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A gloriosa família, de Pepetela

by Lucas Gomes

Análise da obra

A Gloriosa Família

, do angolano Pepetela, romance publicado em 1997,
descreve a vida cotidiana de Baltazar Van Dum, holandês católico residente
em Luanda desde 1616. Van Dum é uma figura saliente do enredo, encarnando o
tipo ladino dos que conseguem agradar a Deus e ao Diabo, pois é um flamengo
do sul, mas ligado à religião católica, por ter sido súdito do rei de Espanha.

O romance é um relato longo – 406 páginas – através das quais Pepetela relê
um episódio da história angolana, mais precisamente os sete anos (de 1642 a
1648) em que os holandeses, estabelecidos com a Companhia das Índias Ocidentais,
realizaram um enorme tráfico de escravos, de Luanda para o Brasil, principalmente.
Exatamente por isso, o romance traz como subtítulo “O tempo dos flamengos”,
numa alusão ao período em que os “mafulos” – nome com que os holandeses eram
conhecidos em Angola – dominaram boa parte da região.

Ao longo de doze capítulos, são mostradas as transformações que, durante sete anos, vai sofrendo o
protagonista e todos os que o rodeiam, a começar pelos membros da sua extensa família mestiça. O
romance se conclui com a chamada Restauração de Angola, a reconquista de Luanda
por Salvador Correia de Sá e Benevides e a conseqüente expulsão dos holandeses,
que não inclui Van Dum, o qual permanece na cidade dedicando-se ao seu negócio
de sempre, o tráfico de escravos para o Brasil.

Pepetela faz uma significativa releitura da história angolana, revelando o que
há por detrás de episódios que a história tradicional mostrou apenas superficialmente,
através de um discurso crítico e irônico.

A ação, como vimos, acontece entre 1642 e 1648, durante os sete anos de dominação
holandesa. Van Dum vivera vinte e cinco anos em Luanda entre os portugueses
da sua religião e manteve-se na cidade quando ela foi dominada pelos seus compatriotas
calvinistas, tendo o grosso da comunidade portuguesa fugido para Massangano,
no interior, na confluência dos rios Kuanza e Lucala.

Para situar o contexto do livro, observamos que a gloriosa família que aparece
na narrativa é constituída por Baltazar Van Dum e seus onze filhos (três dos
quais são resultado de sua união com escravas). Mas A gloriosa família
do título não é apenas a de Baltazar, mas a sociedade angolana como um todo,
da qual a família retratada é apenas um embrião.

O cenário angolano em que se desenvolve a narrativa é envolvido por um exuberante
componente mítico, de vez que, além dos mitos africanos, que sustentam a história
na sua base, a mitologia clássica, a mitologia germânica e histórias extraídas
do imaginário popular compõem um grande quadro que intensifica a narrativa ficcional,
colaborando para a releitura da história oficial e para validar a visão crítica
que perpassa todo o texto.

O mundo de mitos, de prodígios, de acontecimentos inusitados que constitui a
mitologia africana tem presença marcante na estrutura de A gloriosa família.
Um do exemplos pode ser encontrado no narrador do romance. Tal narrador – uma
das instâncias mais surpreendentes da obra – é um escravo mudo e analfabeto
e sua função era a de seguir o patrão, Baltazar Van Dum, a todos os lugares,
o que lhe dá a condição de ver e de ouvir tudo aquilo que será matéria de sua
narração. Mas uma pergunta poderia ser formulada: como alguém que não fala e
que é analfabeto pode ser o sujeito da enunciação de um texto narrativo? É aí
que entra o mundo mágico que se estende pelo continente africano. E são os poderes
desse mundo que vão dar ao narrador as condições e a confiança para poder contar
a história de Baltazar Van Dum e de sua família.

E isso se deve ao fato de que ele usará poderes desconhecidos dos que se
ocultam no pó branco da pemba ou nos riscos traçados nos ares das encruzilhadas
pelos espíritos inquietos
.

Foco narrativo

A narrativa é marcada pelo descentramento, uma vez que o autor concede a voz
a um escravo. É através dele, um escravo, mudo e analfabeto, que serão entretecidas
as polaridades visão histórica tradicional (centrada no poder) versus visão
histórica nova (centrada na voz das margens). O narrador- escravo exerce uma
espécie de contraponto em relação à figura de Cadornega, um cronista português
à época da ocupação holandesa, em Angola. Ao emitir um discurso às avessas,
contesta, em vários aspectos o do cronista português.

A subjetivação do narrador confunde-se aqui com a sua própria descrição (escravo
mestiço, filho de mulher lunda e de missionário napolitano, outrora vendido
pela rainha Jinga a Baltazar Van Dum, de quem este se serve como guarda-costas).
O narrador acompanha, portanto, o protagonista por todo o lado e, levado pela
curiosidade ou kuribotice, como ele próprio diz, presencia todos ou quase todos
os fatos que narra. Quando não assiste, reproduz com fidelidade ou imaginação,
como confessa (“a única liberdade que um escravo tem é imaginar”), o que ouve.
Não tem nada, portanto, de um narrador onisciente, e aparece bem “subjetivado”
nos seus defeitos e qualidades: no seu gosto pelo maluvo (capítulo III), na
sua paixão platônica por Catarina (repetida ao longo de toda a narrativa, mas
bem forte no capítulo IX e no início do capítulo X), na devoção a D. Bárbara
Mocambo (capítulo VIII), no seu onanismo, sempre bem presente mas evidente em
particular no capítulo VII quando assiste aos amores de Rosário e do escravo
Thor, ou na sua generosidade ao ajudar a escrava Dolores a fugir com o filho
Gustavo (capítulo XI no final). A maior parte das informações de ordem histórica,
que seria fastidioso enumerar aqui, são dadas por ele, quer diretamente quer
através de uma ligação por ele estabelecida ao discurso das outras personagens.

