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A Igreja do Diabo (Conto de Histórias sem Data), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Análise da obra

A obra machadiana é permeada de surpresas e fatos curiosos; não só em suas histórias, como nos fatos que a constituem. Com personagens densos e “humanamente verdadeiros”, Machado de Assis cria uma narrativa de tensão por ser tão perturbadora, deixando no leitor aquela sensação de asfixia.

Em A Igreja do Diabo, conto dividido em 4 capítulos, o que temos é uma narrativa densa e, aparentemente, banal e de simples interpretação. Porém, para o leitor atento e bem munido de exemplos referencialmente citados ao longo do texto, a interpretação não se torna tão objetiva assim. Sobretudo, o mais importante é que se trata de uma grande apólogo constituído por outros menores; daí o seu caráter moralizante. Mas o que dá o toque genial ao conto são as inúmeras referências ao longo do texto. Quando esse fator é atentamente observado percebemos, claramente, os valores da sátira e da paródia constituindo um pilar que serve de base para a criação machadiana, principalmente, nesse texto, onde os elementos carnavalescos são fartamente explorados.

O conto, que integra Histórias sem data, cujos personagens principais são Deus e o Diabo, enfoca de forma cômica a relação Deus/religião, homem/razão. Traz à tona a discussão de como cada pessoa pode exercer a religiosidade sem medo de viver suas incertezas, ou mesmo de duvidar da eficácia da benevolência do homem. Na discussão o Diabo questiona a hipocrisia religiosa e as práticas salvacionistas.

A religião está sujeita à crítica ferina do escritor. Neste conto Machado de Assis criticou todas as formas religiosas existentes no Brasil, bem como o modo de comercializar a fé através das vendas de conceito religioso. Porque todas as religiões vendem uma mesma ideologia, a salvação. Inclusive, com práticas proibitivas. Na visão de Machado a elite brasileira se afasta das práticas diversificadas de religiões por pura hipocrisia e preconceitos.

A verossimilhança apresentada no conto é paradoxal, porque não revela, antes de tudo, uma grande metáfora. Faz uma brincadeira muito perspicaz com o leitor, usando inúmeros recursos de várias fontes, chegando a ser sufocante. O retrato é cruel e melancólico, mas o resultado é imensamente satisfatório; sentimo-nos devorando Machado de Assis e rindo do par carnavalesco de Deus e do Diabo.

Este conto foi classificado como sendo uma espécie de fábula, marcada pela ironia, mas a rigor, não é, pois além de não constituir uma narrativa curta, os seus protagonistas não são animais irracionais à maneira de La Fontaine que falam de um modo integralmente humano e ainda é permeada por diálogos entre divindades: Deus e seu anjo renegado, o Diabo. Portanto, extrapola até os limites do fabuloso.

A Igreja do Diabo traz uma série de alegorias e símbolos. A literatura machadiana se baseia muito na simbologia de uma forma geral, mas é nesse conto que esse recurso aparece recorrentemente, assim como o humor trágico e amargo dado o pessimismo com que o autor enxerga a alma humana. Nesse conto, Machado de Assis exercita a sua capacidade de julgamento de atos buscando uma verdade que se mostra cruel na máscara do riso.

O esboço humano que o escritor traz nesse conto, mais uma vez, é o do homem facilmente corruptível e sujeito às influências malignas ou de qualquer espécie. Em A Igreja do Diabo, o escritor tece uma outra “nova teoria sobre a alma humana”. Essa teoria se dá por meio de várias alegorias e mitos. O autor mostra essa imagem humana refletida num espelho invertido. O que o Diabo propõe é uma doutrina muito semelhante a de Deus, com a única diferença de que acaba sendo sua mais profunda negação. O Diabo se propõe a negar o que reflete; mostrar o contrário.

Machado de Assis conta a história narrada num velho escrito beneditino do dia em que o diabo resolveu fundar uma igreja, a fim de concorrer com as diversas religiões. Dizia-se cansado de ser desorganizado, de ficar com as circunstanciais sobras das diferentes manifestações de fé.

