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A Luta Corporal, de Ferreira Gullar

by Lucas Gomes

A Luta Corporal

, de Ferreira Gullar, é o primeiro livro do poeta,
e um dos livros mais discutidos de sua geração, onde desintegra
palavras, numa semelhança com o concretismo. É considerado precursor
do movimento paulista de poesia concreta. A obra marca a transição
entre a poesia guerra / paz de Carlos Drummond de Andrade e do concretismo (Augusto
e Haroldo de Campos e Décio Pignatari). Neste ponto, Gullar soube ser o
eixo de transição.
Esta obra inclui poemas escritos de 1950 a 1953. Esse livro é um verdadeiro
laboratório de pesquisa sobre linguagem, pois “urge buscar outras
formas”. A leitura não só dos poemas, mas também
dos textos críticos, revela a luta travada com a palavra. Ferreira Gullar.
referindo-se ao título daquele livro, explica:

[…] minha busca de uma linguagem não-conceitual implicava a rejeição
dos conteúdos ideológicos do universo cultural que me coubera
como herança. Ao retomar, noutro nível, o contato como a realidade
social, a partir de uma visão crítica de seus fundamentos, tornou-me
necessário, como poeta, começar de novo. Voltei-me então
para as formas poéticas rudimentares dos cantadores de feira e dos romances
de cordel, que haviam fascinado a minha infância nordestina.
(ULC,
p.27)

Luta porque essa identificação do homem com a linguagem
era uma aspiração e não uma realidade conquistada. Luta
para transformar a linguagem num corpo vivo, vivo como o meu próprio
corpo, denso como um ser natural, como um organismo. Essa tentativa me levou
a violentar a sintaxe e os vocábulos a ponto de o poema se tornar quase
ilegível.
(ULC, p. 43-4)

Uma das inúmeras importantes contribuições estilísticas
de Gullar é o uso expressivo e singular da espacialidade dos versos,
já presente em versos do nono dos Sete Poemas Portugueses, que abrem
A Luta Corporal. É isso mesmo: o nono dos sete poemas, pois
foram retirados da publicação os dois primeiros poemas. Gullar
já disse que foi uma decisão com base na qualidade estética:
os dois primeiros não estariam à altura do terceiro poema.

Segundo o prórpio Ferreira Gullar, “o nome do livro não
é por acaso: era uma luta comigo mesmo. Na minha busca terminei fragmentando
a linguagem. Achava que a linguagem era uma realidade. Desarticulei-a para encontrar
essa realidade: ela não tinha essência nenhuma
.”

Ainda, segundo o autor: “Escrevi A Luta Corporal por
causa das contradições em que me envolvi. Escrevo pelo prazer
e pela necessidade de responder a indagações que a vida me coloca,
e não para entrar na história da literatura. Assim, meu engajamento
foi consequência de um impasse. A questão social estava surgindo
de modo forte. Eu estava em Brasília num cargo público [em 1961,
Gullar foi nomeado presidente da Fundação Cultural de Brasília] e assisti à renuncia do Jânio; depois veio o governo do Jango e
eu voltei para o Rio e comecei a entrar num outro Brasil, no Brasil real, que
não era o Brasil da vanguarda, de A Luta Corporal, mas
da reforma agrária, da fome.”

Nesta obra o autor apresenta peças que rompem com o discurso, a sintaxe
e o lirismo tradicional, chegando mesmo a fraturar a palavra e os fonemas e
a incorporar sons abstratos. Em outras peças, de construção
mais normativa, o poeta segue uma linha próxima à de João
Cabral de Melo Neto, aliando a síntese e a concisão à objetividade,
fazendo uso de substantivos em imagens bem definidas. A Luta Corporal
é a obra mais bem realizada de Ferreira Gullar, e o ponto de partida
das pesquisas formais desenvolvidas nos anos 50.

Ainda em relação a “lutar com palavras”, A Luta Corporal reflete bem o pensamento do escritor, que proclama:

Meu problema era a palavra, esse ser ambíguo com um extremo mergulhado
no homem e o outro preso aos objetos cotidianos. A palavra isolada na página
era, para mim, a fala brotando no silêncio.
(CPC, p. 123)

O livro compõe-se de vários blocos de poemas, cada um apresentando
um posicionamento diverso do autor diante do problema da palavra poética.
Os poemas de A Luta Corporal giram em torno do binômio homem/linguagem.
Oliveira Bastos publicou, em 1954, no , uma série de artigos sobre Ferreira
Gullar e afirma que a originalidade do livro consiste no fato de que os poemas
buscam uma legitimação e não um encantamento verbal.

