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A carne, de Júlio Ribeiro

by Lucas Gomes

A obra A carne, de Júlio Ribeiro, é um romance naturalista publicado em
1888 que aborda temas até então ignorados pela literatura da época, como divórcio,
amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade. O lançamento de A Carne,
em 1888, fez grande sucesso e causou escândalo entre as famílias paulistanas tradicionais.
As jovens eram proibidas de ler a obra e muitos pediam segredo ao comprar.

O romance por muito tempo lhe figurou de obsceno, mas o livro é mais do que um
mero escândalo sexual. Foi um dos livros mais discutidos e populares do país,
e ainda hoje são vendidas edições antigas (porém mutiladas) da obra. A maior qualidade
do romancista não está precisamente em sua ficção, mas em sua disposição para
chocar uma sociedade moralmente hipócrita que veio por décadas lhe aprisionar
à margem da grande Literatura.

A divergência de opiniões a respeito do romance tem fundamento. A temática
naturalista de Júlio Ribeiro explicita manifestações de desejo sexual, sadismo,
ninfomania, perversões, nudez e sexo. O olhar sobre o livro, enfim, sempre se
dividiu entre a apreciação estética e o julgamento moral. Foram vários os vetos
feitos ao livro, entre os quais o mais categórico partiu de Álvaro Lins que, em
1941, classificou a obra como “mediocridade intelectual”. Manuel Bandeira lhe
rendeu uma análise biográfica cercada de integridade moral, mas foi um dos
poucos a lhe render glórias por sua posição didática e combativa.

Com uma personagem diferente, ativa com intensos desejos
sexuais, Júlio Ribeiro foi alvo de infinitas ofensas e injúrias. Por causa de
uma mulher “perigosa”, quiçá, as outras denúncias de Júlio Ribeiro ficassem
despercebidas ou os críticos não as queriam ver. A personagem principal Helena
Matoso, mais conhecida pela alcunha de Lenita, sente fortes concupiscências.
Para muitos críticos, esse intenso desejo, provocado pela carne, será
considerado um “histerismo”, qualidade que advém de Magdá, a histérica
personagem do romance de Aluísio Azevedo: O homem (1887). Muitos estudos
tecem essa semelhança devido à irritabilidade ou ao nervosismo excessivo causado
pela força da carne – do desejo sexual – em ambas. Para Magdá, seria certa a
tese da histeria. Para Lenita, não.

A personagem Lenita chocou a sociedade do final do século
XIX, causando-lhe incômodo, que ainda via a mulher como ser passivo, devendo ser
sempre inferior aos homens. A Carne recebeu vários predicativos à época,
a maioria depreciativos, por causa de cenas lúbricas. Ademais, o espanto se deu
não só por causa do erotismo da trama, mas também por causa de uma mulher
independente, rica e inteligente – mesmo que esta estivesse atrás da máscara do
sexo apresentado no romance, sendo difícil sua aceitação para o mundo de então;
essa mulher de vanguarda foi vista pela miopia enferma da sociedade cujas
dimensões ultrapassavam o natural, e esta, querendo perenizar conceitos e tabus
ultrapassados, deixou que os momentos eróticos e exóticos fossem o único ponto
máximo do romance, encobrindo a importância da heroína ao contexto social
brasileiro e mundial.

A cegueira da sociedade foi contaminada pelo tom “obsceno” do
livro, e o mais importante foi esquecido: o surgimento de uma mulher
independente, em todos os sentidos, mesmo que seja em romances. O livro era
dissidente e, por isso, obteve alguns poucos panegíricos e muitas depreciações.
Não houve parcimônia a Júlio Ribeiro. Ele foi um escritor que causou uma espécie
de cissiparidade nos leitores: ao mesmo tempo em que desdenhavam o romance,
liam-no em solipsismo. Todavia, mais tardar, as críticas de tom exageradamente
leviano tão-somente ajudariam a promover a obra, pois, através dos julgamentos
ferinos, A Carne foi ganhando mais e mais popularidade. Se não pelo seu
“valor literário”, como julgavam e ainda julgam, pelo menos, pela polêmica que
causou a obra, introduzindo aos leitores, mesmo sendo com suaves matizes, ideais
progressistas que tanto defendia Júlio Ribeiro: modernização do Brasil, abolição
da escravatura, a República, entre outros. Assim, até mesmo aqueles que
repudiavam a obra, liam-na às escondidas, intencionando descobrir o proibido,
querendo ter acesso ao que, socialmente, não era permitido.