Fundando uma igreja, teria vantagem de ser única neste tipo de pregação, ao passo que para adorar deuses, havia várias: “enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha será única; (…)

Há muitos modos de afirmar: há um só de negar tudo”. O Diabo vai a Deus e comunica sua intenção. Por meio de apólogos e máximas, o Diabo explica a necessidade da nova instituição, demonstrando-a com a maestria de manipulação de recursos de estilo, entre eles o uso da ironia a favor de jogos lingüísticos na criação de uma linguagem refinada. A visão machadiana do mundo é perseguida pela sombra do pessimismo, que se revela na descrença da melhora do espírito humano. Machado não acredita nas virtudes humanas. O mundo, na concepção machadiana, é aquele em que o Mau predomina sobre o Bem, e no qual, as virtudes estão submetidas às mazelas.

O “Diabo” de Machado de Assis, mesmo lutando contra o Bem, acaba colaborando com Deus, e por isso o criador o deixa fundar o seu ministério para recolher os homens que estão perdidos. Para o Mal personificado no conto, o erro é necessário à humanidade. O autor afirma que o Diabo comunica ao Senhor a fundação da Igreja, por “lealdade” e para “não ser acusado de dissimulação”. Os motivos que o levam à tal empreendimento é o do desejo da organização e da retificação da sua imagem que, segundo ele, não era como diziam as “velhas beatas” e que, na verdade, era “gentil e airoso”. Outras vezes, o Diabo se denomina o “próprio gênio da Natureza”, provocando aqui uma inversão de papéis. O Diabo colocou-se no patamar de Pai de Deus. De quem é, afinal, o reino “casual e adventício”?

Imediatamente, desce à terra e começa sua pregação. Defende a inveja, a gula, a preguiça, tudo com justificativas da história, das letras e das artes. Rapidamente, obtém mais e mais adeptos, tornando-se a nova igreja hegemônica.

Com a imposição de novos dogmas e crenças, o Diabo persuade até convencer os homens de que o Mal pode ser melhor do que o Bem. Multidões vêm a ele crendo nessa nova descoberta, assim como vieram a Jesus, quando este veio ao mundo como Messias enviado por Deus para salvar a humanidade. O Diabo também usa de apólogos e símbolos para exemplificar sua doutrina. Uma dessas alegorias é a das franjas e mantos de algodão ou de seda. O que demonstra o caráter ambíguo do homem. Mostra, dialeticamente, a convivência harmônica dos paradoxos que apresentam virtudes boas e más.

Os dogmas do Diabo propagou-se pelo globo, tornando-se conhecidos em muitas línguas. Temos depois, todavia, estabelecida e difundida a Igreja, o Diabo percebeu baixas entre seus fiéis. Aqui e ali seus seguidores praticavam, às escondidas, atos de bondade, de restituições de roubo, de arrependimento.

A idéia de que o Diabo, o espírito da confusão, buscava a organização de seu reino é interessante. Além disso, ele queria também a própria missa com muito vinho e pão, mesma alusão direta ao jejum cristão e à celebração do corpo e sangue de Cristo. O Diabo faz referências bíblicas, como a da “tenda de Abraão”. Numa aspiração a reunir todos os povos – divididos pelas outras religiões – busca a religião única e suprema, que terá uma unidade fiel e verdadeira. Maomé e Lutero aparecem, não como a ameaça da religião islâmica ou protestante, mas como obstáculo facilmente transponível.

Machado mostra a dualidade de caráter em cada um dos preceitos pregados pelo Diabo. Um exemplo é o do Padre Galiani, que ligado aos enciclopedistas franceses, mesmo sendo religioso levava em consideração a utilidade e a raridade das coisas: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” – frase que parece proferida da boca do próprio Machado de Assis.

Quando em “A Igreja do Diabo”, os homens voltam a praticar as antigas ações é porque aquelas, de certa forma, tinham uma explicação, senão científica, metafísica. Já quando se revoltam contra o Diabo, é porque este estava impondo-lhes os antigos preceitos de obediência, indo contra a liberdade e adquirindo seu direito de controle da humanidade, sob a desculpa de uma religião, indo contra o direito natural do homem para seu próprio engrandecimento, obtendo maior espaço para suas ações. A estrutura religiosa, vista desse modo, é muito desoladora, explicando o pessimismo de Machado diante do mundo.

A volta à prática das antigas virtudes pelos homens atordoa o Diabo. O homem seria tão contraditório que nada é capaz de defini-lo? O homem é um ser inexplicável, só que o mais perturbador e surpreendente é a maneira pela qual ele usa o seu tão cotado livre-arbítrio.

