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A mão no ombro (Conto), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

A mão no ombro, é um conto de Lygia Fagundes Telles, e está presente no livro Seminário dos Ratos.

Enredo

Como anuncia o título, o conto “A mão no ombro” expressa a anunciação da morte de um homem de quase cinqüenta anos, pelo toque de uma mão no ombro através de uma sonho. O conto constrói-se em torno dessa narrativa onírica do protagonista, oriunda da necessidade de refletir sobre sua vida antes de enfrentar a iminência da morte, abordando a passagem temporal.

Uma frase do próprio conto: um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário – indicia os aspectos do narrador. Pode-se classificá-lo como heterodiegético. O narrador relata os fatos orientado pela percepção da personagem, em determinados momentos como se fosse um monólogo interior, pois são fatos que ele próprio vivencia. O confronto com a situação de morte iminente é protagonizado por ele, tendo seu processo interno exposto através da voz do referido narrador. A narração funciona como se fosse em primeira pessoa, pois o homem participa da história.

A narrativa divide-se em três blocos, separados através de um espaçamento físico de três linhas. No primeiro bloco, destaca-se o sonho no qual ele se encontra em um jardim causador de uma série de estranhamentos, em uma dada situação temporal. O espaço/cenário dessa primeira parte é o jardim. No segundo bloco, em outra situação temporal, a personagem aparece em estado de vigília, cumprindo com sua rotina matinal. O espaço/cenário dessa segunda parte é o interior da casa: quarto, banheiro e sala de jantar. No terceiro bloco, fundem-se os planos espaciais e temporais na experiência da morte. O espaço/cenário dessa última parte do relato é o interior do carro da personagem.

No primeiro bloco, a personagem passeia nesse irreconhecível jardim de plantas sem vida, com aquele céu verde com a lua de cera coroada por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco, que parecem artificiais, cujo céu verde-cinza é de fosca luminosidade. Esses elementos formam uma ambientação na qual ela pressente uma força inusitada, prenunciadora de algum acontecimento. Buscando uma orientação temporal, o protagonista se detém a observar indícios das estações – o tempo cíclico. Não há vida no jardim, não se consegue identificar nenhuma das estações: eram as folhas cor de brasa, mas não era outono. Nem primavera […] Não era verão. Nem inverno…. Porém não os encontra: sente, sim, situar-se em um jardim fora do tempo, mas dentro do [seu] tempo, pensou. Esta afirmação denota um tempo interno contrário ao fluxo e refluxo da vida, ao ritmo, ao ir e vir da natureza, como o nascimento, a morte e o renascimento.

O tempo não se ajusta a nenhum padrão a que esteja habituado. Evoca o agasalho (um sobretudo), trazido pela associação com a fria viscosidade das pedras. Além de indicar a idéia de proteção, o agasalho comporta outras possibilidades: pode ser tanto um símbolo utilizado para impressionar os outros quanto uma proteção para ocultar-se dos outros, numa alusão à idéia de persona. Um casaco é, muitas vezes, símbolo de abrigo protetor ou de máscara que o indivíduo apresenta ao mundo. Tem dois propósitos: primeiro, dar determinada impressão aos outros; segundo, ocultar o íntimo do indivíduo da curiosidade alheia.

A sensação de estranhamento experimentada pela personagem remete ao desconhecido que, associado à perspectiva atemporal e a seu mundo interno, reflete o onírico.

Conto em terceira pessoa que começa com a narração de um sonho que o protagonista tem, todo recheado de idéias ligadas a morte: Cristo crucificado, trapezista acidentado. No jardim em que o personagem principal se vê, sente que alguém vem por trás tocar-lhe o ombro. Assustado, pois intuí que se trata da morte, acorda imediatamente. A partir de então, resolve começar o seu dia de forma diferente, como se estivesse diante dos seus últimos momentos. Vive o seu momento, dando especial atenção a tudo o que se refere ao simples, mas importante ato de viver. Estava, de uma ce forma, preparando-se para a morte. No instante em que prepara o carro para sair, vê-se fantasticamente no mesmo jardim do sonho. Já não tem mais medo da mão que vai tocar seu ombro.

No conto “A mão no ombro”, a escritora ironiza os valores burgueses, o sistema da família de aparências que vive mais para o social.

A personagem esté fora do tempo, sentindo-se sem raízes, em um estado de expectativa ansiosa, enquanto prossegue aventurando-se naquele estranho espaço. Ela vivencia uma outra dimensão temporal na experiência onírica. A linguagem do conto transmite a angústia do sonhador. A focalização é a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de um personagem da história, quer o do narrador heterodiegético. A narração (as palavras, os pensamentos, as percepções e os sentimentos), nesse conto, parece brotar direto do interior da personagem. O narrar é discreto, apesar da interioridade densa, sendo que é tão harmonioso que parece ao leitor que a história flui como se contasse a si mesma. O ouvido do leitor acompanha o protagonista nas profundezas de suas reflexões e remorsos, como se fosse ele vivenciando o fato.

