as ordens
de seu real senhor. O quadrante do terrado contíguo apontava meio-dia.
Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos
os olhos dos circunstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro
que delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospectos gerais
do edifício, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e alçados
de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fábrica. El-rei
tinha a mão estendida e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao
passo que falava com o prior:
– Parece impossível isso; porque natural desejo é de todos os
homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo
razão para mestre Afonso se doer da mercê que lhe fiz.
– Pois a conversação que vos relatei, tive-a com ele ainda ontem,
pouco antes de vossa mercê aqui chegar.
– E como vai David Ouguet? – perguntou el-rei.
– Com grande melhoria – respondeu o prior. – Dormiu bom espaço e acordou
em seu juízo. Contou-me que, entrando ontem após nós na
Casa do Capítulo e afirmando a vista na abóbada, conhecera que
tinha gemido e estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe o coração
e que, com a sua afli&ccedil

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