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A partida, de Osman Lins

by Lucas Gomes

Análise da obra

O conto A partida, está inserido na coletânea Os gestos, do Osman
Lins. Faz parte também do livro Os melhores contos de Osman Lins, organizado
por Sandra Nitrini.

Temática

O tema é o conflito “adolescência x maturidade”. De um lado,
a avó cheia de zelos; de outro, o neto ansioso para iniciar sua jornada na vida,
ansioso por uma “liberdade”. Toda a ação se dá no dia que antecede a partida.

Personagens

– O protagonista

– A avó do personagem principal

Tempo / espaço

O tempo é cronológico, os fatos transcorreram durante 1 dia. Toda a ação se passa na casa
da avó do protagonista.

O narrador, ao reportar-se à sua juventude, vem não só com a intenção de relatar
acontecimentos, como também analisá-los com a visão da maturidade. Desta forma, podemos
o conflito no conto que se dá em duas maneiras:

1- O neto e a avó;
2- O passado e o presente do protagonista;

Foco narrativo

O conto apresenta o foco narrativo de um adolescente estruturado em primeira pessoa,
sem variação do foco narrativo, onde rememora fatos ocorridos no
passado.

Estilo

Em uma linguagem que visa a densidade psicológica, as descrições exteriores ficam
relegadas a um plano secundário. Para tanto, faz-se parte o discurso indireto livre. A
concisão é outra característica da linguagem, que seja de detalhes, imagens ou até na
expressividade verbal, buscando o máximo em expressão com vocábulos cuidadosamente
escolhidos.

No conto o ranger das janelas servem como trilha sonora do amor opressor em que vive
a personagem, que deseja largar a família para conhecer e demarcar o mundo.

Enredo

O conto A Partida é baseado na transposição real do menino humilde do Sertão
nordestino ao grande centro urbano do País.

Como a mãe do escritor morreu no parto, ele foi criado por ela. Forçado a partir pela
pobreza e pela desilusão com o futuro no interior, o personagem sofre por querer ir
embora e ter que abandonar sua avó. A ansiedade para partir e a saudade antecipada
deixam um clima tenso e angustiante no ar. No texto, Lins recorda, anos mais tarde,
os últimos momentos, os últimos olhares e os últimos gestos que antecederam sua
partida.

A PARTIDA (Conto na íntegra)

          Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante.
Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em
minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava
farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado,
querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase
como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.
          Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a
repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e
amorosa e justa.
          Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava
que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me:
passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras
novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me
encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as
horas voassem, voassem!
          Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse
isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva
do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
          Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar
para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por
começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
          Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de
fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida
com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso
abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres,
de xícaras.
          Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
          — Acordado?
          Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito);
mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as
costas.
          Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam,
indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens,
luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.
          Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria
dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos,
minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo.
A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
          Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de
leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de
pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me
conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela
estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não
me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não
ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe,
na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.
          Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as
mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
          Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis
novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo:
passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria
às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa.
Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
          Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes,
penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um
instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com
ela? Ora, algumas palavras… Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
          Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro,
ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso,
eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar,
talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não
tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
          Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à
procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu
sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos,
estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
          Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi
um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei
a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para
dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só
se usava em nossos aniversários.

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