A Luta Corporal anunciava o rompimento com as fórmulas poéticas
vigentes. Inicia-se com “Sete poemas portugueses”, como já
citado, exercícios poéticos dentro de uma forma quase sempre fixa,
com poemas rimados e metrificados. O autor propõe-se retomar esses recursos,
dentro de uma nova perspectiva. É uma tentativa de encontrar a poesia
em seu estado de pureza. O poeta quer “devassar o nascimento da terrível
magia”. Ferreira Gullar procura o reino encantado da
poesia tradicional:

Caminhos não há
mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

O leitor percorrerá com o autor o mundo mágico dos símbolos
e dos mitos poéticos. A presença do número 7, de valor
plurissêmico, remete-nos a esse mundo.
Podemos vê-lo simplesmente como um número cardinal de valor exato,
ou seja, uma série composta de sete poemas, ou vê-lo como um número
cabalístico associado ao mistério, ao segredo, símbolo
da transformação, do que é complexo, pois este número,
por suas virtudes ocultas, tende a realizar todas as coisas, é o dispensador
da vida e a fonte de todas as mudanças.

Em “Sete poemas portugueses”, como já observamos, o poeta
inicia a sua viagem numa tentativa de encontrar a origem da poesia em seu estado
puro. Neste sentido poderíamos identificar o nosso herói como
os heróis dos contos de fadas, da mitologia, que devem atravessar caminhos
tortuosos, enfrentar provas difíceis até chegar a decifrar o enigma,
ou a encontrar o objeto mágico, no caso específico – a poesia
em seu estado primordial.

Os poemas revelam a posição ambivalente do escritor: a procura
da “encantação”, e a descrença de que ela lhe
venha através do caminho já longamente percorrido pela poesia
tradicional.

O poeta sente que, por este caminho, a palavra poética nunca será
apreendida:

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
…………………………………………………
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis –
eu colho a ausência que me queima as mãos.

Os quatro poemas que se seguem, “A fera diurna”, “O anjo”,
“Galo galo” e “A galinha”, são indicadores de
uma tomada de consciência maior do problema poético. O artista
reconhece que a beleza é mais frágil do que a vida e revela o
seu fracasso da impossibilidade de fazer reviver a poesia dentro dos antigos
padrões:

Adão, Adão, violaste a fonte pura.
    Éden não houve. A margem do Pison
        meditas. Estás só.
[…]

A imagem do espelho, no “Poema 9”, marca a passagem para uma nova
concepção poética:

                O
mesmo vento
que impele a rosa é que nos move, espelho!

Se nos “Sete poemas portugueses” a ênfase estava no momento
mágico da criação, pois a poesia não é fruto
de frases encantatórias, mas o conhecimento do mundo real.

Em “O anjo” o poeta mostra o espanto que o levou a procurar outros
caminhos, que não os da poesia tradicional, para tentar buscar uma linguagem
mais lógica e orgânica, construída de dentro pelo próprio
processo de indagar e entender.

Os dois poemas seguintes – “Galo galo” e “A galinha”
indicam um passo adiante na conscientização poética. São
poemas que se valem de uma linguagem direta, simples, de palavras aparentemente
apoéticas , e que indicam um trabalho interno, consciente da palavra.
Neles o poeta dá mais um passo em direção do seu projeto
inicial: o de encontrar seu caminho poético. Nessa época para
ele a poesia devia ser uma coisa que tivesse um rigor próprio. Ao invés
das estrofes regulares e dos versos rimados e metrificados dos “Sete poemas
portugueses”, temos o isolamento do vocábulo, a fragmentação
da frase, o aproveitamento do espaço branco da folha, a utilização
do verso livre. Há a destruição da forma anterior para
a construção de uma nova. Oautor, aqui chega ao verso livre impelido
por sua própria experiência. Tal fato historicamente, não
tem qualquer importância, mas indica a disposição do autor
de rejeitar as soluções prontas, para assim poder conhecer o mundo
e falar dele.

