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A morte de D. J. em Paris (Livro), de Roberto Drummond

by Lucas Gomes

A morte de D. J. em Paris

, livro de contos de Roberto Drummond, publicado
em 1975, foi considerado um marco do pós-modernismo na literatura brasileira.
Repleto de referências a ícones da cultura pop, a narrativa desconexa e sempre
inconclusa convida o leitor a participar do texto de múltiplas possibilidades de
interpretação. Por todas as inovações estilísticas e de linguagem, a obra teve o
imediato reconhecimento acadêmico tanto no Brasil como no exterior e gerou vários
estudos e teses.

Em dez contos emblemáticos, o escritor mineiro revela a delicada fronteira entre
realidade e fantasia. O clima urbano, a linguagem pop e direta permite que o
leitor se torne cúmplice destas narrativas curtas sobre o homem contemporâneo e
seu mundo fragmentado e paradoxal. É a prisão que liberta a moça na janela, são
os homens de óculos ray-ban, as diáfanas mulheres de azul, os sonhos feitos de
caixas de sabão em pó. É nosso cotidiano de pequenas anormalidades.

Drummond não constrói seus personagens pelo ponto de vista do narrador
tradicional, mas identifica-os pelas marcas-registradas que codificam o mundo
moderno – é a marca do cigarro, da escova de dentes, do refrigerante. Perdidos
em meio à selva iluminada das metrópoles, seus personagens só sobrevivem porque
sonham. Sonham tanto que já não é tão importante saber exatamente onde estão.

As narrativas, cujo espaço é urbano, são curtas, com linguagem direta e concisa.
Tematizam os problemas do homem moderno e de seu mundo fragmentado e paradoxal.
“Dôia na Janela” é o primeiro conto do livro. Nele, Drummond traça um painel das
contradições da sociedade brasileira, à medida que conta a história de Dôia, uma
jovem, provavelmente, vítima de patologia psiquiátrica, encerrada em um local que
parece ser uma clínica. Seguimos o caminho de Dôia, buscando pensar a relação entre
cultura e literatura, especialmente o caráter híbrido da personagem e seu mundo.

No conto “A morte de D. J. em Paris”, que dá título ao livro, por exemplo,
um professor de literatura, D. J., personagem central do conto, transforma seu
sótão numa Paris imersa em tons de azul. Paris para D.J. era o Paraíso. Lá ele
encontraria a “femme bleue”, o protótipo da mulher feminina, da mulher ideal,
mais sensível e bela. Antes de ir à Paris, encontra-se com os amigos, para assistir
futebol. Cantam, tomam cerveja, fumam. Alguns dias após, parte para Paris, onde
finalmente, encontra a mulher azul e outros amigos com os quais recorda-se do
Brasil. As irmãs de D.J. aparecem em Paris. Na verdade, era uma irmã, que ora
aparecia como uma beata, ora aparecia como um moça sensualíssima e avançada para
a época.

Agora D. J. está morto e sendo julgado, assim morto, por algo de que o leitor
não sabe o que é. O que teria acontecido com D. J.? Estaria morto em meio aos
seus cartões-postais ou belo e jovem flanaria pela cidade-luz? Quem seria capaz
de decifrar seus desejos naquele inquérito policial? Portanto, o conto nos deixa
a questão não explícita de D. J. estar morto ou não.

Através do personagem D. J., Roberto Drummond une espaços diferentes, como Minas/Brasil,
Belo Horizonte e França/Paris a tempos diversos, traçando Paris dentro de Minas,
no quarto de D. J., no coração do Brasil, em “nossos tempos clandestinos”. A “pátria
azul” e a “mulher azul” apontam para um desejo de transformação daqueles tempos.

Os demais contos do livro estão nesta linha literária do fantástico, uns um pouco
mais fechados quanto ao significado, outros mais ácidos, terríveis, surrealistas,
como “Isabel numa 5ª feira”.

Neste conto, o narrador-personagem narra a um interlocutor sua história com a
personagem Isabel. Faz isso numa praça onde vai todas as últimas quintas-feiras
do mês juntamente com um “exército de homens, esperar Isabel para vê-la com seu
andar de Ava Gardner.

O narrador afirma ter vivido um romance com a personagem. Deixa claro que era ela
quem dava as diretrizes do relacionamento, tanto que determinou que eles só teriam
relação sexual na sétima quinta-feira depois de Pentecostes. E assim se deu.
Depois disso, ele engordou 20 quilos, não dorme à noite, conversa com os
pirilampos ou fica uivando se a lua é loura.