Pesquisando a fundo, verificou o Diabo que em todo o mundo já se espalhava tal atitude. Atônico, o Diabo volta aos céus, sem compreender o que havia acontecido, e Deus o consola com uma frase complacente, a propósito de uma alegoria:

” – Que queres, tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”

No conto, Deus está conformado com essa contradição humana, justamente, porque sabe que esse sentimento de confusão parte d’Ele mesmo. Ao mesmo tempo que o Espírito Santo está contra o Espírito Negador, o pecado pode estar a favor do homem, por que, afinal, o que é o pecado, fora dos limites da religião cristã? O Diabo não propõe nada de extraordinário aos seus súditos, somente mais uma manipulação em forma da liberdade tão almejada do pecado. E o homem quer ser livre, por isso, vive se contradizendo o tempo todo. Porque quando não se está sobre domínio de um deus, há a negação de todos os princípios morais; suprime-se toda a diferença entre bom e mau, virtude e vício.

A “contradição humana” aludida no texto remete à contradição da religião cristã em eterno conflito com a essência do homem. Se, para a religião, só Deus existe e atua, agindo verdadeiramente, essa idéia religiosa contradiz o entendimento e o sentido natural que concede às coisas naturais uma certa espontaneidade; o livre-arbítrio humano. Criam-se dois pólos, um positivo que é Deus, e outro negativo que é o mundo. Deus só existe, na verdade, para explicar o sentido da máquina do universo. O homem, que é limitado de entendimento, revolta-se contra esse poder originalmente divino. A religião cristã vê o mundo num sentido prático, de uma origem mecanicista, como algo que foi criado por Deus. Essa máquina controlada divinamente leva o homem a crer alegremente numa força desconhecida despertando, desse modo, a consciência do homem de sua nulidade e dependência de Deus. O homem quer se libertar contra essas verdades presentes, contestando sua origem.

Trata-se de um conto “moralizante” e, em vários pontos, se assemelha a um apólogo. Só que as imagens de que dispõe são elaboradas artisticamente. É notável a influência de Rabelais que, inclusive, é citado numa passagem do texto.

A questão da abordagem do tema religioso sendo explorado parodicamente, remete o conto à Sátira Menipéia e a Rabelais, pois os símbolos tomados por Machado de Assis são mais do que tipos carnavalescos sem importância, porque em determinado momento, há uma crítica, não da religião, mas da própria fé humana. É uma crítica psicológica que dá uma realização artística do olhar do escritor sobre a realidade contemporânea.

Machado de Assis prefere transferir aos homens todo o seu ódio e indiferença, porque com toda essa tirania e hipocrisia não há como acharmos na sua literatura exemplos das virtudes humanas. Tudo se reduz à maldade e ao egoísmo. Dessa forma, o Diabo no conto defendeu que o amor ao próximo era “uma invenção de parasitas” e que este não merecia nada além da indiferença; e em alguns casos, até mesmo o ódio e o desprezo. O que parece é que Machado de Assis encarna o próprio alter ego da figura do Diabo no conto, sendo seu próprio Fausto. Em seus contos, são raros os atos honestos e nobres e, se aparecem, estão sob a máscara do egoísmo, arrastando “as franjas de algodão na capa de veludo.”

A visão pessimista do mundo, de acordo com o escritor, que traz os homens à submissão do Diabo depois do “abandono” de Deus porque a vida na Terra nada mais é do que desilusão e fracasso, na concepção machadiana. Em A Igreja do Diabo, pode-se ver a atualização de uma lenda que trata de personagens do imaginário cristão, por outro lado, uma forma velada de se expor um mito. Machado de Assis se utiliza da tomada de um mito religioso para a demonstração do caráter humano.

O que se apresenta aqui é, novamente, a idéia do espelho que acaba por refletir uma imagem inversamente ao objeto original. Deus e o Diabo, no conto, são também muito parecidos: ambos irônicos e perversos, até sob a máscara da bondade, e muito frios ao calcular todos os meios de se controlar e atrair seus fiéis. Ambos são reflexos da personalidade humana e por isso, popularmente, se ouve dizer que há um anjo e um demônio em cada indivíduo. O Diabo sugere, desde a sua origem bíblica, o mito de Ícaro; aquele que obtém do Pai asas para voar, mas cai nas águas profundas do Oceano, por desejar subir mais alto do que deveria ir.