A desmistificação do fazer poético, capaz de expressar
sua visão de mundo, assinala, também, a tomada de posição
filosófica de Gullar diante de posição filosófica
de Gullar diante da poesia: a indagação que o autor se fará
, a partir daí, sobre o mundo e a linguagem poética, os dois aspectos
se condicionam
simultaneamente. Esta posição, este questionamento da palavra
poética, como reveladora da condição do ser no mundo, será
o fio condutor de toda a obra
gullariana.. O autor estará vivificando e estruturando uma poesia que
percorrerá diversos caminhos estéticos para poder responder ao
seu apelo existencial: o poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que
seja apenas o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema resta
o mesmo que antes, o poema não tem sentido.

Com “Galo galo”, como já assinalado, Ferreira Gullar deixa
o mundo encantado dos “Sete poemas portugueses” para buscar a poesia
no mundo real, pois nenhum ato vale a pena se não tem força para
mudar o mundo, a condição do ser no mundo, do homem no mundo.
Liberta-se de uma noção de poesia como algo exterior à
linguagem e fora do mundo, para perseguir a poesia no mundo mesmo e tendo as
palavras cotidianas como o seu instrumento.

Nos poemas de “Mar intacto”, que compõe o 3° bloco,
Gullar recusa toda a discursividade para tentar encontrar as soluções
dos problemas que se apresentam, não de maneira lógica, mas pelo
próprio trabalho sobre a linguagem. Ele não quer fazer poemas
sobre as coisas, e sim decifrar o seu significado, sem recorrer à tendência
simplificadora e linear da linguagem lógica ou discursiva.

A aproximação consequente entre a palavra e o objeto descrito
conduz à utilização de recursos imprevistos, como cortes
de frases, isolamento da palavra, aproveitamento gráfico da página;
sua linguagem, captando o ritmo das coisas, parece gesticular:

Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis.
Passar como eu
passo: entre nada.

O confronto homem/objeto coloca o ser humano como um espectador desnecessário
da coisa, que cumpre o seu ciclo, indiferente às angustias humanas. O
poema “O trabalho das nuvens” exemplifica a relação
homem/objeto, em que o primeiro é mero observador. O autor reafirma esta
concepção em 1969, ao afirmar que “a natureza existe independentemente
de toda filosofia.”

O poema abaixo exemplifica seu pensamento:

há nuvens não há
cidades: as nuvens ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é que sabemos que
deslizamos sob elas: as
nuvens cintilam, mas não é para
o coração dos homens.

Este mesmo poema mostra a impotência do homem diante das coisas. Tudo
o que podemos fazer é observar o mundo em seu funcionamento.

[…] O pássaro que é
branco
não porque ele o queira nem
porque o necessitemos: o pás
saro que é branco
porque é branco.

A constatação de que as coisas existem independentes do homem
já preocupava o poeta na série “Sete poemas portugueses”:

Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa
se entrega ao mundo, estrela tranquila.
Nada sei do que sofro.
O mesmo tempo
que em mim é frustração, nela cintila.

O homem, por ter consciência diante do tempo implacável, se desespera
e se frustra. A rosa, cumprindo o seu ciclo, “Se entrega ao mundo”
e à vida – “cintila”, sem se preocupar com o fato de
que amanhã ela já não mais existirá. O poeta, ao
olhar o real, o universo cotidiano, se defronta com a finitude do ser; o fluir
do tempo conduz à morte, experiência ímpar e individual:

Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem.
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.

Viver tem por fim morrer. Gullar, no poema “P.M.S.L.”, mostra a
angústia do homem em sua solidão:

saber-se
fonte única de si
alucina.

Ainda neste mesmo poema, o autor procura mostrar que o mundo é uma farsa
e nada detém o fluir do tempo:

Vê o céu. Mais
que o azul, ele é o nosso
sucessivo morrer. Ácido
                céu.
Tudo se retrai, e a teu amor
oferta um disfarce de si. Tudo
odeia se dar. Conhecer a água?
Ou apenas o som do que ela
                finge?