Há vários espaços no texto. Da forma como foram articulados, parecem mais
quadros que vão se sobrepondo para que a história possa contecer. Temos a praça
que é o espaço em que o narrador conta sua história para o seu interlocutor;
a fazenda onde o narrador-personagem estava quando resolve ir embora para se
encontrar com Isabel; o apartamento (sala) em que ocorrem os encontros; as
lembranças (sobretudo aquelas que se referem à seçã de conselho sentimental) e
por fim, a casa hollywoodiana em que se concretizará o relacionamento amoroso.

Nestes diferentes espaços, temos, além de outros índices, a ilusão de que esta
é uma história real. Os espaços são, aparentemente, comuns. No entanto, olhando-os
de forma atenta, podemos percerber a anormalidade que os ronda. Consideremos a
praça. Há palmeiras, caramanchão… tudo (aparentemente) normal. Mas é possível
perceber que aquela não é uma praça comum. Há algo de fantasmagórico nela. A plasticidade
é forte e contribui muito para o mistério ali existente. Também a fazenda é incomum.
Tem uma vaca Pecadora, barulho de moscas voando que se confunde com o dos aviões
que passam… A casa hollywoodiana já nos remete diretamente ao mundo da não realidade.
Parece que o único lugar normal é o apartamento, no entanto, é nele que o mistério
é anunciado: o grande encontro só poderá ocorrer na sétima quinta-feira após Pentecostes;
é lá que o narrador recebe uma carta supostamente escrita pela mãe de Isabel para
uma seção de conselhos sentimentais na qual anuncia que sua filha, fica com a
cor de rubéola, e os homens devem ter muito cuidado se ela estiver com esta cor…

No conto parece que o fantástico está “encurralado” no real. Os elementos
esquisitos estão inseridos na narrativa de modo a não nos causar nenhum
espanto. Convivem com as personagens e nos são relatados de modo a parecerem
completamente integrados à realidade. Logo no começo do conto, por exemplo,
o narrador, aos nos relatar seu encontro com Isabel, diz-nos que “as cotovias
da blusa Cardin que ela usava começavam a voar e a cantar como a Ima Sumac”.
Em um outro momento, avisa-nos que Isabel era estranha, mas seus argumentos
são incapazes de nos levar num primeiro instante a entender “estranho” como
algo sobrenatural.

Isabel sempre foi estranha: colecionava receitas culinárias, recebia cartas
com receitas de Hong Kong, era a favor dos Estados Unidos na América Latina e
contra os Estados Unidos no Vietnã, chamava Fidel Castro de cortador de cana do
Caribe e bastava falar em Che Guevara para ficar com um cisco nos olhos e querer
morrer na selva da Bolívia usando o nome de guerra de Tânia, com um tiro no coração
e cantando “Me encontré um angelito, corazón se fue” e suspirava e vinha, e com
você talvez tenha acontecido o mesmo, era uma Isabel só de suspiros e de
silêncios e de promessas, a voz sumida, jurando:
— Na sétima 5ª feira depois de Pentecostes…

Como no fragmento acima, o texto todo é pontuado por traços da realidade,
referências a pessoas e lugares conhecidos, todavia, no meio deles, aparecem
“encurralados” fatos realmente estranhos, que fogem àquilo que consideramos
normal. O narrador-personagem mostra saber (pelas cartas que lia das colunas
sentimentais) que Isabel leva um pedaço de seus amores; que ela sabe dos
golpes militares três meses antes de eles acontecerem; que ela sabe que
Frank Sinatra tem uma cicatriz seis dedos abaixo do umbigo (um lugar, no
mínimo, suspeito. No conto não há tentativa de transgressão, mas sim de aguçar
nossa percepção para vermos a outra a realidade existente. Assim, a literatura
fantástica seria uma porta para que se possa entrar e ampliar a visão da
realidade, criando em nós a possibilidade de enxergar aquilo que a percepção
entorpecida não consegue ver.

Quem nos abre essa porta é o narrador. A narrativa em primeira pessoa traz um
certo desconforto para o leitor do conto fantástico, pois sempre ficará a
pergunta: será esse narrador um louco ou não? Essa ambigüidade é necessaria
para que o fantástico ocorra. Como vimos, no conto o narrador é também
personagem. É pela sua mão que vamos sendo conduzidos a desafiar o cotidiano,
que é muito bem marcado, no texto, pelo universo da cultura de massa: produtos
do dia-a-dia – sabonete Lever, revista Playboy, blusa Cardin, loja Sloper,
Alka Seltzer (remédio), cinema, moda etc. – que vão sendo traduzidos pelo
narrador, estranhos ao nosso conceito real. É, também, o narrador quem nos
conta que Isabel é perifosa.

