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A Casa, de Natércia Campos

by Lucas Gomes

A Casa

, de Natércia Campos, romance pós-moderno, numa linguagem lírica,
é uma rica fantasia sobre as memórias de uma casa transformada em personagem e
narradora da história das gerações que nela moraram.

Na condição de uma personagem humanizada, a Casa, erguida no fundo do passado, narra
a sua história, da fundação à residência acolhedora; sua vida secular permeada de
alegrias e tristezas, nascimentos e perdas; sua degradação e silêncio final mergulhada
nas águas profundas de um lago.

A Casa é ao mesmo tempo foco, espaço e personagem. Há predomínio do foco narrativo
de primeira pessoa relacionado à personagem principal. Não podemos esquecer também
que o tempo é múltiplo e tudo é lembrança.

Nesta obra a morte é uma presença constante.

O livro configura-se como um misto de romance, folclore e história regional. Contudo,
a grande faceta da escritora é eivá-lo de poesia. A Casa é uma prosa-poética
de fortes conotações telúricas.

Na obra, cada página, cada frase, está impregnada da força imponderável da terra, com
seus costumes, suas crenças; os postais da sua beleza natural, com seus montes, sua
vegetação, suas pedras, e especialmente, seus viventes e seus segredos.

Há, em sua estrutura, pequenas histórias inseridas, como “O encoletado em couro” e
“O menino do rasto de plumas”. Sua memória não obedece a uma cronologia, sendo, portanto,
fragmentada. É sinestésica, pois são os sentidos que a recuperam, sem que a narradora
se programe para tal. Desse modo, também involuntária.

A escritora, natural de Fortaleza, consegue contar, com extrema maestria e poder de
invenção, a história da colonização do Ceará, dando voz e sentimento a uma morada sertaneja,
que guarda em sua memória de pedra, madeira e cal, lembranças de fidalgos de Entre Douro
e Minho, que singraram o mar oceano em frágeis caravelas, e aqui aportaram no verde mar
da Bahia. A partir da casa-forte erguida por Garcia d´Ávila, partiram rijos cavaleiros com
suas cartas de sesmaria, sementes de gado, e beirando os rios vieram dar nas lonjuras
ásperas da caatinga, povoando todo o sertão.

Esta sua obra é toda ela edificada com a palavra exata e a frase mais correta. Humanizando-a,
isto é, fazendo com que a própria Casa evoque suas lembranças, a narrativa convida à
visitação de suas dependências, onde repousam memórias que nascem desde a sua construção.
E tudo isso vem repassado por uma aragem poética que perfuma como flores do campo. O impulso
poético está sempre presente, tornando suas expressões verdadeiros poemas em prosa.

A Casa, fica sempre distante do que realmente ela é, em conhecimento de tudo o que
lhe é pertinente. Faz lembrar a erudição e o conhecimento de Guimarães Rosa no seu conto
Burrinho Pedrês. Narrando-se lógico que a casa sabe tudo que lhe diz respeito, no detalhe
como na descrição mais larga. Dentro dela caminham sombras e vivem-se histórias que são
contadas como quem desfia as contas de um rosário. E assim o romance vai se desdobrando.

Em cada página de A Casa descobre-se alguma coisa nova, ou na seleção vocabular
ou na limpidez da frase, no juízo, na reflexão ou nos conceitos. Num só trecho,
a autora dá uma excelente demonstração do que sabe dos usos e costumes, da palavra
popular, dos ditos de pessoas cultas ou não: Meus filhos machos, só um não vingou…
Há numa ninhada sempre um ovo goro. Um rebanho tem sempre uma ovelha perdida.
O que é de raça caminhando passa.

A leitura de A Casa constitui, antes de tudo, uma entrega ao encantatório. Deformada,
a realidade aqui veste outros tecidos, desconhece barreiras e transcende o ilusório mundo das
representações espaciais. A princípio, a simples idéia de “casa”, por exemplo, imprime o
domínio de uma espacialidade geograficamente determinada; mas, para a ficcionista, isso não
passa de um dentre seus inúmeros disfarces: a casa, mais que materialidade espacial, é, em
verdade, a legião de apelos, vícios, desejos, concupiscência, medos, remorsos, dúvidas,
ódio, paixões etc que, em procissão, percorrem, com os olhos, as vigas e as telhas; e, com
passos, ora lentos, ora dissimulados, os quartos e os corredores.

A narrativa é, em primeiro lugar, um exercício de beleza. O texto constrói-se,
em forma progressiva, segundo um amontoado de vozes, pois, nele, misturam-se as
mais diversas visões, a partir das quais se originará um universo ordenado pelo
maravilhoso. Em nenhum momento, o leitor questionará o fato de que a “casa” assume
o ponto de vista da narrativa, seduzido, assim, pelo lirismo de sua linguagem.
Tudo, aqui, é extremamente natural: o sol em brasa, a chuva remissão das chuvas,
o Trasgo, o mago dos espelhos, o verão e seus mosquitos, a fruta inconha a gerar
gêmeos, o velho passador de gado, as posses e tiranias do Capitão Longuinho, os
desejos de Custódio, a beleza simétrica das flores de Maria… E, aqui, tudo é
natural porque natural é a voz da casa. Ela, que recolhe o pó das ruínas das coisas
e dos homens. Ela, sobrevivente das águas. Ela, e os guizos de sua linhagem.

A narrativa da obra percorre os corredores que se estendem entre temporalidade e
atemporalidade: “Fui feita com esmero, contaram os ventos, antes que eu mesma dessa verdade
tomasse tento”. O fato de a casa ser, ao mesmo tempo, foco, espaço e personagem, ocupando,
desse modo, vários papéis nesse universo ficcional, reforça, ainda mais, a permuta entre o
passado e o presente. Somente rompendo os limites temporais, essa “casa” pode recuperar os
pés dos colonizadores, o choro das crianças, os suspiros das fêmeas, os incestos e as culpas,
os gestos libidinosos, além de atos e palavras que configuraram muitas gerações, bem como,
naufragada no fundo de uma represa, reconhecer, em Eugênia, um de seus “umbigos”. A
alternância entre o temporal e o atemporal, o palpável e o incorpóreo, além de muitos
outros recursos, abre caminho para o mítico; e, através dele, a escritora amealha as
contradições e os devaneios que se instalam em nossa alma.

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