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A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar

by Lucas Gomes

Último romance escrito por Moacyr Scliar e lançado no final de 1999, A mulher
que escreveu a Bíblia
reúne o que há de melhor no trabalho desse escritor
cujo texto é marcado pela leveza, fluência e imaginação. Em sua trama bem urdida,
misturam-se sem cerimônia erudição e escracho, sagrado e profano, História e ficção,
sublime e ridículo, religião e sexo. Para escrevê-lo, Scliar baseou-se na hipótese
do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora
da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C.

Sem nome próprio, a protagonista deste romance tem como principal característica
sua enorme feiúra facial, embora fosse “boa de corpo”. Descobre, por meio de terapia
de vidas passadas, ter sido uma antiga cidadã dos tempos bíblicos na então Canaã
e filha de um pastor de cabras. A mulher que escreveu a Bíblia é o relato
em primeira pessoa da trajetória fabulosa dessa personagem anônima.

Tornou-se, por meio das relações comerciais do pai, uma das mulheres do rei
Salomão, coincidentemente depois de ter sido alfabetizada às escondidas pelo
escriba da tribo, que via na possibilidade de escrever um consolo para a vida
celibatária que se apresentava para sua protegida.

Após sofrer uma decepção amorosa, opta por consultar-se com um terapeuta de
vidas passadas na tentativa de reencontrar-se, propiciando um autoconhecimento.
Contudo, tal busca também está presente no próprio terapeuta que, frustrado na
antiga profissão (professor de história), passa a atuar no ramo esotérico. No
entanto, mesmo que a prática do consultor seja autodeclarada charlatã, a mulher
acaba por atingir seus objetivos, após longas sessões, e entrega ao guia
sobrenatural (agora apaixonado por ela) o resultado de sua procura sob a forma
de um texto escrito, relatando suas aventuras em uma vida anterior, como esposa
do rei Salomão e primeira autora de um grande empreendimento para a humanidade,
a Bíblia.

A protagonista não só se apaixona pelo rei Salomão, como consegue, depois de
algumas tentativas frustradas, consumar o casamento e, mais que tudo, escrever,
sob encomenda, sua versão da Bíblia que, infelizmente, acaba se perdendo num
incêndio de origem duvidosa em seus aposentos.

O segundo capítulo, ponto alto da obra, é, portanto, essa narrativa, a da vida
regressa desta mulher que mesmo feia fez-se reconhecer pelo mérito de ser letrada
em uma sociedade que não admitia tal prática a alguém do sexo feminino.

Ao final do romance, o leitor fica sabendo que a protagonista consegue superar
suas dificuldades amorosas no tempo atual, abandonando seu apartamento e psicanalista,
que começava a se apaixonar por ela.

O que vemos é o relato de uma experiência histórica, narrado a partir de um ponto
de vista declaradamente assumido pela narração, que impõe sua voz, ou seja, seu modo
de contar os fatos segundo sua perspectiva. Ainda assim, é possível aprender e rever
neste romance certas passagens do Velho Testamento, como a expulsão de Adão e Eva
do Paraíso, o julgamento do rei Salomão sobre as mães que disputavam o mesmo filho,
o interesse do rei Salomão pela rainha de Sabá, a disputa entre Caim e Abel etc.

No entanto, o fator predominante do texto em análise novamente é o humor, uma vez
que é bastante inesperada a versão que a protagonista dá aos episódios bíblicos, como
a libidinagem que corria entre Adão e Eva, para ficar num único exemplo.

Mas, ao mesmo tempo, encontramos, dentro da mesma ficção bem-humorada de Scliar,
trechos que podem ser interpretados como sua profissão de fé na arte de escrever. Em
certo momento da história, o rei Salomão dirige as seguintes palavras à protagonista:

[…] Não quero ser lembrado por ruínas. Quero ser lembrado por algo que dure
para sempre. Sabes o quê?
Fez uma pausa, olhou-me, e anunciou, solene:
— Um livro. Um livro que conte a história da humanidade, de nosso povo. Um
livro que seja a base da civilização.
Claro, o livro, como objeto, também é perecível. Mas o conteúdo do livro, não. É
uma mensagem que passa de geração em geração, que fica na cabeça das pessoas. E que
se espalha pelo mundo. O livro é dinâmico. O livro se dissemina como as sementes
que o vento leva.

O texto desfruta explicitamente de uma convergência de tempos, isto é, da recorrência
do passado no texto presente, declarada sob a forma de memória de uma vida anterior.
O que temos, portanto, é uma narrativa encontrada no presente que sofre interferência
de um passado, ao passo que projeta o futuro, fato que possibilita aparições de
anacronismos (recuos e avanços no tempo). A protagonista vê com os olhos da modernidade
(ou pós-modernidade) suas experiências vividas em uma época longínqua. É o rever
a tradição, recontá-la sob outros olhares não restritos a uma elite letrada, sendo,
neste caso, a postura feminina frente ao discurso (religioso-eurocêntrico, ou
seja, a partir homem branco, cristão e ocidental) que sempre a marginalizou.

Um outro ponto também trabalhado no romance é a duplicidade, o jogo corrente entre
sagrado e profano, perceptível pela linguagem ora formal, ora escrachada da narração,
um procedimento visível no diálogo da protagonista com a ordem dos anciãos,
representantes oficiais da intelectualidade da época e do tom de censura amplamente
criticado pela narradora.

Moacyr Scliar recria o cotidiano da corte de Salomão e oferece novas versões de
célebres episódios bíblicos. Em sua narrativa, repleta de malícia e irreverência,
a sátira e a aventura são matizadas pela profunda simpatia do autor pelos excluídos
de todas as épocas e lugares.

O bem humorado enredo, porém, supera a mera aventura, com curiosos lances de reflexão
sobre o ato de escrever, seu sentido, razão de ser e conflitante relação com a
vida, onde se destaca toda uma perspectiva humanista radical do autor.

Como costuma acontecer nos livros do autor, o humor irreverente anda de braços com um
profundo humanismo, cujo traço mais evidente é a simpatia pelos deserdados e excluídos.
Aqui, Scliar, além de sua fabulosa imaginação, demonstra todo o seu virtuosismo literário
ao misturar o registro elevado da linguagem bíblica com a fala desabusada da
narradora/escriba, criando anacronismos deliberados e impagáveis.

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