Em alguns pontos da narrativa, podemos dizer que o narrador e personagem
parecem pessoas distintas, ou seja, o narrador, quando revestido deste papel,
é esperto, já tem o saber, a experiência; enquanto que o personagem, dada a
distância temporal, revela-se ingênuo. Entrega-se ao amor, à paixão como um
adolescente. Não se importa com as conseqüências, quer ter Isabel e luta por
isso até o final. Já o narrador (quando revestido somente deste papel) sabe
do perigo que Isabel representa e se coloca no papel “salvador”. É a ele que
a “luz” é pedida (a conversa com o interlocutor se inicia porque o mesmo pede
um fósforo para o narrador e ele vê nos olhos daquele, que ele estava ali
esperando por Isabel) e, por isso, tenta dissuadir o interlocutor de esperar
Isabel e, conseqüentemente, de se “perder”. O narrador sabe de tudo quando
começa a nos contar sua história, mas vai relatando os segredos à medida que a
narrativa flui e mesmo assim de forma obscura. Temos que ir recolhendo pelo
caminho peças, dados que ele vai jogando como quem não quer nada.

Em vários momentos, o narrador nos dá índices de que Isabel é uma vampira.
Porém, faz isso de forma discreta, de modo que os fatos estranhos estejam
misturados à realidade. Todos os elementos do texto nos remetem ao mundo dos
vivos, mas não raro hesitamos se o descrito pertence mesmo ao real.

Vemos que o conflito se encontra na tentativa de o narrador-personagem se
desligar de Isabel, que é frustrada. Por quê? Esta pergunta ocorre tanto com o
interlocutor quanto com o leitor. Será ela uma vampira ou apenas uma mulher
fatal? Os índices são apenas índices e não nos levam a nehuma certeza. Não há
como afirmar se o narrado é real ou não. O final da narrativa sugere com maior
intensidade o lado sobrenatural, este entendido aqui como transgressão das leis
que organizam o mundo real. Porém, não há informações apenas sugestões.

“Um homem de cabelos cinzas” é divertido, bem humorado, sútil para detalhes
ridículos do dia-a-dia, que por vezes nos escapam. A história é sobre um homem
de cabelos cinza do qual as organizações ditas de segurança locais, desconfiam
que seja um grande malfeitor, espião.

Anúncios luminosos como os da Coca-Cola ou dos pneus Firestone, por exemplo,
preenchem as noites da protagonista do conto “Dôia na janela”. Confinada num
hospício, da janela de sua prisão, amparada pelas grades, Dôia se recolhe num
refúgio de segurança, de onde olha o mundo, feito de imagens e objetos de
consumo. Por um toca-fitas chegam-lhe as “vozes e barulhos de sua casa”, como
o “pigarro do pai”, o “canto do sabiá” ao fundo. Sobre esses fragmentos de
realidade Dôia constrói seu próprio universo. É a partir deles que ela sonha e
imagina cenas que poderiam se passar lá fora: “certas noites, o único consolo
de Dôia era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se imaginava
usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca num barzinho ao ar livre”
.
Às vésperas de receber alta, seu inconsciente simula uma crise, que lhe assegura
a permanência nesse mundo: uma cena de transplante de roseira, no jardim em
frente à sua janela, é vista por Dôia como a crucificação de um homem. A cena,
reconstruída pela imaginação da personagem, é uma singular bricolagem de
elementos do imaginário religioso, transformados por imagens da cultura de massa:
o homem crucificado tem a idade, os cabelos e a barba de Cristo, mas usa calça
Lee, camisa Adidas, cueca Zorba e se parece com Alain Delon e Robert Redford.

Os contos de Roberto Drummond tematizam o relacionamento entre realidade e
fantasia, sonho e cotidiano, loucura e sanidade, individualismo e coletivismo,
liberdade e prisão, cultura e barbárie, ficção e real. Os frágeis limites entre
esses universos são questionados, demonstrando-se a interação profunda entre os
diferentes níveis de realidade, como ocorre na cena da crucificação vista por
Dôia, em que elementos do imaginário religioso se mesclam com imagens da cultura
de massa e fragmentos do mundo exterior.

O autor traduz com clareza um sentimento de deslocamento, de marginalização, de
expulsão do ser humano em relação à sociedade organizada. Seja qual for a situação
dramática abordada, a ação do conto encontra-se sempre envolta numa série de elementos
da sociedade de consumo, que vai da escova de dentes ou dentifrício ao cigarro,
os calçados, a calça, o refrigerante e assim por diante, o que levou um crítico
a afirmar que todo o conto de Roberto Drummond assume um tom de “inventário” dos
objetos disponíveis e absolutamente desnecessários criados pela sociedade de consumo,
de onde emana “uma enorme dor, uma saudade imensa do que já foi e inexiste neste
momento”, sem que se atinja qualquer grau de nostalgia, porque em momento algum
a personagem pode sequer imaginar em restaurar aquele universo.

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