Quando o Diabo chega ao céu, diz a Deus não vir pelo servo Fausto, mas “por todos os Faustos do século e dos séculos” (e esse trecho já se trata de uma paródia do final da liturgia na missa católica), reporta-nos ao Mefistófeles, do escritor alemão Goethe. O evidente da obra alemã está na “simpatia” que Deus demonstra a Mefistófeles e que, aliás, é recíproca. Assim como nem em Fausto, de Goethe, e nem na literatura machadiana, as palavras são empregadas gratuitamente, vemos na primeira, o adjetivo alemão “gern” (“de muito bom grado”, “prazerosamente”) pronunciada por Deus e pelo Diabo. Da mesma maneira, no conto machadiano, quando Deus se dirige ao Diabo com “olhos cheios de doçura” e este o chama de “mestre”, existem provas demonstrativas da mútua admiração que se traduz nessa constante troca de elogios das duas partes.

Paradoxalmente, a existência de uma simpatia inesperada entre Deus e o Espírito Negador traz o ‘inesperado’ que é recorrente em Machado de Assis, no entanto só para o leitor atento. Assim, veladamente, pode denotar significações ainda mais profundas.

O Mefistófeles machadiano, como espírito que nega, não se põe contra Deus, e sim, contra a Vida, que é ingrata. Aqui, existe muito do pessimismo machadiano. Assim como Mefistófeles pede a Fausto que pare “Verwille doch!”, numa metáfora para a perdição da alma do outro, não está negando o Criador, mas a sua criação, a própria Vida.

Em A Igreja do Diabo, o pecado tem seu aspecto positivo. O Diabo expõe o Decálogo num plano inverso. Mostra que a Lei de Deus pode ser falha, dando margem a várias interpretações. Nisso, apresenta que o seu Espírito de Negação é suficiente, que a negação é sublime e singular. Com a “carnavalização” de doutrinas, milagres, moralidades e mistérios divinos, Machado de Assis é que nega tudo. Essas ‘blasfêmias’ dirigidas a uma divindade, pelo diabo do conto, constituíam um elemento necessário nos cultos cômicos mais antigos, só que essas ‘blasfêmias’, ao mesmo tempo que degradavam, renovavam; negando e reiterando. É nesse jogo de palavras que Machado de Assis cria esse retrato cômico do mundo, dividido entre a luta do Bem e do Mal. Assim como os vários exemplos de personagens machadianos cindidos entre a eterna dúvida.

A descrição que Machado faz do Diabo atribui-lhe uma imagem majestosa: “magnífico e varonil”. Nos próprios gestos, o Diabo tem uma suntuosidade superior à divina, segundo a descrição do autor. O Diabo não apenas conversa com Deus sobre seus planos, mas o desafia. O ódio e a ânsia de vingança aparecem remontando ao episódio bíblico da expulsão de Lúcifer, o anjo de luz, dos céus por Deus. Os recursos de estilo são inúmeros, ornamentando a linguagem de Machado de Assis e criando um espelho de contraste imenso, mas que em determinado momento se turva já não reproduzindo imagens fiéis.

Quando o Diabo chega aos céus, não entra. Inicia seu discurso retórico na entrada e só depois de Deus perguntar-lhe se sabe porque aquele velho ancião foi mandado para os céus, é que o Diabo ironiza dizendo não saber, aproveitando a oportunidade para expor suas idéias. O Diabo se refere ao céu como uma hospedaria de preço alto. Comparando a imagem divina a de um negociador. Por meio de várias ironias, o Diabo acaba transferindo a sua veia sarcástica para o autor. Diante do discurso do Diabo, comparando pessoas de boa índole a mantos de veludo e os bons atos a franjas de seda, o Senhor mostra dissimulação ao murmurar que se tratam de pensamentos de um “velho retórico”. Enquanto o Diabo sorri triunfante, Deus parece se submeter “murmurando”; mais um indício de papéis inversos.

Deus tenta demonstrar que o velho ancião, que acabara de chegar ao céu, salvou outras vidas, mesmo sem nenhum público. Não havia nenhum interesse, não tinham “franjas de algodão” no ato. O Diabo repele essa afirmativa com a ironia de que a misantropia pode ser só uma simulação de caridade. As imagens e os símbolos são inúmeros, sendo todos muito importantes dentro da narrativa.