Pela datação de cada um dos capítulos, apresentados com epígrafes em ordem linear,
temos uma narrativa cronológica, apresentada numa relação de causa e conseqüência.

Observações

A subjetivação das personagens ou narração dos fatos históricos através das
personagens é permanente e acontece em geral nos encontros de Baltazar Van Dum
com os amigos na bodega – inicialmente na de D. Maria, depois na de Samuel Pinheiro
nos Coqueiros, mais tarde nos jogos de cartas no antigo Colégio dos Jesuítas
agora ocupado pelos Directores da Companhia das Índias Ocidentais -, nas refeições
em sua casa com a família, onde se incluem os almoços ao sábado com convidados,
ou mesmo em encontros casuais na rua. Retenhamos, por exemplo, todas as informações
relativas à captura e fuga do governador português Pedro César de Menezes nos
primeiros capítulos, o almoço com Barlaeus e Georg Marcgraft, onde se relata
a saída de Maurício de Nassau do Brasil (capítulo V, p. 150), a informação,
pela boca de Benvindo, da curiosa situação de coexistência pacífica de portugueses
e holandeses na cidade de Benguela durante este período (capítulo VI), a chegada
do governador Francisco de Sottomayor a Massangano, relatada, quer através de
uma conversa entre o Mani Luanda e o Major Gerritt, quer pela boca de Nicolau
(capítulo IX), a criação do exército de coligação entre holandeses, Rei do Kongo
e Rainha Jinga contra os portugueses, informação que nos chega pela boca de
Rodrigo (capítulo IX), ou todo o capítulo XII, relatando o fato histórico da
Restauração de Angola, da perspectiva do alto das barrocas onde habita Van Dum
(lugar perto do Kinaxixi, correspondendo aproximadamente ao atual Miramar),
sempre através da fala do narrador ou dos mujimbos (notícias) trazidos pelas
personagens.

Em quase todos os capítulos são postos em evidência um dos filhos de Baltazar Van
Dum (curiosamente sempre os filhos do matrimônio, mantendo-se os “de quintal”,
como Nicolau, Catarina ou Diogo, personagens secundárias em relação aos primeiros).
A cada um destes filhos corresponde quase sempre um epíteto, por vezes uma adjetivação
e, de par com a sua vida, desenrola-se, enquanto linha de ação paralela, um
acontecimento histórico. Note:

O capítulo III é dedicado a “Rodrigo dos olhos verdes”, o qual se apaixona pela
filha do governador kikongo da Ilha de Luanda, vindo a casar com ela; o leitor
fica bem informado do estatuto da Ilha de Luanda enquanto pertença do Rei do
Kongo durante este período.

No capítulo IV sobressai “a bela Matilde” nos seus amores com Jean du Plessis,
culminando no casamento forçado de ambos; ficamos informados da existência de
oficiais franceses huguenotes no exército flamengo e das relações entre protestantes
e católicos em Luanda.

O capítulo V é novamente dedicado à “bela Matilde”, desta vez na sua relação
adúltera com Van Koin, desencadeando-se uma tragédia; somos informados, entre
outras coisas, do estado de abandono da Igreja da Conceição, primeira Sé de
Luanda, onde os amantes se encontram.

O capítulo VI é dedicado a “Benvindo da voz esganiçada”, que decide partir para
Benguela e nos informa, desse modo, da situação dessa cidade, e a “Hermenegildo
de ar efeminado”, que é assediado por um padre português vindo de Massangano,
que nos fornece importantes informações sobre o chamado sertão angolano.

No Capítulo VII predomina Rosário, aquela que mais tarde quererá ser freira,
e são descritos os seus amores com Thor, escravo vindo do sul.

O Capítulo IX é, neste aspecto, importantíssimo, porque mostra Ambrósio, “o
intelectual da família”, trabalhando com o engenheiro Boreel no projeto de canal
de ligação do rio Kuanza a Luanda a fim de resolver o problema ainda atual do
abastecimento de água à capital; é histórico o projeto holandês de canal a partir
do Kuanza, que não chegou a ser levado a cabo, tendo sido construída, já no
século XX, a conduta que traz água, não do Kuanza, cinqüenta quilômetros a sul,
mas do Bengo, vinte quilômetros a norte.

Os “filhos de quintal” de Baltazar Van Dum também têm alguma importância neste
processo de trazer as circunstâncias objetivas ao de cima através das personagens
(o reverso do que se verificava no romance histórico clássico), na medida em
que contactamos com a realidade das caravanas de escravos através de Nicolau,
com os arimos (palavra derivada do verbo kimbundu ku dima, cultivar, hoje em
desuso) do Bengo através de Diogo, e com a introdução de condimentos africanos,
como o jindungo e o funji, em pratos europeus, por intermédio de Catarina.

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