Em “A avenida”, o poeta nos diz que tudo morre com o homem, tanto
os seus momentos de alegria e de prazer, quanto os de ódio e de raiva:

Precárias são as praias dos
           homens:
                praias
que morrem na cama com
o ódio e o
         sexo: perdem-se
no pó sem voz.

Em “O mar intacto”, o poeta tenta transformar em poesia alguns
elementos artísticos já incorporados pela pintura.

Sentimos no poema “As peras” a presença de recursos cubistas
(que já haviam sido utilizados em “Galo, galo” e “A
galinha”), especialmente a captação de formas geometrizadas,
a eliminação do anedótico e do descritivo e a interpretação
da natureza substituindo a sua representação pura e simples.

O evoluir de sua consciência poética é o reflexo do evoluir
de seu pensamento filosófico, é um jogo dialético, em que
linguagem e visão do mundo se completam. Ferreira Gullar manifesta nesta
série o seu desejo de procurar, no mundo real, a verdadeira face das
coisas: “De fato a orquídea não é apenas o “fátuo
cintilar das pétalas”; ela é “contínuo negar-se
no seu fogo”. O céu, “mais que azul, ele é nosso sucessivo
morrer.”

Seus poemas dessa fase nos falam, simultaneamente, da vida e da morte.

Em “Um programa de homicídio”, Ferreira Gullar volta a
enfatizar que nada resiste ao tempo inexorável. Os conflitos existenciais,
que o poeta procura resolver por meio da linguagem, não têm mais
soluções.

Gullar chega a um impasse quando pensa descobrir que a poesia é um trabalho
inútil e desnecessário, que não passa de um artifício,
uma farsa representada pelos escritores que se valem sempre de uma técnica
verbal exterior ao mundo.

Nos poemas que constituem “Um programa de homicídio”, Gullar
expressa toda a sua rejeição contra qualquer técnica poética.
Depois de haver conseguido elaborar seu próprio sistema poético,
sente necessidade de explodi-lo, pois resolvera (em seu projeto) que romperia
sempre com qualquer recurso formal que impedisse sua comunicação
com o mundo.

Sua arte será uma antiarte, seu estilo um não-estilo. Como ele
mesmo diz: “Não se trata de fazer poesia mas de ‘dizer com simpleza
a cor da minha morte’.”

Eu tinha que chegar às formas, Ao cerne da linguagem que não
estava nas formas preestabelecidas. […]Percebi que paraíso, era necessário
que eu não me viciasse. Toda vez que se formava um certo domínio
da linguagem, eu arrebentava. Eu tinha que rejeitar a habilidade para chegar
à essência.
(Gullar, 1998, p.34)

Refletindo esse posicionamento, encontramos em “Carta do morto pobre”:

             Ouçam:
a arte é uma traição, artistas, ah os artistas! Animaizinhos
viciados, vermes dos resíduos, caprichosos e pueris. Eu vos odeio! Como
sois ridículos na vossa seriedade cosmética!

“Carta do morto pobre” é um poema em prosa, que o autor
escreve como se já tivesse morrido. É elaborado com indignação,
pois o poeta havia constatado que o mundo objetivo é enganadora aparência
encobrindo a realidade única: o tempo, a deterioração,
a morte…

Não há como não ver no poema uma revolta contra o estado
de gratuidade a que tinha chegado o trabalho poético no Brasil, pois
alguns poetas de 45 estavam apenas preocupados com o aspecto formal (1954).
Quanto a esta questão, Gullar enfatiza sua posição estética:

…a realização do poema deveria ser manifestação
natural, sem artifícios, de experiências reais. Não se trata
de escrever poemas, mas de exprimir-se enquanto existência. […[ Trata-se
de recomeçar a linguagem a cada poema, porque a forma deste deve ser
resultante da forma da vivência que ali se exprime
.

Na série de poemas sob o título geral de “O cavalo sem
sede”, Gullar procura ver o mundo em termos não-lógicos,
procurando fugir ao excesso de consciência a que chegou.