Ao se tratarem de pecados capitais, o Diabo toma exemplos literários a princípio. Justifica a ira de Aquiles, como responsável pela Ilíada, e só cometida por ele, por ser fruto do rapto de sua escrava, Briseida, e pela perda do amigo, Pátroclo. A gula encontra justificativa em Rabelais e seus banquetes – o comer e o beber estão amplamente explorados nesse autor por estarem ligados às festas, à palavra e à verdade alegre. Essas imagens mostram o homem num corpo que interage com o mundo. A imagem dos banquetes simbolizava a devoração dos bens que o homem conseguira por meio de seu suor, como manda a Bíblia; esse triunfo o opõe a Deus. Mesmo o pão e vinho, mencionados anteriormente, representam o mundo vencido pela luta e trabalho do homem. Trata-se de uma imagem idealista sobre a devoração do mundo vencido – há uma certa dose de paganismo nessa metáfora da superação de Deus. A alusão ao vinho é muito significativa, por sua vez, trazendo em oposição à seriedade do azeite, a liberdade: “As vinhas do Diabo” – sempre com muito exagero.

O Diabo também refere-se ao pão e ao vinho para, como Cristo, dar um exemplo de preocupação com o homem. Na religião, o homem ao se referir a Deus, volta-se para suas necessidades básicas de sobrevivência: “O pão nosso de cada dia, dai-nos hoje.” O Diabo quer ocupar esse lugar de Pai no conto. A Igreja como “hospedaria barata” mostra o acolhimento dos filhos que não tem como pagar as exigências divinas tão altas.

Quanto à inveja, dá a simples explicação de que seria o estímulo à prosperidade. Uma grande inversão das coisas de todo o tipo. A venalidade foi tão logicamente explicada, que tornou-se “um monumento da lógica”, como exemplifica o conto mostrando sua negação como hipocrisia e contradição. Indo dessa forma com todos os preceitos divinos, ao passo que distorce o outro; “não se deve amar ao próximo, a não ser que se tratem de mulheres alheias”. Também por meio de um apólogo, que “foi incluído no livro da sabedoria”, o Diabo se assemelha a Cristo, que por meio de parábolas ensinava aos homens na Terra: “Usarei comparações quando falar com eles e explicarei coisas desconhecidas desde a Criação do Mundo” (Mateus, 13:34).

É como se o Diabo tivesse percorrendo o mesmo caminho, desde Moisés, com o Decálogo, até o Messias, que “evangelizou” os homens ao fim de salvá-los. O apólogo: “Cem pessoas tomam ações de um banco, para operações comuns; mas cada acionista não cuida senão dos seus dividendos…”, pode ser considerado como uma paródia à parábola da ovelha perdida, que prega que se um pastor tiver cem ovelhas e uma se perder, deve-se sair para procurá-la deixando as outras. Entretanto, o homem hoje se preocupa, fundamentalmente, com sua vantagens e lucros, ou seja, nos dividendos que lhe pesarão depois. Pode ser associada também a usura e à mesquinhez, considerados grandes pecados.

O jogo de símbolos no conto é primoroso. Porém, a comicidade se propõe tragicamente quando, depois de seduzidos, os homens voltam a praticar as antigas virtudes e, às escondidas – de acordo com os ensinamentos cristãos, para os homens não praticarem seus deveres religiosos em público – sendo assim recompensados por Deus. Mesmo assim, praticavam as tais boas ações, de vez em quando e sozinhos, fazendo com que seus “mantos de algodão” tenham “franjas de seda”… O Diabo, inconformado com atitudes das mais curiosas e surpreendentes, deparou-se com o grande Mal verdadeiro; a contradição humana. Com o trecho: “… o pasmo não lhe deu tempo para refletir, comparar e concluir do espetáculo presente, alguma coisa análoga ao passado”, Machado de Assis chama a atenção do leitor para a comparação da conquista inversa de Cristo na Terra convertendo os homens para salvá-los. O homem é pecador, mas Deus procura salvá-los a qualquer custo, olhando só seus bons atos. Segundo as Escrituras Sagradas, o arrependimento dos pecados garante a salvação.

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