O jardim, espaço selecionado como cenário desse conto, agrega elementos diversos e essenciais ao simbólico da narrativa. Esta paisagem é recorrente na literatura da escritora. Nesse conto, o jardim reúne um mosaico de cores e percepções, que catalisam a irrupção das memórias infantis do protagonista. Ele toma uma conotação de atmosfera pesada e opressiva para a personagem. Trata-se de um jardim impregnado de inquietação, um jardim sem vida, sem abelhas, formigas ou pássaros, onde nem mesmo resina existe nos troncos: o jardim da morte, antítese do jardim do paraíso. A cor verde é explorada principalmente na descrição do jardim, tendo esta um simbolismo ambíguo, uma polaridade simultânea de representar vida (da vegetação) e morte (dos cadáveres).

A personagem sentia e sabia com muita força que alguma coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. A premonição aparece com mais intensidade. Este também é o primeiro indício do enfarte final. Prosseguindo o caminhar pelo local, o homem se depara com uma estátua: aquilo não era uma estátua? Aproximou-se da mocinha de mármore arregaçando graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços, que examina minuciosamente: trata-se de uma jovem dentro de um tanque seco – com pedras ao redor – com uma estria negra – cicatriz que vai da cabeça ao meio dos seios e lhe decepa metade do nariz. Observa a cabeça encaracolada, os anéis se despencando na nuca, imagem que desperta ternura e vontade de acariciar. Faz um gesto para se relacionar com a estátua, propondo-se até mesmo a ajudá-la. Todavia, assusta-se à vista de um inseto desconhecido e cheio de penugens que sai inopinadamente da orelha da estátua.

É bem visível a representação de contrastes através das características paradoxais do próprio jardim e da estátua, já que o jardim não é paradisíaco e a estátua, embora jovem, está deteriorada. O valor simbólico da estátua reveste-se de duplicidade por tratar-se da estátua de uma jovem, porém com características velhas, no sentido de estar carcomida, corroída, tendo estado sujeita a intempéries. Também os pés, a par dos sinais de erosão, insinuam uma delicadeza ao sugerir medo em escolher as pedras para pisar. Outro exemplo é a deterioração visível da estátua, provocada pela cicatriz, que marca seu rosto e peito, todavia com uma certa sensualidade, pois se perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo corpete desatado. Muitas dessas imagens parecem constituir-se em símbolos da passagem do tempo. A personagem sente-se sensibilizada pela estátua, a ponto de ensaiar uma fala com a mesma. Aqui, temos a primeira vez em que o homem depara-se mais explicitamente com a dualidade – o velho e o novo. A estátua parece represent um espelho do homem: é ainda fisicamente jovem, porém tem seu interior carcomido pela idéia da morte. A estátua descomposta, as plantas sem vida, a fonte e o tanque secos levam a crer em referenciais da passagem do tempo. Tais elementos são indiciadores do regime diurno da imagem, que reconhece e luta contra a passagem temporal.

A personagem percebe os sentidos se aguçarem, mergulhada nesse cenário esquisito, nesse jardim repleto de estranhas ervas perfumosas, com um silêncio cristalizado como num quadro, tudo muito estático, em meio a um torpor. O único movimento é o do inseto saindo da orelha – em um movimento semelhante ao dos insetos nos corpos dos mortos. Outra alusão à morte é o fato de ele seguir andando com as mãos nos bolsos e encontrar dois ciprestes, árvores típicas dos cemitérios, cujas fortes folhagens simbolizam a imortalidade. Uma curiosidade, nesse primeiro segmento, é que o sonhador faz uso de quase toda a sensorialidade, desenvolvendo quatro sentidos: visão, audição, olfato e tato, somente faltando alusão ao paladar que, em contrapartida, será resgatado no segundo segmento, na cena do café da manhã. Aliás, o fato do paladar não estar presente neste sonho corrobora seu sentido como experiência da morte: esta, ao invés de nutrir, retira a vida do corpo.

Apesar da aparência inocente, o jardim é tão inquietante quanto o jogo de quebra-cabeça de sua infância. Nesse, seu pai estimulava sua perspicácia em localizar rapidamente o caçador no bosque, sob pena de perder o jogo: vamos, filho, procura nas nuvens, na árvore, ele não está enfolhado naquele ramo? No chão, veja no chão, não forma um boné a curva ali do regato?. Ao final da narrativa, no detalhe desta lembrança, temos a situação inversa no plano da realidade, pois a personagem é caçada pelo caçador. Porém, desta vez a morte é o ônus: o homem fantasia a figura do caçador na escada como representação da morte.

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