Sua luta, seu conflito, ele os revela em seus poemas e as torções
sintáticas, a justaposição de frases, a violação
da pontuação, da sintaxe, a transgressão da noção
convencional de tempo, espaço, causa e efeito e o entrecruzar de imagens
reiteram, a nível formal, a dissonância interna que se processa
no poeta, como vemos no poema em prosa, “Os da terra”:

A claridade destruiu os cavalos neste chão de evidê ncias;
as velhas caem das folhas, com os seus dentes, numa vacilação
de ar; duas formas, sentadas, falam do tempo do corpo: “Os que cava, ferem
a terra e a luz”; mas anda o espaço, o campo de pura mecânica;
“esta brisa que, amanhã, derrubou as janelas, ontem voltará
sem que te vejas”; colhe-se a futura cor, com mão de agora.

O próprio título da série “O cavalo sem sede”,
explicado pelo autor, nos dá a indicação do conteúdo
dos poemas:

Neste título […] há uma alusão indireta ao título
do poema de João Cabral de Melo Neto, “O cão sem plumas”
[…]“O cão sem plumas” refere-se dentro do sistema metafórico
de sua poesia, à eliminação do não-essencial, à
busca do núcleo real da experiência: O cão sem adorno, cotidiano,
marcado de vida. Exatamente oposta é a posição do autor
ao escrever “O cavalo sem sede”, porque o que se busca aqui não
é o cavalo cotidiano, mas aquele que escapa à condição:
o cavalo sem sede, o cavalo absurdo.

“As revelações espúrias”, que se seguem a
“O cavalo sem sede”, são uma descida mais funda ao inconsciente
– há maior desarticulação da linguagem. É
uma posição surrealista com recurso à linguagem automática,
ao automatismo psíquico. Ao tentar substituir a representação
pela não-representação, avizinha-se da loucura:

Quando te cansares de tudo, olha a tua mão e diz: estou cansado
de tudo. Só quando já nem tua mão, nem teu cansaço
existirem, aí então, então sim. Aí nada. Ri, meu
besta. Tira teu braço e lambe-o, lambe-o, lambe-o!!!

O poeta, conforme depoimento pessoal, relembra que se colocava em frente à
máquina e começava a escrever a partir de qualquer idéia
que lhe viesse, deixando fluir o que lhe chegava à mente, nome de pessoas,
lugares, lendas, referências, associações livres. Através
dessa linguagem automática, Ferreira Gullar queria alcançar a
origem, a essência que se encontrava atrás da aparência.
Neste ciclo de poemas o discurso é construído através da
desarticulação, da descontinuidade e o próprio paradoxo
do título geral da série nos remete ao jogo de contradições.
Entretanto, nos dois últimos poemas da série, ele viu a necessidade
de reorganizar o mundo por ele fragmentado:

Ajunta, ajunta o que se quebra, quando eu caminho.

Os poemas seguintes, sob o título “A fala”, revelam um novo
posicionamento do poeta: Ferreira Gullar volta a aceitar a linguagem como instrumento
de comunicação e rejeita a fase anterior, ao postular que somente
a palavra é capaz de nos revelar a verdadeira face das coisas. Encontra
o elo perdido entre a palavra e a realidade. Após ter descido ao inconsciente,
ao irracional, o autor ascende e recupera a lucidez da consciência. Há
a organização do universo fragmentado anteriormente. O mundo vai
se construindo através da palavra poética, há uma reabilitação
da linguagem. Ela é a única esperança:

sopra no coração o sol das folhas, Vina,
é verão nas minhas palavras.

“É verão nas minhas palavras”: o poeta, reconciliado
com a palavra, crê que a linguagem está madura, que pode através
da palavra recriar o mundo em sua verdadeira realidade.

Ferreira Gullar não cessa de procurar, sempre descontente com a etapa
ultrapassada. A última sequência de poemas sob o titulo geral de
“O quartel”, marca o
término do livro e o fim da tranquilidade que o autor pensara alcançar
na fase anterior. O próprio poeta define esta etapa como “o retrato
indireto, ou simbólico, de uma atividade sem sentido”, idéia
que se evidencia no diálogo entre o corneteiro, o herói e as pulgas.