Enredo

O livro conta a história da garota Lenita, cuja mãe morrera em seu nascimento e
o pai educara-a ministrando-lhe instrução acima do comum. Lenita era uma garota
especial, inteligente e cheia de vida. No entanto, aos 22 anos, após a morte de
seu pai, tornou-se uma jovem extremamente sensível e teve sua saúde abalada. Com
o intuito de sentir-se melhor, Lenita decide ir viver no interior de São Paulo,
na fazenda do coronel Barbosa, velho que havia criado seu pai. Lá, conhece
Manuel Barbosa, o filho do coronel. Manuel era um homem já maduro e exímio
conhecedor das coisas da vida, vivia trancado no quarto com seus livros e
periodicamente partia para longas caçadas; vivera por dez anos na Europa, onde
se casara com uma francesa de quem separara-se há muito tempo. Lenita firmara
uma sólida amizade com Manuel, que, aos poucos, vai se revelando uma tórrida
paixão, no início, repelida por ambos, mas depois consolidada com fervor em nome
do forte desejo da “carne”.

O livro narra a ardente trajetória desse romance singular, marcado por encontros
e desencontros, prazer e violência, desejo e sadismo, batalha entre mente e
carne. A história caminha para um trágico desfecho a partir do momento em que
Lenita, encontrando cartas de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se
traída e resolve abandoná-lo; estando grávida de três meses, casa-se com outro
homem. Manuel, não suportando tamanha traição, suicida-se, o que comprova o
resultado final da batalha “mente versus carne”. No início, triunfam os prazeres
da carne, no trágico final, os desenganos da mente.

Comentários

Ronald de Carvalho lembra que o romance A Carne, não esteve à altura do
seu talento. Ele contrabalança seus aspectos positivos e negativos:

“A Carne é um livro de exaltação, um hino dionisíaco ao prazer,
ao gosto relativista, ao aproveitamento do momento que passa. Apesar do processo
zolista, evidente que no arranjo das cenas, no exagero das paixões, na brutalidade
das criaturas, e, até, num certo propósito de confundir o leitor ingênuo; apesar
da grosseria da palavra e do gesto, notadamente violentos e estranhos, ásperos
e pesados, há na Carne uma poesia instintiva, um penetrante perfume de selva
exuberante e selvagem. É uma obra comprometida pelo tom geral e escandaloso
e atrevido, mas onde, não se pode negar, sobressaem muitas qualidades apreciáveis
e um forte lirismo.”

Agripino Grieco retorna à linha do escândalo em sua análise sobre a evolução da
ficção brasileira e a posição da obra de Júlio Ribeiro dentro da mesma:

“Com as patifarias de Lenita, esse professor da Paulicéia
serviu pastilhas afrodisíacas aos estudantes ginasianos, embora depois lhes
esfriasse o ânimo com as austeras lições de complicadíssima gramática. Pedagogo
atacado de delírio erótico, Júlio Ribeiro pôs o seu casal frascário a vagar
por entre as mais lindas paisagens, à maneira de um magarefe idílico, de um
charcuteiro que amasse as árvores e as flores. Mas, examinando-se bem, haveria
na publicação desse romance uma espécie de provocação aos puritanos da província
que irritavam o evocador do padre Belchior de Pontes.”

Na mesma linha concisa trabalha Antonio Soares Amora, que contrapões o tom polêmico
do livro e seus deslizes estéticos:

“Desde o momento do seu aparecimento teve, A Carne, como
não podia deixar de ser, o condão de despertar violentas críticas: é que o romance,
intencionalmente naturalista, dedicado a Emilio Zola, vinha de consagrado mestre
da língua; no entanto chocava, como ainda hoje choca, pela concepção materialista
da vida, onde são falsos os caracteres, sobretudo Lenita, a protagonista, e
má a tecedura gramatical. Boa no romance apenas a expressão literária, que é
de um admirável escritor. Apesar de tudo o que evidentemente tem de mau o romance,
enquanto romance, continua a despertar interesse de certo público, pelo que
oferece, já no título, dos “segredos materialistas” da patologia sexual.”

Bem mais cortante é a avaliação de Lúcia Miguel Pereira. Ela não ameniza os defeitos
do livro e encontra nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a causa
maior para o desarranjo estrutural da trama elaborada por Júlio Ribeiro:

“O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de
valor, autor de um romance histórico do mais desmarcado romantismo, com cenas
à Eurico, deixou-se empolgar pelos famosos ‘estudos de temperamento’. E malgrado
seu poder descritivo, só conseguiu compor um livro ridículo.

(…)

Lenita é tão inexistente, com seu corpo demasiadamente exigente,
como as incorpóreas heroínas românticas. Como a maior parte das personagens
do nosso naturalismo, foi uma romântica às avessas, isto é, construída, não
segundo a observação, mas de acordo com fórmulas preestabelecidas, que prescreviam
a substituição dos sentimentos pelos instintos.”

A personagem mais famosa de Júlio Ribeiro também recebeu as agudas considerações
de Silvio Romero. Ao comentar os livros naturalistas lançados em 1888, o eminente
crítico chama a atenção para o papel da leitura na formação da personalidade difusa
da amante de Barbosa:

“Lenita é uma preciosa de truz,
uma pedantesca moça, a quem a leitura e o estudo desorientado não puderam
sofrear os ímpetos da carne e que se prostituiu sofregamente com o primeiro
que lhe apareceu e que lhe dava lições.”

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