Neste ciclo, a linguagem é totalmente fragmentada, violada. O que predomina
é a invenção de expressões que não têm
significado algum na linguagem coloquial. Esta desarticulação
atinge o clímax no poema “Roçzeiral”, pois Ferreira
Gullar,em entrevista a Vinícius de Moraes, relembra:

[…] queria chegar a uma coisa descarnada, que fosse realmente a realidade,
a essência da realidade. Claro que isso foi me levando a desarticular
a linguagem, porque o conhecimento está articulado pelo discurso. Então,
distanciado do conhecimento, comecei a reinventar. Lembro-me de que esse poema
que está em A Luta Corporal e se chama “O Roseiral”
foi o limite desse processo
(1977).

Há uma negação da linguagem, que, em última análise,
não deixa de ter significado. Não há processo linguístico
desprovido de significado: o próprio uso do
nonsense significa que o poeta não vê sentido no seu mundo.

Em “O quartel”, o poeta incorpora todos os procedimentos que já
dominara nas experiências anteriores e leva-os às ultimas consequências:
o caráter discursivo da linguagem é reduzido ao mínimo,
há o aproveitamento quase mimético do espaço gráfico.
As palavras são totalmente deformadas, dilaceradas, tendo muitas vezes
sua origem na onomatopéia que, como já focalizamos atinge o auge
de desagregação em “Roçzeiral”, poema que é
um verdadeiro enigma para o leitor.

Au sôflu i luz ta pompa
             inova’
                    orbita
                              FUROR
                          tô
bicho
                          ‘scuro
fogo
                    Rra

É como que uma tentativa de pôr as raízes das palavras
de ponta-cabeça para delas extrair o seu mistério. Mas vê
que, se consegue escrever, não consegue tornar-se comunicável.
Diz que gostaria de levar as palavras à sua última significação,
ao fim da qual seu corpo também caísse fulminado. Tudo se passa
no reino da palavra, o poeta e a linguagem serão uma só coisa,
e não é possível vencer a contradição entre
a intimidade do homem e a exterioridade da palavra.

É com desespero que o autor lamenta o seu fracasso de domar a linguagem.
O poema seguinte, “O inferno”, recupera a linguagem desarticulada
em o “Roçzeiral”, pois o homem não pode falar do mundo
sem a linguagem, as coisas só existem quando nomeadas:

MAS EU, NÃO OUTRO, E MINHA LINGUAGEM É A
REPRESENTAÇÃO
DUMA DISCÓRDIA
ENTRE O QUE QUERO E A RESISTÊNCIA DO CORPO.

Para o poeta, ser de palavras, é impossível vencer a contradição
entre a intimidade do homem e a exterioridade da palavra porque entre elas há
a consciência
humana. A frustração do artista encontra-se no fato de que apesar
de ser ele o único a dominar o código da língua, não
é capaz de fazê-lo como gostaria:

LUTEI PARA TE LIBERTAR
eu-LÍNGUA,
             MAS
EU SOU A FORÇA E
A CONTRA-FORÇA,
             MAS
EU NÃO SOU A FORÇA
E NEM A CONTRA-FORÇA

Em “O inferno”, trava-se um combate entre o poeta e a forma. A
grande ansiedade do artista vem marcada no texto pelo ritmo, ora lento (prosa)
ora rápido (verso); e quando a intensidade atinge o seu clímax,
o autor lança mão da letra maiúscula, a qual se contrapõe
à minúscula em momentos menos tensos. O poema seguinte é
uma despedida, pois o poeta decide “calar-se”:

FINDA O MEU
SOL
             PUERIL
             O
ILÍCITO
             SOL
DA LEPRA ACESA NA PELE

O último poema é, como “Roçzeiral”, bastante
enigmático. O discurso é fragmentado, mutilado, os versos finais
são ininteligíveis:

URR VERÕENS
ÕR
TÚFUNS
LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS

A poesia desta fase é de tensões, umA Luta Corporal”
do autor com a palavra. Seus versos podem parecer demasiado sombrios e desesperados
em seu reconhecimento das limitações do artista e da palavra,
mas apontam para um fato essencial em sua poética: nela existe um dualismo
entre o que o poeta deseja expressar e o que consegue; ela resulta de oposições
reais, existenciais, que se distinguem das colocações meramente
cerebrinas, pois o poeta não está representando um drama, ele
o está vivendo. Sua indignação se faz, ao mesmo tempo,
sobre o mundo e sobre a linguagem poética.

Créditos: Profª. Drª Thereza da C. A. Domingues
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CESJF)

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